Infelizmente, Fuga de Nova York não me cativou, mas sempre me impressiona a capacidade do John Carpenter de conseguir imprimir sua voz em obras que, superficialmente, são bastante convencionais. Para um diretor que já declarou que seu pensamento político é "inconsistente", se há algo de constante na sua filmografia, é justamente sua visão de mundo: o desdém pela autoridade, pelas farsas políticas de manutenção do status quo e pela instrumentalização da vida humana. Não são filmes particularmente sutis -- e não é de sutileza que eu falo quando digo que existe algo além da superfície no trabalho dele --, mas são filmes desavergonhadamente políticos e que confrontam as convenções ideológicas vigentes. E isso se aplica tanto a Halloween, mais lembrado como molde do subgênero slasher para as cópias vazias que tentaram replicar o seu sucesso, quanto a Eles Vivem, conhecido e celebrado por seu teor político. Também nunca lhe falta o cinismo, que sem surpresa deve vir não só da visão autocrítica sobre suas contradições ideológicas, mas também de um pessimismo inevitável à oposição a um sistema de dominação tão maior que o poder de um indivíduo e tão mais forte que uma multidão desmobilizada e submissa.
Assim, em Fuga de Nova York, o cenário pode até ser distópico e o rumo da história pode até ser agridoce, mas a postura antissistema do Snake não só não é subvertida, como é expressamente validada. E Carpenter faz isso sem nunca indicá-lo como um justiceiro moralista que promete limpar a sujeira do mundo, traço dos filmes que promovem a ideologia do excepcionalismo americano e são marco do cinema oitentista do país. Ao contrário, Carpenter, que sempre foi um diretor de filosofia antiautoritária, mas trabalhando numa indústria cinematográfica elitista, asfixiante e que faz dobradinha como instrumento de propaganda imperialista, faz o improvável: promove o subversivo usando como fachada a aparência dos filmes hipermasculinos que promoviam idolatria à máquina de guerra e à violência estatal. Mesmo em seus filmes (na minha opinião) menores, é um feito nada menos que genial.
Para algumas histórias, a realidade basta. How to Have Sex traça seu caminho de forma naturalista, passando por temas que com alguma frequência tendem ao grosseiro e sensacionalista: alguns, próprios da juventude e da exposição a situações de novas idealizações e expectativas socioculturais; outros, muito particulares à experiência feminina nesse período da vida. De abordagem sutil, mas sempre precisa, inclusive no estabelecimento das dinâmicas entre personagens nos momentos iniciais, de descontração, é o longa de estreia da Molly Manning Walker na direção e uma das surpresas de 2023.
No que não te impressiona em questão de história (que não tem pé, nem cabeça) as insanas, hipnotizantes e hilárias sequências de ação te conquistam imediatamente. O final, então, é simplesmente maravilhoso, abraçando os pontos fortes do filme em vez de recuar e fazer um encerramento limpinho. Posso não ter dado a nota mais alta, mas assistiria novamente com muito gosto.
Enquanto a animação é muito bem realizada, A Ameaça dos Nuggets é consideravelmente menos inspirado que o filme original. Não é para dizer ele que não possui seus méritos e boas ideias, pois possui: produz reflexões sobre os riscos da conformidade com o estado de (aparente) segurança; reafirma a importância da empatia, união e ação para combater injustiças, mesmo quando você não é o alvo delas; e questiona a alienação de uma nova geração à sua própria história, aqui imposta à Molly pelos seus pais, que desejam proteger a filha de conhecer os horrores pelos quais passaram, mas com isso acabam por deixá-la vulnerável ao perigo que os rodeia. Há também comentários sobre a manipulação e exploração por meio do prazer e do estímulo constantes, que inevitavelmente lembram nossa própria relação com a internet. Por mais que a presença desse último conceito não surpreenda num filme de 2023, não é nada menos que adequado aos nossos tempos e pertinente à história que os roteiristas desejam contar.
Entretanto, é na execução e ritmo da narrativa que vem a decepção. Nos momentos em que pesam as referências visuais e verbais ao filme de 2000, inclusive com a reutilização de algumas piadas, A Ameaça dos Nuggets mais soa como um remake desapaixonado, sem o timing cômico que fez seu predecessor especial. É também pela falta de coragem para adotar o devido tom sombrio quando a narrativa pede que o novo filme mais desperdiça suas oportunidades e falha em se tornar uma obra memorável. Essa, talvez, seja a característica mais marcante de Fuga das Galinhas e que lhe permitiu enfatizar a urgência da ação das personagens e o peso da violência que sofriam, elevando a história para além do que se espera de um filme censura livre. É verdade que deve ter "traumatizado" muitas crianças, mas também foi o que inspirou paixão em muitas delas.
Começa razoavelmente bem e consegue introduzir elementos que inovam a mitologia de Candyman de forma interessante, expandindo o conceito-base do filme de 1992 sobre a criação e transformação de lendas urbanas e como elas refletem a vivência das comunidades que as mantêm vivas no imaginário popular. Mas à medida que a história avança, cresce a sensação de que o filme está mais preocupado em ostentar relevância política do que dialogar com a obra que originou a franquia, expondo muito claramente um senso de auto-importância que chega a ser embaraçoso quando não corresponde à qualidade da execução, além de contrastar com a superficialidade dos argumentos e a falta de aprofundamento em questões importantes para as personagens.
Enquanto o filme de 1992 consegue elaborar comentários sociais em diferentes camadas de profundidade, sem nunca se tornar enfadonho e sacrificar a diversão de acompanhar a história, A Lenda de Candyman pesa a mão a todo momento, abusa das caricaturas e não sabe no que focar. A trama logo se perde num emaranhado confuso de ideias subdesenvolvidas, muitas delas amontoadas de forma desajeitada no ato final, enquanto o próprio personagem título fica de lado e não tem nem perto da mesma presença e força que nos filmes dos anos 90. Aqui, Candyman é apenas como qualquer assassino sobrenatural de slashers genéricos, um bicho-papão sorridente e que não possui uma única fala (!!!!), sendo completamente esvaziado da tensão e força psicológica da brilhante performance do Tony Todd.
Além de uma obra muito forte sobre os efeitos da colonização europeia na África, imigração, relações de trabalho e identidade, "A Negra de..." é um filme que dialoga tanto com o Brasil e nossa própria herança escravista, que diz tanto sobre a realidade que se perpetua no Brasil de 2023, que é muito difícil pensá-la como uma produção estrangeira ou mesmo uma história temporalmente distante, no ano em que o filme completa 57 anos. Não é simplesmente um filme que merece ser visto, mas que deve ser visto, discutido e divulgado.
Pode ser encontrado, completo e legendado, no canal Cine Antiqua III, no YouTube.
A história dos trigêmeos, por si só, é muito interessante. Soube dela anos atrás e só depois de ler uma reportagem é que descobri que um documentário havia sido feito. Entretanto, o filme não se justifica e deixa a sensação de potencial desperdiçado nas mãos de um documentarista pouco habilidoso.
A abordagem se limita ao superficial, apenas com diversas pessoas falando sobre o que aconteceu em 1980, com o encontro dos três, e 17 anos depois, com a descoberta de que haviam sido parte de um experimento científico. A sobreposição da voz dos entrevistados por simulações dramatizadas do que é dito não acrescenta à experiência e conferem ao documentário um aspecto batido de reportagem de TV. As entrevistas, por sua vez, são claramente ensaiadas, com olhares dramáticos para a câmera, chavões (um "oh my god" boquiaberto, um "holy shit" de olhos esbugalhados) e expressões corporais exageradas que, por sua artificialidade, são muito distrativos. Também desapontam por nunca ultrapassarem a simples narração de fatos, já que os entrevistados nunca são instigados a ir além disso. Mesmo quando chegamos à revelação sobre o estudo científico, o documentarista nunca explora as questões temáticas que derivam dos próprios fatos apresentados, como os limites da ciência, saúde mental (tratada desastrosamente nas entrevistas) e a questão filosófica do determinismo artificial, com a descoberta de que não só as vidas dos três haviam sido moldadas, orientadas e manipuladas por estranhos, mas que todos os membros das suas famílias também serviram de cobaias.
