Não sei exatamente o que (ou se) eu esperava, mas o que quer que fosse, com certeza não era uma obra que envelheceu tão surpreendentemente bem quanto La Cage aux Folles.
Todo o filme acompanha o ponto de vista de Renato e Albin, e não do filho heterossexual que traz o estopim da história. De cara, é um diferencial enorme quando até a década passada o que não faltava era filme "bem intencionado", supostamente buscando "humanizar" homossexuais, ao mesmo tempo que, se muito, os retratavam como chacotas inofensivas e que só por isso não deveriam ser perseguidas. Assim, qualquer desconforto que Laurant possa sentir em relação aos pais não tropeça numa promoção pedante de auto-censura benevolente. Em momento algum Renato, Albin ou qualquer um que trabalhe no clube são mostrados como pessoas que deveriam se envergonhar das suas personalidades ou gostos, muito embora estejam cientes do repúdio dos ignorantes. Não só isso, são tratados com a mais natural dignidade pelos vizinhos e comerciantes de onde moram, com exceção dos patéticos idiotas que o filme satiriza.
Há, sim, uns tropeços que vão contra a sensibilidade buscada pela história. (1) Laurant, bom moço, sorridente, filhinho querido do papai Renato, não faz muita questão de levar em consideração o que sua outra figura parental, Albin — que descobrimos que também o criou desde bebê, mesmo sem relação biológica com ele. Em resumo, também seu pai —, está sentindo quando ele deixa bastante claro que não quer ele ali para conhecer a família da noiva. Só quer que ele vá embora. Agora. (2) Algo mais inofensivo, e nada espantoso para a época, a bobagem de retratar um casal gay em termos de sujeito masculino e sujeito feminino da relação. (3) Jacob, que se está ali para fazer contraste ao racismo descarado da família da noiva... bem... é o que há.
Sem dúvidas, La Cage aux Folles é exceção que escapa da armadilha de tantos outros filmes reputados como marcos histórico-sociais — que, apesar da sua importância, trazem abordagens desengonçadas que, no mínimo, provocam justificável desconforto a audiências modernas. Quase 5 décadas desde seu lançamento, não só é eficiente na sua intenção de prestar o devido respeito a um grupo marginalizado e satirizar seus detratores, como ainda é muito engraçado, feito que nem toda comédia, muito menos uma sátira social, consegue sustentar ao longo de várias gerações.
Obs: Momento muito inesperado, francamente surpreendente e que preciso destacar: simplesmente uma personagem que é homem heterossexual, casado, pai de 6 filhos (em breve, 7) e que trabalha como drag queen no clube, sem que haja um mínimo de alvoroço sobre isso no filme — um filme de 1978.
perceber que mesmo em ambientes tão saudáveis para a expressividade masculina, que permitiram o florescimento e a intensidade daquela amizade, algo tão raro e genuíno como a relação de Remi e Leo pôde ser destruída tão brutalmente. Séculos, ou mesmo milênios de perseguição e vilificação de tudo supostamente não-heterossexual e não-masculino deixam raízes muito profundas. Não bastam as poucas décadas do ainda frágil progresso que temos vivido para impedir a continuidade do dano.
"Só quando muda, quando você se envolve, é que você ouve o que ela (a composição de Bach) realmente é. É uma pergunta. E uma resposta — que levanta outra pergunta. Há uma certa humildade em Bach. Ele não está fingindo ter certeza sobre qualquer coisa porque sabe que é a pergunta que envolve o ouvinte. Nunca é a resposta, certo?" (Lydia Tár)
Desde que me interessei por cinema, já assisti uma boa quantidade de filmes que podem ser pensados como estudos de personagem, mas acredito que nenhum que se assemelhe a Tár. É um filme que não se envergonha de ser denso e que não faz concessões ao espectador, seja na utilização de linguagem técnica, nos diálogos entre personagens conhecedores do mundo da música erudita ou mesmo na própria vida privada de Lydia Tár. Há, sim, ramificações temáticas que ultrapassam a pessoa da protagonista, mas ela é o filtro, a fronteira, o mapa, a bússola e a lupa que orienta tudo.
A conhecemos quase episodicamente, e não por mera escolha narrativa, mas porque é somente assim que Tár concede aos outros a sua presença. Se aqui existem uma protagonista e diversos coadjuvantes, não é pela simples classificação própria das artes cênicas, mas porque não há espaço para outras existências complexas na vida da intocável maestro. Entre as muitas perguntas levantadas, gradualmente, a inabalável importância (ou senso de auto-importância) de Lydia revela suas rachaduras. E então vamos descobrindo uma mulher que a todo momento se refugia no inalcançável pico do seu ego, seja em isolamento emocional ou físico, e que se mostra intencionalmente alheia à sua própria tragédia, ao fato de que ela mesma a arquitetou, e de que seu auge foi imediatamente seguido por uma queda livre, como alguém que não apenas atreveu voar perto demais do Sol, mas que errou duplamente ao fazer isso de olhos vendados.
Essa é apenas minha tentativa de organizar meus pensamentos. Se tive alguma certeza ao fim de Tár é que há muito mais a ser descoberto e que assisti-lo uma vez só não é nem perto de suficiente para digerir a criatura concebida pela Cate Blanchett e pelo Todd Field.
Estava há alguns anos na minha lista para assistir, e de início parecia promissor, mas chega a segunda metade do filme e todo o desenvolvimento temático, ambientação e boas atuações voam pela janela, para nunca mais voltarem. E isto foi muito dito nos comentários abaixo, mas eu também preciso repetir porque é inegável: parecem dois filmes diferentes, tamanha a dissonância entre as duas partes. Uma pena.
Bobinho, muito mesmo (de propósito), mas tem seus momentos divertidos. O filme traz uma atualização bastante pertinente aos nossos tempos da trama de Brinquedo Assassino — a comparação é inevitável, embora seja mais uma sátira do que um slasher. A M3GAN, em si, é muito bem feita e animada. E embora ela se encaixe de forma orgânica naquele mundo, ela ainda trasmite a inovação tecnológica que representaria e, muito adequadamente, vem mergulhada no saboroso suco do uncanny valley que o filme pede.
Por outro lado, o que prejudica bastante a história, que já segue um caminho extremamente convencional, é que todos os personagens são escritos com a profundidade de um pires. Isso não seria um problema tão grande se fosse restrito aos personagens secundários, que por mais que sejam repetitivos e chatos em cada uma das suas aparições, estavam ali apenas como potenciais vítimas da M3GAN. O que não dá certo é quue a falta de expressividade ou de um mínimo de complexidade na construção dos personagens também atinge o que deveria ser o núcleo emocional da história. Cady acaba recebendo um tratamento um pouco melhor que Gemma — que é mais robótica de a própria M3GAN —, mas nada muito equiparável ao trauma e à perda que ela sofreu. Por essa razão, é muito difícil se investir na relação entre sobrinha e tia/guardiã ou mesmo sentir que qualquer coisa que acontece no filme é muito significativo para elas.
Enquanto terror, carece de tensão; enquanto sátira, muitos outras histórias já trabalharam esses temas de forma melhor. Ainda assim, M3GAN tem seus acertos e diverte nos seus momentos mais absurdos.
Você sabe que está imerso nesse filme quando espirra e seu cérebro imediatamente registra uma coisa tão comum como um pecado capital.
Por mais que tanto este quanto o primeiro Um Lugar Silencioso não sejam, tematicamente, os filmes mais complexos do gênero, sua execução resulta em 1h40min de uma tensão tão divertida que é difícil achar defeitos suficientes que justificariam uma nota mais baixa que 7 estrelas. É verdade que, por vezes, em ambos filmes, os personagens se comportam muito mais como artifícios de roteiro para levar a história na direção escolhida pelo John Krasinski do que pessoas que conhecem e agem com a devida cautela de alguém que sobreviveu por tanto tempo num mundo como aquele. Apesar disso, ao ver essa sequência e não só relembrar, mas reviver a tensão da parte 1, é difícil não se entusiasmar. Em franquias, são raros os filmes que fazem jus à obra original, mas mesmo não dispondo do fator novidade do primeiro filme ou explorando muitos novos elementos daquela realidade pós-apocalíptica, Parte 2 honra seu legado e entrega um resultado tão potente quanto ele.