Enquanto reportagem, Três Estranhos Idênticos pode entreter por se tratar de uma história única e absurda, que realmente te deixa curioso no primeiro contato. Já enquanto documentário, nunca deixa o lugar-comum e não tem qualquer razão para se prolongar por 96 minutos. Se sua única vontade é conhecer a história, recomendo procurá-la em qualquer site de notícias ou mesmo um vídeo no youtube ou episódio de podcast. Serão mais rápidos e não devem perder para esse filme em questão de conteúdo — talvez, nem mesmo em forma.
O Substituto é um compilado superficial e sem foco de uma variedade de tragédias pessoais e sociais que, sim, embora existam no muito real, aqui são transformada num grande CIRCO DA MISÉRIA.
Tudo aqui é extraordinariamente manipulador, o mais puro suco do pessimismo pelo pessimismo, como poucas vezes vi num filme. Violência doméstica, idoso com Alzheimer, prostituição infantil, tortura de animais, artista incompreendida, pedofilia, estupro, suicídio, depressão, dependência química, agressividade física e verbal etc etc. Nada basta para O Substituto, que só falta contratar um assassino de aluguel para matar toda sua família numa última tentativa de te fazer chorar.
As personagens nunca ultrapassam a dimensão da caricatura, um samba de uma nota só implorando que o espectador sinta pena. O texto é limitado a um discurso presunçoso de revolta grosseira disfarçada de visão crítica de mundo, cheio de dramalhões subdesenvolvidos e frases de efeito sofríveis. A trilha sonora não se contenta em ser genérica e melodramática, ela é INCESSANTE — fechem os olhos e escutem esse filme. A música não para! Somente alterna entre o atordoante e o melancólico.
O final, embora previsível, não é menos insultante. Aquele desfecho era a última grande tragédia que a história ainda não tinha prostituído para forçar o espectador a chorar e se iludir a pensar que existe profundidade e reflexão nesse show de horrores. A cereja de sofrimento num bolo queimado de auto-miseração.
É muito raro eu assistir a um filme que não possui uma única qualidade redimível, mas até mesmo o talento e habilidades dos atores são completamente banalizados pelo roteiro, direção de atuação, fotografia e edição.
------------------------- Uma observação final: A nota altíssima que esse filme possui no Filmow — e alta assim, ele só tem aqui — só pode ser explicada por um efeito bola-de-neve em que os usuários temem não gostar desse filme, talvez até subconscientemente, ao ver a nota média. Indício disso é que até mesmo aqueles que deixaram comentários negativos não se atreveram a dar uma nota menor que 3. E eu não questiono a possibilidade de alguém gostar desse filme!!! De jeito nenhum! O que me estranha demais é a comunidade do Filmow tê-lo colocado num pedestal tão surreal que não se repete em nenhum outro ambiente na internet, nem entre a crítica especializada (entre a qual a recepção do filme foi de mista a negativa), nem entre o público.
A quem precisa ler isso, aqui está: Tudo bem não gostar um filme do qual muita gente gosta! Tudo bem dar uma nota baixa e indicar o que te desagradou! Acreditem!
Dos 16 filmes do Bergman que assisti até hoje, Quando as Mulheres Esperam é, com certeza, o mais esquecível. Na verdade, é o primeiro dele de que não gosto. Há momentos visualmente interessantes e Eva Dahlbeck, com seu carisma grandioso e sempre apaixonante, garante a única parte do filme que me agradou. Como a história da sua personagem, Karin, toma apenas 24 dos 107 minutos de filme, não é suficiente para salvar todo o resto, mas são 24 minutos tão divertidos que me impedem de dizer que me arrependi de assistir até o fim.
Pouca coisa mais entediante que filme brasileiro tentando ser filme americano genérico e sendo ainda mais insignificante e sem conteúdo que isso. É aquilo né? Trilha sonora e referência à cultura pop não faz filme, faz comercial.
Há 10 anos, quando vi Evil Dead (2013) pela primeira vez, não gostei dele. Com o passar do tempo e a memória da experiência de assisti-lo ficando menos clara, passei a me perguntar se não fui injusto, se não o comparei indevidamente com os filmes do Raimi, de que eu já era muito fã. Ontem, quando eu o reassisti, algumas lembranças das impressões que tive naquela época retornaram. Sinto que gostei dele um pouco mais dessa vez, mas percebi que aquelas primeiras impressões não mudaram tanto e que não tinham qualquer relação a trilogia original.
Exatamente como naquela época, achei a maquiagem e o gore magníficos, um banquete aos olhos e o grande destaque desse filme. A criação de uma história própria para as novas personagens é um grande acerto, pois lhe permite uma existência própria e evita um dos grandes problemas de tantos outros remakes e reboots dos anos 2000: querer apresentar uma versão alternativa/substituta do material original, que em sua época foi inovador, transformando-o na mais genérica porcaria. Vimos isso com Halloween (2007 e 2009), O Massacre da Serra Elétrica (2003), A Hora do Pesadelo (2010) e muitos outros (infelizmente). E muito embora nenhuma personagem tenha um resquício do carisma do Ash Campbell, Mia é uma figura muito interessante e suas transformações conversam muito bem com cada um dos três atos da história.
Meu problema aqui está na execução e edição do filme e na direção dos atores. Apesar da seriedade absoluta que o marca desde o primeiro minuto, como bem característico dos filmes de terror dos anos 2000 e início da década passada, em geral, Evil Dead carece de tensão. E é estranho contrastar isso com efeitos visuais tão bem feitos e asquerosos. Esse filme consegue ser monótono apesar das personagens vivenciarem os eventos mais perturbadores e surreais das suas vidas e que só se intensificam após começarem. Com exceção de Mia, que passa pela abstinência do vício em heroína, as personagens são totalmente opacas, pouquíssimo expressivas, e isso é especialmente problemático com David, já que ele é o único com vínculos afetivos com cada uma das pessoas do grupo e suas reações não condizem com a intensidade do que acontece em tela.
Se eu quisesse fazer alguma comparação com o Evil Dead de 1981, o filme mais sério da trilogia original, é que esse novo filme não tem personalidade própria, apenas se conforma e se dilui entre outros filmes da sua época. Se os efeitos visuais práticos garantem momentos memoráveis, é somente pela gravidade da violência e nunca para além dela. Evil Dead (2013!) é CHATO — e isso é terrível para um filme de terror.
Nomadland me causou duas impressões distintas que são difíceis de conciliar.
Por um lado, é um filme que consegue ser bonito, tanto em sua linguagem visual quanto dramatúrgica. Fern é uma personagem cujos dramas pessoais são marcados por muitos vazios e dores não ditas, mas também possui um senso de dignidade, franqueza e gentileza muito genuínos. Frances McDormand nunca reduz sua personagem a um totem de melancolia e cinismo velado, tampouco a uma caricatura de perseverança cega, como poderia ocorrer, mesmo sem essa intenção, nas mãos de um ator de menor habilidade e sutileza. Outro ponto forte do filme são os relatos das experiências dos outros nômades, que não são interpretados por atores profissionais, mas por pessoas que realmente vivem/viveram naquelas condições.
Por outro lado, o comentário político que é prenunciado, não apenas no conceito básico do filme, mas também no estilo semi-documental da sua edição, nunca ultrapassa ou mesmo parece querer ultrapassar a superfície. Essa covardia é sentida e impede Nomadland de cumprir com sua proposta. Na verdade, faz pior, trazendo uma representação desconfortavelmente acrítica e fictícia das condições de trabalho na Amazon, símbolo e exemplo maior da precarização do trabalho e destruição de economias locais e regionais dos EUA — para me limitar ao escopo territorial do filme — por monopólios e práticas predatórias de grandes empresas. Também a crise de 2008, que provocou/contribuiu substancialmente para os fatos dessa história, bem como das histórias reais que a inspiraram, é reduzida a um único diálogo de frustração contra a insensibilidade de três personagens terciários, que nada servem à obra além de contrates unidimensionais ao senso de comunidade dos nômades. E quanto aos relatos nômades, que têm base nas histórias reais dos próprios atores e são muito fortes, também se frustram na confusa fragilidade política da abordagem. Diante disso, não é difícil compreender por que muitos dos que não gostaram de Nomadland o acusam de romantizar a pobreza. Não sei se concordo completamente com o termo, mas também não posso deixar de ver a simplificação e higienização de uma crise muito mais severa do que o filme tem coragem de representar.