Queria ter gostado, achei a ideia muito boa quando vi na TV uns trechos da primeira temporada seriado que se originou desse filme, mas o humor não foi pra mim. Até começa de forma agradável, introduzindo a dinâmica da família, mas à medida que o filme avançava crescia em mim a frustração por não conseguir dar uma só risada. A parte inicial até conseguiu me fazer dar um sorriso de canto de boca, com algumas referências muito boas a filmes clássicos, mas isso também acabou cedo. Quando chegou ao clímax do filme, então, afundou de vez para mim, que já estava agoniando com tanto falatório dos personagens da cidade. Ali, os 91 minutos de duração já pareciam eternos.
Tive duas surpresas com esse filme: a primeira, sempre muito boa, a de encontrar um filme de que nunca ouvi falar e ele ser ótimo; a segunda, a abordagem que fugiu completamente do que eu esperava ao ler a sinopse.
O foco de As Duas Irenes, em vez do simples drama familiar pela descoberta da traição do pai pela Irene nº 1, é muito mais abrangente: engloba os conflitos internos da protagonista em relação ao seu lugar dentro daquele núcleo familiar, os dilemas da pré-adolescência e formação da(s) Irene(s) enquanto indivíduo(s), os dilemas de classe e gênero pelo contraste das duas famílias (uma de classe média, a dita família tradicional brasileira; a outra, de classe trabalhadora e comandada, na prática, por uma mãe solo) e a mítica — aqui tornada realidade — existência de um duplo, a meia-irmã recém-descoberta, que aos poucos se confunde e se revela na outra.
Não quero me alongar e correr o risco de descrever muito o que deve ser visto em primeira mão — ou pior, descrever mal — então aqui vai minha modesta impressão: é uma das abordagens mais bonitas que encontrei em histórias de coming of age, e toda vez que me pego pensando num trecho desse filme me impressiona a sensibilidade com que as duas irmãs são retratadas. Fica muito claro como tanto o diretor e roteirista, Fábio Meira, quanto as atrizes, Priscila e Isabela, conhecem bem suas personagens. Uma verdadeira pérola do cinema brasileiro e que merece muito ser descoberta.
Tinha visto esse filme uma só vez, ainda criança, acho que num sábado da TV Globinho.. Talvez justamente por isso sempre me impressionou a força daquela memória, até porque com os filmes que eu alugava e de que gostava muito eu tinha um hábito de reassisti-los antes de devolver o DVD, o que não pude fazer com O Cão e a Raposa.
Revendo já adulto, confirmei que o núcleo dessa história — esclarecendo: o que de fato é parte da narrativa — é mesmo bastante memorável. Ocorre que o filme tropeça numa péssima tendência das animações infantis ocidentais de acreditar que o público-alvo não seria capaz de apreciar momentos de quietude e reflexão. A história de Tod e Copper (ou Dodó e Toby) é constantemente interrompida por segmentos enfadonhos de um núcleo irrelevante de personagens de alívio cômico, que só prejudicam a fluidez da narrativa, tanto por serem bastante esquecíveis quanto por não serem muito engraçados, afinal.
A produção de O Cão e a Raposa é também infame pela rixa que gerou nos estúdios de animação da Disney. O comando da empresa, que diminuía o valor das animações desde a morte do Disney, interferiu constantemente nesta obra, impondo uma série de mudanças que enrijeceu o trabalho concebido pelo time de fato encarregado de realizá-lo e levou diversos animadores talentosos a deixa o estúdio, mais notavelmente, Don Bluth. Uma mudança notória e que prejudica o tom da segunda metade do filme, é que
Chief (Chefe) deveria ter morrido naquele acidente de trem, como na obra que inspirou o filme, e o trauma daquela perda — muito maior que uma mera pata quebrada — é o que enfim e compreensivelmente tornaria Copper contra Tod.
Também diminui o impacto da história uma outra tendência dos filmes da Disney da época, mas aí já não sei dizer se foi imposição do estúdio: o romance instantâneo e forçado introduzido já nos momentos finais do filme. Como em Mogli, o protagonista masculino troca um único olhar com uma figura feminina, que corresponde com um movimento de olhos bizarramente sensual para uma obra infantil (em Mogli, muito pior por se tratar de uma criança) e ali passa a estar todo o sentido da sua existência, ignorando completamente o que foi sua vida até então
— além de perder o melhor amigo, Tod também foi abandonado pela sua figura materna para que pudesse sobreviver
, mas nada daquilo pareceu importar a partir daquele momento. É um romance bastante irrelevante, uma personagem bastante inconsequente para a obra, mas é o que há.
É um filme de que ainda gosto, que nas qualidades que possui ainda é bastante memorável, mas que é inegavelmente inconstante e bastante simbólico do estado em que se encontravam os estúdios de animação (e a chefia) da Disney naquela época. Apesar dos defeitos, é certamente uma história bonita e ainda que merece ser conferida.
História honestamente bonita e que possui uma peculiaridade bastante curiosa em sua execução, o que me fez sentir um afeto especial pelo filme ao seu final, apesar do seu estilo de humor não me atrair.
Como somos introduzidos ao trio de personagens centrais pela perspectiva de Chengxi, o rabugento protagonista de 13 anos, em toda sua revolta, suspeita, confusão e ressentimento por tudo que ocorreu na sua vida familiar, a princípio somos privados de qualquer simpatia por sua mãe, o amante do pai ou mesmo pelo próprio garoto, eternamente ranzinza. Aos poucos, mas nunca de maneira que traia o conflito de um menino desnorteado pela dupla perda do pai — a primeira, privado da sua convivência; a segunda, definitiva — e pelo caos da vida com a mãe, somos melhor contextualizados ao que move cada uma daquelas três pessoas. Podemos até não aprovar seus erros, mas esse não é o objetivo: compreendemos como chegaram até aquele ponto. Além deles três, vamos montando o quebra-cabeças da quarta figura ali onipresente, pessoa amada por todos eles — quer reconheçam isso, ou não — o falecido pai, cônjuge e namorado. A cereja no bolo, para mim, é a forma como os flashbacks são introduzidos, se confundindo com a cena presente e elevando a representação do estado de espírito e das motivações de cada personagem.
Existem certos filmes que você sabe que vai gostar — ou melhor, presume que vai gostar. E quando, afinal, não gosta... bem... Uma História de Amor e Fúria é um desses casos para mim.
Em seu conceito, o filme antecipava algo artisticamente grandioso, mas que nunca se concretizou. O tempo é pouco e os segmentos (ou fases, como descreve a sinopse) são muitos para uma obra tão curta. Ao fim de cada era da vida do protagonista hexacentenário, cresceu em mim uma frustração aparentemente não desejada pelos realizadores, pois os segmentos não me pareceram agregar algo indispensável aos anteriores. Para piorar, também se intensificou, ao passar dos segmentos, um tom de palestrinha política tão enfadonha e grosseiramente pedante diante da superficialidade da narrativa que, também pela repetição, até manchou um pouco a memória dos acertos do filme.
Também quero acrescentar aqui uma birra pessoal com o Selton Mello, que carrego desde que assisti seu intragável O Melhor Filme da Minha Vida nos cinemas: PARA DE CONVERSAR SUSSURRANDO, DESGRAÇA!
Com acertos admiráveis, Como Nosso Pais mescla um drama familiar de conflitos e traumas geracionais com o drama interno de uma mulher que se depara com a inevitável dissonância entre ideologia e a crueza de como a vida acontece. Tem, sim, seus tropeços. Concordando com algumas das críticas mais negativas que li abaixo, é verdade que os diálogos, por vezes, contrastam com a abordagem naturalista do filme quando parecem pensados demais, ensaiados e roteirizados demais em vez de algo que sairia espontaneamente daquelas pessoas. Nem por isso acredito que diminui seu valor e a estranha originalidade que alcança no equilíbrio dos conflitos externos e internos da sua protagonista.
Um desses acertos é o fato de que Rosa nunca passa por uma grande epifania que muda tudo em sua vida. Não se trata desse tipo de história. Talvez justamente por isso, como observei ao ler os comentários abaixo,
tantas pessoas se inconformaram com o destino da protagonista ao fim do filme, principalmente por ela continuar casada com Dado (que, não, não é legal).
Mas há, sim, uma certa libertação da Rosa – ou, quem sabe, várias pequenas libertações – justamente quando, pelas suas experiências ao longo do filme, percebemos que ela passa a reconhecer e abraçar a inevitabilidade das semelhanças que tem com a mãe. Essa aceitação não vem de passividade ou do fim da contrariedade de uma vida toda entre mãe e filha, mas da compreensão de quem é aquela mulher e quem ela própria, Rosa, é, enquanto mulher.