Existe, aqui, uma história central (privada, sobre o luto da protagonista) que consegue ser tocante. Entretanto, a passividade do filme e sua relutância a encarar as questões estruturais que causam e perpetuam a pobreza nos EUA, ou mesmo o fenômeno social que ele deseja representar, o impede de alcançar a profundidade que o objeto da obra demanda. Um bom filme e eu gostei dos seus acertos enquanto o assistia, mas é impossível negar que também foi uma decepção.
The Birdcage é um dos raros casos, mas sempre muito bem vindos, em que um remake americano de um filme de outro país é tão bom quanto o original. Há 3 meses, quando assisti La Cage aux Folles, fiquei surpreso com um filme de 45 anos ter envelhecido tão bem, tanto em termos de comédia quanto em representação LGBT+, e agora posso estender o mesmo elogio à adaptação de 1996. Se, num primeiro momento, a caracterização dos protagonistas soar exagerada e desagradável a audiências de 2023, que têm a amarga lembrança das décadas de vis e preguiçosos estereótipos utilizados na comédia para fazer chacota de homens gays, não se enganem: como no original francês, o que primeiro parecem ser os velhos estereótipos de sempre surgem justamente para desafiá-los e satirizar as falsidades do moralismo conservador. The Birdcage foi um marco no cinema americano e é honestamente afetuoso e atencioso com seus personagens. Isso é tão evidente hoje quanto foi em 1996 e é uma da razões para o filme ainda ser tão querido.
Robin Williams e Nathan Lane são tão geniais quanto Ugo Tognazzi e Michel Serrault, com performances excelentes e memoráveis tanto nos mais absurdos momentos cômicos, quanto nos mais singelos momentos de ternura. O roteiro e a direção, igualmente, acertam em cheio na transposição do texto original ao estilo do humor e do cinema americanos, sem se sujeitar a realizar uma cópia desajeitada dos franceses. Mike Nichols é também diretor de The Graduate e Quem Tem Medo de Virginia Woolf?, e aqui não resta dúvidas de que seu talento não se limita ao filmes de drama.
Não me surpreendeu, ao ler sobre o processo de adaptação da peça do Robert Anderson (por ele próprio), que a primeira e última cenas do filme foram adições para apaziguar os censores de Hollywood, que nunca permitiriam que o conteúdo da obra original chegasse às telas em sua integralidade. Afinal, elas destoam, muito claramente, de todo o resto — ou talvez seja mais adequado dizer que *elas* são o resto. O que me surpreendeu é que, apesar de todas as modificações necessárias (e foram muitas!), Robert Anderson e Vincente Minnelli não só foram bem sucedidos em retratar os temas da peça, mas também conseguiram desenvolvê-los numa discussão de inesperada nuance e topicamente atual sobre masculinidade, papéis de gênero, heteronormatividade e opressão.
Chá e Simpatia, o filme, pode até ser mais um na infeliz lista de obras queer* violadas pela imperdoável censura homofóbica de outrora — ou mesmo de hoje, sejamos sinceros —, que sequer permitiu o uso da palavra homossexual ou que pairasse alguma dúvida a respeito do protagonista, ao fim da história, mas é extraordinário o êxito de Anderson, Minelli e todos os envolvidos em conseguir realizar um trabalho tão poderoso na Hollywood de 1956.
* Ser uma obra de temática queer não significa que seu protagonista deve, necessariamente, ser (confirmado) LGBTQ+.
Pouca coisa em To Leslie é mais que meramente apropriado, que de destaque memorável, mesmo, só tem a atuação da Andrea Riseborough. Como sua performance é nada menos que excelente, o filme não é tão prejudicado por depender exclusivamente dela para imergir quem assiste, e permite uma boa experiência.
Leslie, a personagem, não é uma novidade, mas é genuinamente humana, se contradiz, se sabota, enfurece e também comove. Há certos saltos para que a história se alinhe no caminho da sua redenção, buscando fugir de desenvolvimentos mais cínicos e complexos, mas é isso que também impede o filme de alçar um voo mais alto — isso e o fato de que os demais personagens nunca são mais que referências à existência de um passado ou instrumentos para sua salvação.
Mulher Marcada é tematicamente ousado para uma época em que o Código Hays já asfixiava a liberdade artística em Hollywood. É um feito ainda mais impressionante quando levamos em conta o mérito de conseguir apresentar as 5 personagens que trabalham como prostitutas — ou melhor, "nightclub hostesses", como aprovado pela censura — nem como monstros imorais e corruptores de homens, nem como ingênuas e encantadoras vítimas da vida, pelo simples fato de serem as protagonistas, como tenderia a outra faceta da misoginia que ainda dita a forma como personagens femininas são escritas e retratadas por homens.
Mary Dwight, personagem da Bette Davis, é uma mulher que sabe defender seus próprios interesses e se impõe para garantir o bem estar daqueles com que ela se importa, mas tampouco se arrisca para evitar a desgraça alheia, quando não lhe convém. Sua tragédia decorrerá da própria crença de que ela é sagaz demais para cair nas mesmas armadilhas que vitimaram tantas outras mulheres nas mesmas condições que ela. À medida que suas circunstâncias mudam, ao longo do filme, Davis tem diversas oportunidades de revelar a complexidade da sua personagem e não as desperdiça. Vez ou outra, sua performance se beneficiaria se fosse mais contida, mas nada que a comprometa. Após anos de luta para conseguir papéis mais sérios e complexos, ela não desperdiçou seus esforços aqui.
Seu maior problema surge nos diálogos e estrutura da narrativa, que não são os mais inspirados, prejudicam a fluidez da história e a impedem de alcançar um patamar mais alto de qualidade e sensibilidade. O filme também tropeça numa edição, por vezes, genérica e opaca, que nada apresenta além do esperado para a época. Talvez seja mais justo chamá-la pelo que ela é, datada, pois não haveria razão para não ser assim, mas nem por isso foi algo que me deixou de chamar minha atenção de forma negativa. Sendo menos ranzinza, a fotografia garante alguns momentos de genuína beleza, com destaque para a última cena, mérito de George Barnes — melhor lembrado por seu trabalho em Rebecca, do Hitchcock. No entanto, a impressão negativa com alguns dos elementos técnicos veio como uma pequena decepção, já que reconheci o nome do diretor, Lloyd Bacon, por ter visto um breve trecho de outro filme seu, Rua 42, que me impressionou, e por isso vim esperando um filme estilisticamente mais interessante. Muito embora não seja o melhor trabalho dos seus atores, nem da direção e da equipe técnica, Mulher Marcada é um bom filme, uma boa história, e ainda merece ser visitado.
Adaptação bastante competente, com os ocasionais vícios característicos (e irritantes) do estilo do estúdio Ilumination. É verdade que o roteiro não é tão bem estruturado e que por vezes parecemos navegar entre ininterruptos episódios de grandes acontecimentos, sem que seja haja o devido tempo de construção para que aquele momento tenha o devido impacto, mas é também verdade que o produto final diverte.
Quem sabe com os próximos filmes — que, com certeza, virão —, já sem a missão de reintroduzir uma franquia consagrada, possam desacelerar o feed frenético de referências aos jogos e trabalhar os elementos da história de forma mais focada. Destaque muito merecido para a dublagem brasileira.
Agora só preciso saber: quantas mortes o Mario causou
Há muitos acertos em Christine, tanto como adaptação do livro do King quanto como um filme por si só. A qualidade da direção do John Carpenter, que um ano antes trouxe ao mundo sua obra-prima, The Thing, é inquestionável. E se um Plymouth Fury vermelho se transforma numa personagem tão crível e tangível como Christine, é um mérito indiscutível da direção.