No mundo real, o encanto do príncipe dura pouco, mas nem por isso não deixa suas marcas positivas, quem sabe até o desprendimento do medo de errar ou de se arrepender. Vemos uma daquelas pequenas libertações na modesta, mas significativa cena final do filme.
Quando Rosa, já desamarrada do temor de não conseguir controlar tudo na sua vida, também liberta a filha mais velha ao ir com ela de bicicleta para a escola, como a primogênita tanto desejava.
Igualmente, embora a revelação do início do filme marque um ápice na vida de conflitos com a mãe, é um momento de honestidade crua, dolorosa e espontânea que, no fim, acaba por permitir a Rosa enxergar, perdoar e aceitar na mãe e em si mesma tudo aquilo que ela rejeitava e temia. Essas mudanças parecem muito escondidas quando apenas olhamos para os fatos da vida de Rosa, mas é uma transformação estranhamente bonita, sendo bem sincero.
O conceito é muito interessante, assim como o design das criaturas, mas a história em si? O conflito familiar é extremamente raso e, francamente, desimportante, e as tentativas de humor são vergonhosamente ruins. Fosse mais focado no desenvolvimento do mundo ou fosse o conflito entre pai(s) e filho(s) de alguma consequência real, talvez até se redimisse em alguma qualidade. É uma pena que os roteiristas não tenham sido minimamente ambiciosos. É, basicamente, "uma pena" parece ser a forma mais apropriada de descrever Mundo Estranho.
Confesso que até ver a reação positiva do público e da crítica a Pearl, eu não pensava em assistir a esse filme. X foi interessante, visualmente muito belo e deixou claro o amor do diretor pela história do horror no cinema, mas para mim foi um tanto anti-climático e perdeu boas oportunidades com a temática. No que acertou, acertou muito bem, mas não foi uma experiência tão memorável quanto eu esperava.
Pearl, por outro lado, une horror e tragicomédia maravilhosamente, e entrega com gosto o que sua estrela precisa. Pearl, a personagem, vive numa linha tênue entre a doçura e a crueldade, a fantasia e a insanidade, a pureza e o caos. Tudo isso é alimentado por uma solidão e um vazio onipresentes que, curiosamente, embora a tornem implacável e fatal, são também o que gera empatia pela sua condição. E Mia Goth transita entre esses humores antagônicos encatadora e perturbadoramente bem. O que ela construiu e revelou ali não deixa qualquer espaço para duvidar do quão profundamente ela conhece sua personagem.
Também digno de aplausos é o próprio Ti West. Se X não me cumpriu com o que parecia oferecer no início do filme, Pearl é uma criatura tão peculiar (talvez uma verdadeira quimera cinematográfica) que a cada minuto que passa eu me pego revirando uma cena diferente na minha cabeça e volto a ficar encantado com a inventividade de tudo.
Agora, sim, posso dizer que aguardo ansioso pelo próximo filme.
Em qualquer outro trabalho independente, as atuações amadoras poderiam acrescentar um certo charme ao filme. Aqui, os atores não parecem ter qualquer noção de timing cômico e reproduzem toda fala da maneira mais desinteressante possível — ou quem sabe seja mais uma falha da própria direção do Kevin Smith. Para tornar tudo ainda mais insuportavelmente chato, toda a ideia de comédia desse filme é baseado em referências pop e tentativas de chocar o espectador, sempre batendo na mesma tecla de misoginia e babaquice injustificada, como se bastasse isso para fazer sátira e humor negro.
Em qualquer outro trabalho independente, as atuações amadoras poderiam acrescentar um certo charme ao filme. Em Clerks, escancara o quão maçante e ruim é o roteiro.
queerbaiting um filme em que a protagonista É QUEER. Não é poque a Ellie não fica com a Aster que o filme deixa de ser sobre uma personagem lésbica. Não existe baiting nenhum aqui.
Pessoal tá precisando de um dicionário lgbt se estão jogando essa palavra por aí de qualquer jeito, como se fizesse sentido.
Dito isso, minhas impressões: não sou fã de comédias românticas, nem costumo procurar por filmes do gênero, mas fiquei curioso em como uma trama inspirada em Cyrano seria desenvolvida com uma protagonista lésbica. E afinal, fui muito bem surpreendido por como a Alice Wu aborda as convenções do gênero no filme, mas também imprime na história uma identidade bastante própria, favorecendo o crescimento da Ellie e optanto por uma rota não-tradicional, até mesmo intimista. E é essa ousadia que, pela sessão de comentários, parece não ter agradado tanto alguns dos que assistiram ao filme, mas para mim com certeza tornou a experiência do filme muito mais rica e memorável — o que eu realmente não esperava de uma comédia romântica, muito menos de uma produzida pela Netflix.
Sobre o que eu chamo de convenções, é que me pareceu haver um contraste curioso entre as duas metades do filme. Na primeira, o filme parece transcorrer pelo que, geralmente, seria a história inteira de uma comédia romântica, com a amizade entre Ellie e Paul. Fossem ambos heterossexuais, a trama não precisaria ir além para ser encerrada da forma mais convencional possível. Ocorre que não só a Ellie é lésbica, como ela traz em sua vida diversos outros dilemas que uma comédia romântica tradicional não seria suficiente para permitir que ela crescesse. E aí está o grande acerto da Alice Wu, que além de libertar a Ellie das amarras daquela cidade e do que foi sua vida até então, também a liberta das regras comumente rígidas das comédias românticas.
Nos dois primeiros filmes da franquia, Myers é creditado simplesmente como "The Shape". Não à toa, pois Myers foi concebido pelo Carpenter como algo simples e puramente maligno, cuja única força motriz é o desejo de matar. Nada mais, nada menos, e a Laurie era apenas uma pobre infeliz que teve o azar de se tornar seu alvo e teve que se virar para sobreviver.
3 anos depois de achar que escapei de acreditar na cilada que seria a promessa de mais outro reboot que corrigiria os problemas das sequências da franquia, cá estou eu. Halloween 2018 realmente corrige alguns problemas, como as inúmeras tentativas de ligar o Myers a qualquer motivação externa que pudesse dar ao personagem uma aparência porca de profundidade. Vimos isso nas sequências originais, quando introduziram misticismos baratos para tentar explicar a resistência e insistência do Myers, assim no completo lixo realizado pelo Rob Zombie, onde tentaram encaixá-lo numa tramazinha batida de família disfuncional (descrição ainda um tanto generosa do que são aqueles filmes).
Sim, Halloween 2018 não recorre a artifícios baratos que, desde a década de 80, só empobreceram o espírito do conceito original do Carpenter. O problema aqui é que o resultado final é um filme tão absolutamente entediante e sem personalidade, sem qualquer resquício de suspense ou tensão, que eu nem sou capaz de dizer que o odiei. Ele simplesmente existe, não adiciona nada, e será prontamente esquecido por mim com o tempo.
No mais, pobre da Jamie Lee Curtis que retornou para a franquia "uma última vez" pela terceira vez, encontrou, talvez, a rota mais promissora já proposta para a Laurie, e ter sido esse o resultado. Ela é o que carrega os poucos pontos positivos desse reboot, e talvez por isso a Laurie pareça completamente perdida nesse mar de 109 minutos de completa chatice.
Felizmente, precisando de um bom slasher e suspense, ainda temos o original.
Apenas um alerta para quem ainda não assistiu e lhe disseram que a história é uma metáfora para ISTs (como fizeram comigo e parece ser repetido por muitos como se fosse *o* ponto interessante do filme). Esqueçam isso.
Essa interpretação é reducionista e nem se sustenta diante de muito que nos é mostrado. Entrem de cabeça aberta, parem de esperar que tudo seja entregue de bandeja por diálogos expositivos enfadonhos (é um trabalho audiovisual, não se apeguem exclusivamente ao que é ou não dito), e exigir que filmes de horror sejam escapismos preguiçosos.
Digo isso tudo mais pelo desapontamento de perceber que comentários desproporcionalmente negativos são tão mais comuns em filmes de horror (não-formulaicos) que em qualquer outro gênero aqui no Filmow. De resto, que cada um continue assistindo e chegando às suas próprias conclusões sobre o que gostaram e não gostaram numa obra. Só não precisamos nos perpetuar na ignorância de pensar que filmes de horror são uma expressão menos valiosa de cinema e que por isso podemos ser passivos ao assisti-los.
Muito mais que uma narrativa sobre a pobreza, Lola retrata um país esquecido de si e de seu povo.