No entanto, enquanto o êxito com Christine, a personagem, é parte do que torna a história tão fascinante e memorável, o completo abandono de outros dois personagens centrais, Dennis e Leigh, é o que me impede de dizer o mesmo sobre seu encerramento. Ao nos aproximarmos do encerramento, surge um bizarro abismo lógico entre a ação dos personagens e o que ocorreu até aquele momento. Não há qualquer motivo para que Dennis e Leigh pensem em Christine como algo sobrenatural ou como qualquer coisa além de um objeto pelo qual o Arnie ficou obcecado. E com certeza, o fato da primeira interação significativa entre esses dois personagens ocorrer somente nos 20 mins finais do filme* escancara a estranheza que esse salto lógico traz à última parte da história. Assim, apesar dos seus méritos, Christine se apressa a uma conclusão vazia e anticlimática, que consigo só traz mesmo os créditos finais do filme. Mas sendo justo, tropeços à parte, o filme nunca se torna uma experiência desagradável, nem deixa a impressão de ser um trabalho dispensável da filmografia do Carpenter. ____________________________ *Encontrei um vídeo que compila cenas deletadas, a maioria das quais dava mais espaço para Dennis e Leigh, e foram claramente pensadas para que a estrutura do filme fizesse sentido. Uma pena terem sido cortadas da versão final do filme, pois sua adição (das cenas essenciais) não teriam prolongado tanto a duração total.
Uma observação (COM SPOILER do livro) sobre a estranha escolha de trazer um elemento do livro que só fazia sentido com outros elementos que foram descartados na adaptação:
Por alguma razão, Carpenter decidiu transformar os irmãos LeBay em uma única pessoa, tanto o senhor que vende o carro a Arnie quanto o que adverte Dennis sobre as mortes ocorridas no veículo. Essa mudança é estranha porque, tanto no livro quanto no filme, Arnie começa a falar e agir como o LeBay — mais notável no uso da gíria fictícia "shitter" e na repetição, palavra por palavra, de uma fala anterior do personagem —, mas aqui esse senhor não é o dono da Christine, mas irmão do falecido dono, que não vemos, mas sabemos que era obcecado pelo carro. No livro, isso ocorre porque o dono do carro, que é aquele que faz a venda ao protagonista, realizou sacrifícios humanos para que seu espírito pudesse continuar vivo no veículo, e após vendê-lo, suicida-se e passa a influenciar/possuir Arnie através de Christine. Seu irmão, muito diferente dele, é um homem gentil com quem Dennis entra em contato ao ficar preocupado após perceber a influência do carro na radical transformação do amigo.
Tão preocupado com ~a e s t h e t i c s~ e ser fofo que nem arranha a superfície de qualquer coisa que possa ser chamada desenvolvimento de trama. O produto final é um amontoado desajeitado de clipes musicais românticos – e dos mais genéricos – que põe em questão a necessidade de transformar em longa metragem uma ideia que mal se desenvolveu suficientemente para ser um bom curta.
Não é inassistível, mas é francamente enfadonho e decepcionante se você espera um mínimo de enredo, em vez de inúmeros clipes de duas adolescentes infantilizadas comendo doces, trocando beijos de batom de frutas e sendo fofinhas. O maior problema aqui é que a ambientação da trama é completamente descartada pela realizadora, que nada faz com a proposta. Cláudia, em especial, é escrita de forma completamente inconsistente, hora agindo como uma criança pequena que ainda está aprendendo a juntar palavras em frases, hora esquecendo que toda a ideia da personagem é ser uma adolescente que viveu completamente isolada de contato humano, salvo pela mãe depressiva.
Não sei se sequer consigo dizer que Miss Violent é um filme bom ou ruim. Já mal consigo avaliá-lo com uma nota. É claro, nada disso importa de verdade, já que estrelas e binômios como bom-ruim apenas fazem sentido no sistema de avaliação de cada pessoa — e mesmo assim é impossível não ser inconsistente.
No entanto, Miss Violence me perdeu de vez com uma das suas cenas e nada tira a impressão amarga de o filme caiu na armadilha de se tornar uma exploração da miséria alheia em vez de obra de confronto de uma realidade impiedosa e repugnante. Falo, é claro,
— que, curiosamente, acontece fora de cena — soa mais como uma tentativa de recompensar o espectador pela revolta que sentiu, com um acontecimento de aparente Justiça cármica; ou, quem sabe uma tentativa de apenas encerrar o filme de alguma forma minimamente esperançosa, como ponto final naquela tragédia de sabe-se lá quantos anos. Mas essa conclusão falha, em todos os sentidos, e tal qual aquela cena explícita desnecessária, se sobressai como artifício barato para chocar.
Não sei exatamente o que (ou se) eu esperava, mas o que quer que fosse, com certeza não era uma obra que envelheceu tão surpreendentemente bem quanto La Cage aux Folles.
Todo o filme acompanha o ponto de vista de Renato e Albin, e não do filho heterossexual que traz o estopim da história. De cara, é um diferencial enorme quando até a década passada o que não faltava era filme "bem intencionado", supostamente buscando "humanizar" homossexuais, ao mesmo tempo que, se muito, os retratavam como chacotas inofensivas e que só por isso não deveriam ser perseguidas. Assim, qualquer desconforto que Laurant possa sentir em relação aos pais não tropeça numa promoção pedante de auto-censura benevolente. Em momento algum Renato, Albin ou qualquer um que trabalhe no clube são mostrados como pessoas que deveriam se envergonhar das suas personalidades ou gostos, muito embora estejam cientes do repúdio dos ignorantes. Não só isso, são tratados com a mais natural dignidade pelos vizinhos e comerciantes de onde moram, com exceção dos patéticos idiotas que o filme satiriza.
Há, sim, uns tropeços que vão contra a sensibilidade buscada pela história. (1) Laurant, bom moço, sorridente, filhinho querido do papai Renato, não faz muita questão de levar em consideração o que sua outra figura parental, Albin — que descobrimos que também o criou desde bebê, mesmo sem relação biológica com ele. Em resumo, também seu pai —, está sentindo quando ele deixa bastante claro que não quer ele ali para conhecer a família da noiva. Só quer que ele vá embora. Agora. (2) Algo mais inofensivo, e nada espantoso para a época, a bobagem de retratar um casal gay em termos de sujeito masculino e sujeito feminino da relação. (3) Jacob, que se está ali para fazer contraste ao racismo descarado da família da noiva... bem... é o que há.
Sem dúvidas, La Cage aux Folles é exceção que escapa da armadilha de tantos outros filmes reputados como marcos histórico-sociais — que, apesar da sua importância, trazem abordagens desengonçadas que, no mínimo, provocam justificável desconforto a audiências modernas. Quase 5 décadas desde seu lançamento, não só é eficiente na sua intenção de prestar o devido respeito a um grupo marginalizado e satirizar seus detratores, como ainda é muito engraçado, feito que nem toda comédia, muito menos uma sátira social, consegue sustentar ao longo de várias gerações.
Obs: Momento muito inesperado, francamente surpreendente e que preciso destacar: simplesmente uma personagem que é homem heterossexual, casado, pai de 6 filhos (em breve, 7) e que trabalha como drag queen no clube, sem que haja um mínimo de alvoroço sobre isso no filme — um filme de 1978.
O Homem Sem Passado
3.8 46"Vamos nos sentar no sofá e escutar um pouco de música?"
Os filmes do Kaurismäki têm as falas mais românticas que já se ouviu no cinema.