As Filipinas foram um dos primeiros territórios asiáticos a serem vitimados pelo imperialismo europeu, e só no século passado alcançou sua soberania: foi colônia espanhola do século XVI ao XIX, mas teve sua revolução frustrada, e passou para o domínio dos EUA, situação que perdurou até 1946.
Ao longo do filme, em diversos ambientes de estrutura precarizada, somos — se tal paradoxo é possível — sutilmente bombardeados pela língua inglesa, que infesta não só as ruas da cidade, mas também todas as instituições públicas, as quais supostamente se destinariam a assistir aquela população que não reconhece o idioma como seu. Em duas cenas particularmente bizarras, para não dizer enfurecedoras, uma das idosas recebe uma intimação do tribunal, mas não consegue lê-la, pois não foi redigida na língua que fala; mais tarde, quando todo o núcleo de personagens vai à Corte para o julgamento do acusado, nada podem fazer além de se sentar rígidos, desnorteados, pois a audiência é integralmente realizada em inglês — quando o juiz lhes exige a palavra, ato de mera formalidade, devem mecanicamente repetir três vocábulos que pouco lhes faz sentido: "Yes, your Honour".
As personagens principais, vovó Sepa e vovó Puring, tem em comum sobretudo o fato de serem alvo de diversos processos de segregação. Se por um lado são marginalizadas pelo sistema público, por outro, embora matriarcas de suas respectivas famílias, são esquecidas pelos parentes até que a voz da necessidade reclame a sua presença — e elas, eternas mães, fadadas à servilidade feminina e à invisibilidade da terceira idade, fazem de bom grado; sorriem, amam. Em ambos os casos, quando servem ao seu propósito, são novamente enxotadas como criaturas inconvenientes. O desmazelo social também se reproduz na confusão entre o espaço urbano precário e a natureza, que toma parte na agressão: para conseguir sair do casebre onde vive, vovó Sepá precisa de balsa; nas ruas falhas da cidade, ambas enfrentam com suas ossadas artríticas o vento que lhes sopra a imundice e a chuva violenta que lhes faz encolher sob um guarda-chuva desgastado; quer em casa ou na cidade, em passos lentos e rígidos, devem subir e descer uma série sem fim de degraus, sempre pelo bem dos seus queridos ingratos.
Não confundam o desfecho com outro caso de fetichização da pobreza ou da devoção materna. Não é que
Os 15 anos que compreendem o cinema novo americano são únicos na história filmográfica do país. Afrouxadas as correntes do monopólio dos grandes estúdios e do código de auto-censura da indústria, a nova geração de artistas não só se recusava a alimentar a velha e decadente glamourização hollywoodiana, como a atacava diretamente.
Sempre me pareceu que precisamente quando essas novas vozes passaram a relatar experiências regionalistas dos EUA, sobretudo sob a ótica do íntimo perturbado das suas personagens, é que o cinema americano finalmente alcançou um certo patamar de universalidade — não em sentido de alcançar um vasto público e gerar lucro, como querem as produtoras, mas na capacidade de criar e expressar uma experiência genuinamente humana.
Em sua honestidade crua e desconfortante, A Última Sessão de Cinema é certamente uma das obras-primas da Nova Hollywood. O delírio do estilo de vida americano é aqui revelado tão inautêntico quanto o escapismo dos ridículos faroestes hipermasculinizados. Já a mitológica moralidade da década de 1950, nostálgica, é revelada como um código de conduta que tudo dita, mas que nunca poderia se concretizar, embora teimem em querer conservá-lo sobre os ruinosos pilares da religião, do patriotismo bélico e da dita família tradicional.
Em Anarene, a morte da juventude não abala a vida adulta, já derrotada — longe disso, o mal-estar é muito bem acolhido, num abraço eterno e putrefato.
Engraçado como em Antoine e Colette, Doinel assume para si, de certa forma, responsabilidade pelo mau relacionamento com os pais. E aqui, então, descobrimos que o livro que está escrevendo é justamente sobre os conflitos não resolvidos da infância. Não acredito que ele tenha, em algum momento da vida, realmente afastado a lembrança dos pais, como sei que supus ao ver o curta da Collete,
mas me fez pensar sobre como a paternidade deve ter feito com que tudo reemergisse com mais intensidade. Ele diz a Christine, afinal, que tudo voltaria ao normal entre eles quando terminasse de escrever.