Fuga de Nova York
3.5 301 Assista AgoraInfelizmente, Fuga de Nova York não me cativou, mas sempre me impressiona a capacidade do John Carpenter de conseguir imprimir sua voz em obras que, superficialmente, são bastante convencionais. Para um diretor que já declarou que seu pensamento político é "inconsistente", se há algo de constante na sua filmografia, é justamente sua visão de mundo: o desdém pela autoridade, pelas farsas políticas de manutenção do status quo e pela instrumentalização da vida humana. Não são filmes particularmente sutis -- e não é de sutileza que eu falo quando digo que existe algo além da superfície no trabalho dele --, mas são filmes desavergonhadamente políticos e que confrontam as convenções ideológicas vigentes. E isso se aplica tanto a Halloween, mais lembrado como molde do subgênero slasher para as cópias vazias que tentaram replicar o seu sucesso, quanto a Eles Vivem, conhecido e celebrado por seu teor político. Também nunca lhe falta o cinismo, que sem surpresa deve vir não só da visão autocrítica sobre suas contradições ideológicas, mas também de um pessimismo inevitável à oposição a um sistema de dominação tão maior que o poder de um indivíduo e tão mais forte que uma multidão desmobilizada e submissa.
Assim, em Fuga de Nova York, o cenário pode até ser distópico e o rumo da história pode até ser agridoce, mas a postura antissistema do Snake não só não é subvertida, como é expressamente validada. E Carpenter faz isso sem nunca indicá-lo como um justiceiro moralista que promete limpar a sujeira do mundo, traço dos filmes que promovem a ideologia do excepcionalismo americano e são marco do cinema oitentista do país. Ao contrário, Carpenter, que sempre foi um diretor de filosofia antiautoritária, mas trabalhando numa indústria cinematográfica elitista, asfixiante e que faz dobradinha como instrumento de propaganda imperialista, faz o improvável: promove o subversivo usando como fachada a aparência dos filmes hipermasculinos que promoviam idolatria à máquina de guerra e à violência estatal. Mesmo em seus filmes (na minha opinião) menores, é um feito nada menos que genial.
How to Have Sex
3.7 110 Assista AgoraPara algumas histórias, a realidade basta. How to Have Sex traça seu caminho de forma naturalista, passando por temas que com alguma frequência tendem ao grosseiro e sensacionalista: alguns, próprios da juventude e da exposição a situações de novas idealizações e expectativas socioculturais; outros, muito particulares à experiência feminina nesse período da vida. De abordagem sutil, mas sempre precisa, inclusive no estabelecimento das dinâmicas entre personagens nos momentos iniciais, de descontração, é o longa de estreia da Molly Manning Walker na direção e uma das surpresas de 2023.
Police Story: A Guerra das Drogas
3.8 129 Assista AgoraNo que não te impressiona em questão de história (que não tem pé, nem cabeça) as insanas, hipnotizantes e hilárias sequências de ação te conquistam imediatamente. O final, então, é simplesmente maravilhoso, abraçando os pontos fortes do filme em vez de recuar e fazer um encerramento limpinho. Posso não ter dado a nota mais alta, mas assistiria novamente com muito gosto.
A Fuga das Galinhas: A Ameaça dos Nuggets
3.4 231 Assista AgoraEnquanto a animação é muito bem realizada, A Ameaça dos Nuggets é consideravelmente menos inspirado que o filme original. Não é para dizer ele que não possui seus méritos e boas ideias, pois possui: produz reflexões sobre os riscos da conformidade com o estado de (aparente) segurança; reafirma a importância da empatia, união e ação para combater injustiças, mesmo quando você não é o alvo delas; e questiona a alienação de uma nova geração à sua própria história, aqui imposta à Molly pelos seus pais, que desejam proteger a filha de conhecer os horrores pelos quais passaram, mas com isso acabam por deixá-la vulnerável ao perigo que os rodeia. Há também comentários sobre a manipulação e exploração por meio do prazer e do estímulo constantes, que inevitavelmente lembram nossa própria relação com a internet. Por mais que a presença desse último conceito não surpreenda num filme de 2023, não é nada menos que adequado aos nossos tempos e pertinente à história que os roteiristas desejam contar.
Entretanto, é na execução e ritmo da narrativa que vem a decepção. Nos momentos em que pesam as referências visuais e verbais ao filme de 2000, inclusive com a reutilização de algumas piadas, A Ameaça dos Nuggets mais soa como um remake desapaixonado, sem o timing cômico que fez seu predecessor especial. É também pela falta de coragem para adotar o devido tom sombrio quando a narrativa pede que o novo filme mais desperdiça suas oportunidades e falha em se tornar uma obra memorável. Essa, talvez, seja a característica mais marcante de Fuga das Galinhas e que lhe permitiu enfatizar a urgência da ação das personagens e o peso da violência que sofriam, elevando a história para além do que se espera de um filme censura livre. É verdade que deve ter "traumatizado" muitas crianças, mas também foi o que inspirou paixão em muitas delas.
A Lenda de Candyman
3.3 508 Assista AgoraComeça razoavelmente bem e consegue introduzir elementos que inovam a mitologia de Candyman de forma interessante, expandindo o conceito-base do filme de 1992 sobre a criação e transformação de lendas urbanas e como elas refletem a vivência das comunidades que as mantêm vivas no imaginário popular. Mas à medida que a história avança, cresce a sensação de que o filme está mais preocupado em ostentar relevância política do que dialogar com a obra que originou a franquia, expondo muito claramente um senso de auto-importância que chega a ser embaraçoso quando não corresponde à qualidade da execução, além de contrastar com a superficialidade dos argumentos e a falta de aprofundamento em questões importantes para as personagens.
Enquanto o filme de 1992 consegue elaborar comentários sociais em diferentes camadas de profundidade, sem nunca se tornar enfadonho e sacrificar a diversão de acompanhar a história, A Lenda de Candyman pesa a mão a todo momento, abusa das caricaturas e não sabe no que focar. A trama logo se perde num emaranhado confuso de ideias subdesenvolvidas, muitas delas amontoadas de forma desajeitada no ato final, enquanto o próprio personagem título fica de lado e não tem nem perto da mesma presença e força que nos filmes dos anos 90. Aqui, Candyman é apenas como qualquer assassino sobrenatural de slashers genéricos, um bicho-papão sorridente e que não possui uma única fala (!!!!), sendo completamente esvaziado da tensão e força psicológica da brilhante performance do Tony Todd.
A Negra de...
4.4 71Além de uma obra muito forte sobre os efeitos da colonização europeia na África, imigração, relações de trabalho e identidade, "A Negra de..." é um filme que dialoga tanto com o Brasil e nossa própria herança escravista, que diz tanto sobre a realidade que se perpetua no Brasil de 2023, que é muito difícil pensá-la como uma produção estrangeira ou mesmo uma história temporalmente distante, no ano em que o filme completa 57 anos. Não é simplesmente um filme que merece ser visto, mas que deve ser visto, discutido e divulgado.
Pode ser encontrado, completo e legendado, no canal Cine Antiqua III, no YouTube.
A Crônica Francesa
3.5 287 Assista AgoraDaqui a 50 anos descobriremos que A Crônica Francesa não passou de um elaborado manifesto contra o maximalismo, a verborragia e a ironia.
Três Estranhos Idênticos
4.0 214 Assista AgoraA história dos trigêmeos, por si só, é muito interessante. Soube dela anos atrás e só depois de ler uma reportagem é que descobri que um documentário havia sido feito. Entretanto, o filme não se justifica e deixa a sensação de potencial desperdiçado nas mãos de um documentarista pouco habilidoso.
A abordagem se limita ao superficial, apenas com diversas pessoas falando sobre o que aconteceu em 1980, com o encontro dos três, e 17 anos depois, com a descoberta de que haviam sido parte de um experimento científico. A sobreposição da voz dos entrevistados por simulações dramatizadas do que é dito não acrescenta à experiência e conferem ao documentário um aspecto batido de reportagem de TV. As entrevistas, por sua vez, são claramente ensaiadas, com olhares dramáticos para a câmera, chavões (um "oh my god" boquiaberto, um "holy shit" de olhos esbugalhados) e expressões corporais exageradas que, por sua artificialidade, são muito distrativos. Também desapontam por nunca ultrapassarem a simples narração de fatos, já que os entrevistados nunca são instigados a ir além disso. Mesmo quando chegamos à revelação sobre o estudo científico, o documentarista nunca explora as questões temáticas que derivam dos próprios fatos apresentados, como os limites da ciência, saúde mental (tratada desastrosamente nas entrevistas) e a questão filosófica do determinismo artificial, com a descoberta de que não só as vidas dos três haviam sido moldadas, orientadas e manipuladas por estranhos, mas que todos os membros das suas famílias também serviram de cobaias.
Enquanto reportagem, Três Estranhos Idênticos pode entreter por se tratar de uma história única e absurda, que realmente te deixa curioso no primeiro contato. Já enquanto documentário, nunca deixa o lugar-comum e não tem qualquer razão para se prolongar por 96 minutos. Se sua única vontade é conhecer a história, recomendo procurá-la em qualquer site de notícias ou mesmo um vídeo no youtube ou episódio de podcast. Serão mais rápidos e não devem perder para esse filme em questão de conteúdo — talvez, nem mesmo em forma.
O Substituto
4.4 1,7K Assista AgoraO Substituto é um compilado superficial e sem foco de uma variedade de tragédias pessoais e sociais que, sim, embora existam no muito real, aqui são transformada num grande CIRCO DA MISÉRIA.
Tudo aqui é extraordinariamente manipulador, o mais puro suco do pessimismo pelo pessimismo, como poucas vezes vi num filme. Violência doméstica, idoso com Alzheimer, prostituição infantil, tortura de animais, artista incompreendida, pedofilia, estupro, suicídio, depressão, dependência química, agressividade física e verbal etc etc. Nada basta para O Substituto, que só falta contratar um assassino de aluguel para matar toda sua família numa última tentativa de te fazer chorar.
As personagens nunca ultrapassam a dimensão da caricatura, um samba de uma nota só implorando que o espectador sinta pena. O texto é limitado a um discurso presunçoso de revolta grosseira disfarçada de visão crítica de mundo, cheio de dramalhões subdesenvolvidos e frases de efeito sofríveis. A trilha sonora não se contenta em ser genérica e melodramática, ela é INCESSANTE — fechem os olhos e escutem esse filme. A música não para! Somente alterna entre o atordoante e o melancólico.
O final, embora previsível, não é menos insultante. Aquele desfecho era a última grande tragédia que a história ainda não tinha prostituído para forçar o espectador a chorar e se iludir a pensar que existe profundidade e reflexão nesse show de horrores. A cereja de sofrimento num bolo queimado de auto-miseração.
É muito raro eu assistir a um filme que não possui uma única qualidade redimível, mas até mesmo o talento e habilidades dos atores são completamente banalizados pelo roteiro, direção de atuação, fotografia e edição.
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Uma observação final: A nota altíssima que esse filme possui no Filmow — e alta assim, ele só tem aqui — só pode ser explicada por um efeito bola-de-neve em que os usuários temem não gostar desse filme, talvez até subconscientemente, ao ver a nota média. Indício disso é que até mesmo aqueles que deixaram comentários negativos não se atreveram a dar uma nota menor que 3. E eu não questiono a possibilidade de alguém gostar desse filme!!! De jeito nenhum! O que me estranha demais é a comunidade do Filmow tê-lo colocado num pedestal tão surreal que não se repete em nenhum outro ambiente na internet, nem entre a crítica especializada (entre a qual a recepção do filme foi de mista a negativa), nem entre o público.
A quem precisa ler isso, aqui está: Tudo bem não gostar um filme do qual muita gente gosta! Tudo bem dar uma nota baixa e indicar o que te desagradou! Acreditem!
Quando as Mulheres Esperam
3.7 18 Assista AgoraDos 16 filmes do Bergman que assisti até hoje, Quando as Mulheres Esperam é, com certeza, o mais esquecível. Na verdade, é o primeiro dele de que não gosto. Há momentos visualmente interessantes e Eva Dahlbeck, com seu carisma grandioso e sempre apaixonante, garante a única parte do filme que me agradou. Como a história da sua personagem, Karin, toma apenas 24 dos 107 minutos de filme, não é suficiente para salvar todo o resto, mas são 24 minutos tão divertidos que me impedem de dizer que me arrependi de assistir até o fim.
Califórnia
3.5 302Pouca coisa mais entediante que filme brasileiro tentando ser filme americano genérico e sendo ainda mais insignificante e sem conteúdo que isso. É aquilo né? Trilha sonora e referência à cultura pop não faz filme, faz comercial.
A Morte do Demônio
3.2 3,9K Assista AgoraHá 10 anos, quando vi Evil Dead (2013) pela primeira vez, não gostei dele. Com o passar do tempo e a memória da experiência de assisti-lo ficando menos clara, passei a me perguntar se não fui injusto, se não o comparei indevidamente com os filmes do Raimi, de que eu já era muito fã. Ontem, quando eu o reassisti, algumas lembranças das impressões que tive naquela época retornaram. Sinto que gostei dele um pouco mais dessa vez, mas percebi que aquelas primeiras impressões não mudaram tanto e que não tinham qualquer relação a trilogia original.
Exatamente como naquela época, achei a maquiagem e o gore magníficos, um banquete aos olhos e o grande destaque desse filme. A criação de uma história própria para as novas personagens é um grande acerto, pois lhe permite uma existência própria e evita um dos grandes problemas de tantos outros remakes e reboots dos anos 2000: querer apresentar uma versão alternativa/substituta do material original, que em sua época foi inovador, transformando-o na mais genérica porcaria. Vimos isso com Halloween (2007 e 2009), O Massacre da Serra Elétrica (2003), A Hora do Pesadelo (2010) e muitos outros (infelizmente). E muito embora nenhuma personagem tenha um resquício do carisma do Ash Campbell, Mia é uma figura muito interessante e suas transformações conversam muito bem com cada um dos três atos da história.
Meu problema aqui está na execução e edição do filme e na direção dos atores. Apesar da seriedade absoluta que o marca desde o primeiro minuto, como bem característico dos filmes de terror dos anos 2000 e início da década passada, em geral, Evil Dead carece de tensão. E é estranho contrastar isso com efeitos visuais tão bem feitos e asquerosos. Esse filme consegue ser monótono apesar das personagens vivenciarem os eventos mais perturbadores e surreais das suas vidas e que só se intensificam após começarem. Com exceção de Mia, que passa pela abstinência do vício em heroína, as personagens são totalmente opacas, pouquíssimo expressivas, e isso é especialmente problemático com David, já que ele é o único com vínculos afetivos com cada uma das pessoas do grupo e suas reações não condizem com a intensidade do que acontece em tela.
Se eu quisesse fazer alguma comparação com o Evil Dead de 1981, o filme mais sério da trilogia original, é que esse novo filme não tem personalidade própria, apenas se conforma e se dilui entre outros filmes da sua época. Se os efeitos visuais práticos garantem momentos memoráveis, é somente pela gravidade da violência e nunca para além dela. Evil Dead (2013!) é CHATO — e isso é terrível para um filme de terror.
Nomadland
3.9 896 Assista AgoraNomadland me causou duas impressões distintas que são difíceis de conciliar.
Por um lado, é um filme que consegue ser bonito, tanto em sua linguagem visual quanto dramatúrgica. Fern é uma personagem cujos dramas pessoais são marcados por muitos vazios e dores não ditas, mas também possui um senso de dignidade, franqueza e gentileza muito genuínos. Frances McDormand nunca reduz sua personagem a um totem de melancolia e cinismo velado, tampouco a uma caricatura de perseverança cega, como poderia ocorrer, mesmo sem essa intenção, nas mãos de um ator de menor habilidade e sutileza. Outro ponto forte do filme são os relatos das experiências dos outros nômades, que não são interpretados por atores profissionais, mas por pessoas que realmente vivem/viveram naquelas condições.
Por outro lado, o comentário político que é prenunciado, não apenas no conceito básico do filme, mas também no estilo semi-documental da sua edição, nunca ultrapassa ou mesmo parece querer ultrapassar a superfície. Essa covardia é sentida e impede Nomadland de cumprir com sua proposta. Na verdade, faz pior, trazendo uma representação desconfortavelmente acrítica e fictícia das condições de trabalho na Amazon, símbolo e exemplo maior da precarização do trabalho e destruição de economias locais e regionais dos EUA — para me limitar ao escopo territorial do filme — por monopólios e práticas predatórias de grandes empresas. Também a crise de 2008, que provocou/contribuiu substancialmente para os fatos dessa história, bem como das histórias reais que a inspiraram, é reduzida a um único diálogo de frustração contra a insensibilidade de três personagens terciários, que nada servem à obra além de contrates unidimensionais ao senso de comunidade dos nômades. E quanto aos relatos nômades, que têm base nas histórias reais dos próprios atores e são muito fortes, também se frustram na confusa fragilidade política da abordagem. Diante disso, não é difícil compreender por que muitos dos que não gostaram de Nomadland o acusam de romantizar a pobreza. Não sei se concordo completamente com o termo, mas também não posso deixar de ver a simplificação e higienização de uma crise muito mais severa do que o filme tem coragem de representar.
Existe, aqui, uma história central (privada, sobre o luto da protagonista) que consegue ser tocante. Entretanto, a passividade do filme e sua relutância a encarar as questões estruturais que causam e perpetuam a pobreza nos EUA, ou mesmo o fenômeno social que ele deseja representar, o impede de alcançar a profundidade que o objeto da obra demanda. Um bom filme e eu gostei dos seus acertos enquanto o assistia, mas é impossível negar que também foi uma decepção.
A Gaiola das Loucas
3.6 223 Assista AgoraThe Birdcage é um dos raros casos, mas sempre muito bem vindos, em que um remake americano de um filme de outro país é tão bom quanto o original. Há 3 meses, quando assisti La Cage aux Folles, fiquei surpreso com um filme de 45 anos ter envelhecido tão bem, tanto em termos de comédia quanto em representação LGBT+, e agora posso estender o mesmo elogio à adaptação de 1996. Se, num primeiro momento, a caracterização dos protagonistas soar exagerada e desagradável a audiências de 2023, que têm a amarga lembrança das décadas de vis e preguiçosos estereótipos utilizados na comédia para fazer chacota de homens gays, não se enganem: como no original francês, o que primeiro parecem ser os velhos estereótipos de sempre surgem justamente para desafiá-los e satirizar as falsidades do moralismo conservador. The Birdcage foi um marco no cinema americano e é honestamente afetuoso e atencioso com seus personagens. Isso é tão evidente hoje quanto foi em 1996 e é uma da razões para o filme ainda ser tão querido.
Robin Williams e Nathan Lane são tão geniais quanto Ugo Tognazzi e Michel Serrault, com performances excelentes e memoráveis tanto nos mais absurdos momentos cômicos, quanto nos mais singelos momentos de ternura. O roteiro e a direção, igualmente, acertam em cheio na transposição do texto original ao estilo do humor e do cinema americanos, sem se sujeitar a realizar uma cópia desajeitada dos franceses. Mike Nichols é também diretor de The Graduate e Quem Tem Medo de Virginia Woolf?, e aqui não resta dúvidas de que seu talento não se limita ao filmes de drama.
Chá e Simpatia
4.3 15Não me surpreendeu, ao ler sobre o processo de adaptação da peça do Robert Anderson (por ele próprio), que a primeira e última cenas do filme foram adições para apaziguar os censores de Hollywood, que nunca permitiriam que o conteúdo da obra original chegasse às telas em sua integralidade. Afinal, elas destoam, muito claramente, de todo o resto — ou talvez seja mais adequado dizer que *elas* são o resto. O que me surpreendeu é que, apesar de todas as modificações necessárias (e foram muitas!), Robert Anderson e Vincente Minnelli não só foram bem sucedidos em retratar os temas da peça, mas também conseguiram desenvolvê-los numa discussão de inesperada nuance e topicamente atual sobre masculinidade, papéis de gênero, heteronormatividade e opressão.
Chá e Simpatia, o filme, pode até ser mais um na infeliz lista de obras queer* violadas pela imperdoável censura homofóbica de outrora — ou mesmo de hoje, sejamos sinceros —, que sequer permitiu o uso da palavra homossexual ou que pairasse alguma dúvida a respeito do protagonista, ao fim da história, mas é extraordinário o êxito de Anderson, Minelli e todos os envolvidos em conseguir realizar um trabalho tão poderoso na Hollywood de 1956.
* Ser uma obra de temática queer não significa que seu protagonista deve, necessariamente, ser (confirmado) LGBTQ+.
A Sorte Grande
3.4 89 Assista AgoraPouca coisa em To Leslie é mais que meramente apropriado, que de destaque memorável, mesmo, só tem a atuação da Andrea Riseborough. Como sua performance é nada menos que excelente, o filme não é tão prejudicado por depender exclusivamente dela para imergir quem assiste, e permite uma boa experiência.
Leslie, a personagem, não é uma novidade, mas é genuinamente humana, se contradiz, se sabota, enfurece e também comove. Há certos saltos para que a história se alinhe no caminho da sua redenção, buscando fugir de desenvolvimentos mais cínicos e complexos, mas é isso que também impede o filme de alçar um voo mais alto — isso e o fato de que os demais personagens nunca são mais que referências à existência de um passado ou instrumentos para sua salvação.
Mulher Marcada
4.1 23Mulher Marcada é tematicamente ousado para uma época em que o Código Hays já asfixiava a liberdade artística em Hollywood. É um feito ainda mais impressionante quando levamos em conta o mérito de conseguir apresentar as 5 personagens que trabalham como prostitutas — ou melhor, "nightclub hostesses", como aprovado pela censura — nem como monstros imorais e corruptores de homens, nem como ingênuas e encantadoras vítimas da vida, pelo simples fato de serem as protagonistas, como tenderia a outra faceta da misoginia que ainda dita a forma como personagens femininas são escritas e retratadas por homens.
Mary Dwight, personagem da Bette Davis, é uma mulher que sabe defender seus próprios interesses e se impõe para garantir o bem estar daqueles com que ela se importa, mas tampouco se arrisca para evitar a desgraça alheia, quando não lhe convém. Sua tragédia decorrerá da própria crença de que ela é sagaz demais para cair nas mesmas armadilhas que vitimaram tantas outras mulheres nas mesmas condições que ela. À medida que suas circunstâncias mudam, ao longo do filme, Davis tem diversas oportunidades de revelar a complexidade da sua personagem e não as desperdiça. Vez ou outra, sua performance se beneficiaria se fosse mais contida, mas nada que a comprometa. Após anos de luta para conseguir papéis mais sérios e complexos, ela não desperdiçou seus esforços aqui.
Seu maior problema surge nos diálogos e estrutura da narrativa, que não são os mais inspirados, prejudicam a fluidez da história e a impedem de alcançar um patamar mais alto de qualidade e sensibilidade. O filme também tropeça numa edição, por vezes, genérica e opaca, que nada apresenta além do esperado para a época. Talvez seja mais justo chamá-la pelo que ela é, datada, pois não haveria razão para não ser assim, mas nem por isso foi algo que me deixou de chamar minha atenção de forma negativa. Sendo menos ranzinza, a fotografia garante alguns momentos de genuína beleza, com destaque para a última cena, mérito de George Barnes — melhor lembrado por seu trabalho em Rebecca, do Hitchcock. No entanto, a impressão negativa com alguns dos elementos técnicos veio como uma pequena decepção, já que reconheci o nome do diretor, Lloyd Bacon, por ter visto um breve trecho de outro filme seu, Rua 42, que me impressionou, e por isso vim esperando um filme estilisticamente mais interessante. Muito embora não seja o melhor trabalho dos seus atores, nem da direção e da equipe técnica, Mulher Marcada é um bom filme, uma boa história, e ainda merece ser visitado.
Super Mario Bros.: O Filme
3.9 781 Assista AgoraAdaptação bastante competente, com os ocasionais vícios característicos (e irritantes) do estilo do estúdio Ilumination. É verdade que o roteiro não é tão bem estruturado e que por vezes parecemos navegar entre ininterruptos episódios de grandes acontecimentos, sem que seja haja o devido tempo de construção para que aquele momento tenha o devido impacto, mas é também verdade que o produto final diverte.
Quem sabe com os próximos filmes — que, com certeza, virão —, já sem a missão de reintroduzir uma franquia consagrada, possam desacelerar o feed frenético de referências aos jogos e trabalhar os elementos da história de forma mais focada. Destaque muito merecido para a dublagem brasileira.
Agora só preciso saber: quantas mortes o Mario causou
ao transportar o castelo do Bowser para o Brooklin?
Christine, O Carro Assassino
3.3 670 Assista AgoraHá muitos acertos em Christine, tanto como adaptação do livro do King quanto como um filme por si só. A qualidade da direção do John Carpenter, que um ano antes trouxe ao mundo sua obra-prima, The Thing, é inquestionável. E se um Plymouth Fury vermelho se transforma numa personagem tão crível e tangível como Christine, é um mérito indiscutível da direção.
No entanto, enquanto o êxito com Christine, a personagem, é parte do que torna a história tão fascinante e memorável, o completo abandono de outros dois personagens centrais, Dennis e Leigh, é o que me impede de dizer o mesmo sobre seu encerramento. Ao nos aproximarmos do encerramento, surge um bizarro abismo lógico entre a ação dos personagens e o que ocorreu até aquele momento. Não há qualquer motivo para que Dennis e Leigh pensem em Christine como algo sobrenatural ou como qualquer coisa além de um objeto pelo qual o Arnie ficou obcecado. E com certeza, o fato da primeira interação significativa entre esses dois personagens ocorrer somente nos 20 mins finais do filme* escancara a estranheza que esse salto lógico traz à última parte da história. Assim, apesar dos seus méritos, Christine se apressa a uma conclusão vazia e anticlimática, que consigo só traz mesmo os créditos finais do filme. Mas sendo justo, tropeços à parte, o filme nunca se torna uma experiência desagradável, nem deixa a impressão de ser um trabalho dispensável da filmografia do Carpenter.
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*Encontrei um vídeo que compila cenas deletadas, a maioria das quais dava mais espaço para Dennis e Leigh, e foram claramente pensadas para que a estrutura do filme fizesse sentido. Uma pena terem sido cortadas da versão final do filme, pois sua adição (das cenas essenciais) não teriam prolongado tanto a duração total.
Uma observação (COM SPOILER do livro) sobre a estranha escolha de trazer um elemento do livro que só fazia sentido com outros elementos que foram descartados na adaptação:
Por alguma razão, Carpenter decidiu transformar os irmãos LeBay em uma única pessoa, tanto o senhor que vende o carro a Arnie quanto o que adverte Dennis sobre as mortes ocorridas no veículo. Essa mudança é estranha porque, tanto no livro quanto no filme, Arnie começa a falar e agir como o LeBay — mais notável no uso da gíria fictícia "shitter" e na repetição, palavra por palavra, de uma fala anterior do personagem —, mas aqui esse senhor não é o dono da Christine, mas irmão do falecido dono, que não vemos, mas sabemos que era obcecado pelo carro.
No livro, isso ocorre porque o dono do carro, que é aquele que faz a venda ao protagonista, realizou sacrifícios humanos para que seu espírito pudesse continuar vivo no veículo, e após vendê-lo, suicida-se e passa a influenciar/possuir Arnie através de Christine. Seu irmão, muito diferente dele, é um homem gentil com quem Dennis entra em contato ao ficar preocupado após perceber a influência do carro na radical transformação do amigo.
Meu Primeiro Verão
3.9 57 Assista AgoraTão preocupado com ~a e s t h e t i c s~ e ser fofo que nem arranha a superfície de qualquer coisa que possa ser chamada desenvolvimento de trama. O produto final é um amontoado desajeitado de clipes musicais românticos – e dos mais genéricos – que põe em questão a necessidade de transformar em longa metragem uma ideia que mal se desenvolveu suficientemente para ser um bom curta.
Não é inassistível, mas é francamente enfadonho e decepcionante se você espera um mínimo de enredo, em vez de inúmeros clipes de duas adolescentes infantilizadas comendo doces, trocando beijos de batom de frutas e sendo fofinhas. O maior problema aqui é que a ambientação da trama é completamente descartada pela realizadora, que nada faz com a proposta. Cláudia, em especial, é escrita de forma completamente inconsistente, hora agindo como uma criança pequena que ainda está aprendendo a juntar palavras em frases, hora esquecendo que toda a ideia da personagem é ser uma adolescente que viveu completamente isolada de contato humano, salvo pela mãe depressiva.
Miss Violence
3.9 1,0K Assista AgoraNão sei se sequer consigo dizer que Miss Violent é um filme bom ou ruim. Já mal consigo avaliá-lo com uma nota. É claro, nada disso importa de verdade, já que estrelas e binômios como bom-ruim apenas fazem sentido no sistema de avaliação de cada pessoa — e mesmo assim é impossível não ser inconsistente.
No entanto, Miss Violence me perdeu de vez com uma das suas cenas e nada tira a impressão amarga de o filme caiu na armadilha de se tornar uma exploração da miséria alheia em vez de obra de confronto de uma realidade impiedosa e repugnante. Falo, é claro,
de quando nos é mostrados Myrto, de 14 anos, ser vítima de prostituição, estupro, agressão física e incesto numa mesma cena,
A conclusão,
com o assassinato do miserável
Piedade
3.6 17Mais um clássico do gênero filme grego sobre gente maluca
A Gaiola das Loucas
3.7 94 Assista AgoraNão sei exatamente o que (ou se) eu esperava, mas o que quer que fosse, com certeza não era uma obra que envelheceu tão surpreendentemente bem quanto La Cage aux Folles.
Todo o filme acompanha o ponto de vista de Renato e Albin, e não do filho heterossexual que traz o estopim da história. De cara, é um diferencial enorme quando até a década passada o que não faltava era filme "bem intencionado", supostamente buscando "humanizar" homossexuais, ao mesmo tempo que, se muito, os retratavam como chacotas inofensivas e que só por isso não deveriam ser perseguidas. Assim, qualquer desconforto que Laurant possa sentir em relação aos pais não tropeça numa promoção pedante de auto-censura benevolente. Em momento algum Renato, Albin ou qualquer um que trabalhe no clube são mostrados como pessoas que deveriam se envergonhar das suas personalidades ou gostos, muito embora estejam cientes do repúdio dos ignorantes. Não só isso, são tratados com a mais natural dignidade pelos vizinhos e comerciantes de onde moram, com exceção dos patéticos idiotas que o filme satiriza.
Há, sim, uns tropeços que vão contra a sensibilidade buscada pela história. (1) Laurant, bom moço, sorridente, filhinho querido do papai Renato, não faz muita questão de levar em consideração o que sua outra figura parental, Albin — que descobrimos que também o criou desde bebê, mesmo sem relação biológica com ele. Em resumo, também seu pai —, está sentindo quando ele deixa bastante claro que não quer ele ali para conhecer a família da noiva. Só quer que ele vá embora. Agora. (2) Algo mais inofensivo, e nada espantoso para a época, a bobagem de retratar um casal gay em termos de sujeito masculino e sujeito feminino da relação. (3) Jacob, que se está ali para fazer contraste ao racismo descarado da família da noiva... bem... é o que há.
Sem dúvidas, La Cage aux Folles é exceção que escapa da armadilha de tantos outros filmes reputados como marcos histórico-sociais — que, apesar da sua importância, trazem abordagens desengonçadas que, no mínimo, provocam justificável desconforto a audiências modernas. Quase 5 décadas desde seu lançamento, não só é eficiente na sua intenção de prestar o devido respeito a um grupo marginalizado e satirizar seus detratores, como ainda é muito engraçado, feito que nem toda comédia, muito menos uma sátira social, consegue sustentar ao longo de várias gerações.
Obs: Momento muito inesperado, francamente surpreendente e que preciso destacar: simplesmente uma personagem que é homem heterossexual, casado, pai de 6 filhos (em breve, 7) e que trabalha como drag queen no clube, sem que haja um mínimo de alvoroço sobre isso no filme — um filme de 1978.