Tenho que confessar que, num primeiro momento, tive um certo desapontamento ao começar a assistir a Baiser Voles e pensar que os filmes seguintes a 400 Coups não seriam tão grandiosos quanto ele, mas ainda estou para encontrar outra série que permita a experiência de conhecer o íntimo de uma personagem como o Truffaut nos possibilitou com o Antoine Doinel.
Happy Together, há pouco mais de dois meses, foi meu primeiro contato com o Wong Kar-wai. Eu não seria capaz de satisfatoriamente pôr em palavras o quão forte foi a impressão construída em mim ao longo desse filme, me trazendo uma obsessão com sua filmografia que beira a devoção religiosa. É claro, o mérito não é apenas do diretor: se não é possível falar na estética de Bergman sem Sven Nykvist e Gunnar Fischer, ou seria injusto falar em Hitchcock e esquecer de Robert Burks, também o trabalho cinematográfico Wong é resultado da visão de seu cinematografista, Christopher Doyle. O conjunto meticuloso de fotografia, design, som, edição, constrói uma realidade visual e narrativa inimaginavelmente peculiar. Aqui estão presentes muitos dos temas comuns na filmografia do diretor, tal quais o amor impossível, a solidão, o sufocante ambiente urbano, além uma melancólica latente e nostálgica por Hong Kong. Tudo isso converge não em prol da imersão numa estrutura narrativa tradicional, mas para trazer presença ao íntimo das personagens. Tampouco poderia querer fazê-lo de outra forma; seu processo de criação é completamente assistemático: Wong escreve seus roteiros ao passo em que os realiza em filme, partindo tão somente de sua ideia inicial, permitindo-se a liberdade de desenvolvê-lo ao passo que contempla as diversas possibilidades de se contar a história. Aliás, mesmo a seleção de música e locais de filmagem, que tanto marcam o longa, antecedem a própria criação narrativa. A associação desses artifícios é de um encaixe tão ideal com o todo do filme que me impossibilitam de vê-los separadamente: nunca mais California Dreaming ou Cranberries sem Chunking Express; nunca Nat King Cole sem Amor à Flor da Pele; e, sem possibilidade me questionar, Chunga's Revenge do Zappa e o tango de Astor Piazzola, na falta de palavras melhores, são, propriamente, Happy Together. Sua obra é o visual no sentido excelente da palavra. Wong Kar-wai é verdadeiro autor de cinema.
Sim, é um filme de horror. E horror é um gênero divisivo, poucas vezes aclamado e raramente levado a sério. As expectativas em torno dessas obras é sempre bastante fixa, esquemática, e por isso também penso que a maioria daqueles que se viram decepcionados com A Bruxa não fazem parte da audiência que se interessaria por esse tipo de abordagem. O potencial do horror não está em Premonição, Sexta-feira 13 ou Mama. Não desmerecendo quem gosta desses filmes -- apesar de tê-los escolhido como exemplo por não gostar deles --, mas por estarem entre aqueles mais associados ao gênero, escondem o poder do subjetivo e da introspecção que está presente nas obras primas. O horror é humano, e o horror é parte da vida. Não há nada de errado com obras completamente voltadas ao entretenimento, mas não se deve privar o sentimento horror da sua ligação intrínseca com o drama e o psíquico. Um dos melhores exemplos é a obra de Edgar Allan Poe. O conto Berenice é uma ótima amostra disso, e talvez valha a leitura para aqueles que ainda não decidiram se valeria a pena investir em A Bruxa ou mesmo para quebrar os tantos pressupostos resultantes dos maus costumes do terror comercial, que há tanto tempo são usados para desmerecer o gênero e negligenciar obras que propõem uma alternativa ao formulaico.
A Gaiola das Loucas
3.7 94 Assista AgoraNão sei exatamente o que (ou se) eu esperava, mas o que quer que fosse, com certeza não era uma obra que envelheceu tão surpreendentemente bem quanto La Cage aux Folles.
Todo o filme acompanha o ponto de vista de Renato e Albin, e não do filho heterossexual que traz o estopim da história. De cara, é um diferencial enorme quando até a década passada o que não faltava era filme "bem intencionado", supostamente buscando "humanizar" homossexuais, ao mesmo tempo que, se muito, os retratavam como chacotas inofensivas e que só por isso não deveriam ser perseguidas. Assim, qualquer desconforto que Laurant possa sentir em relação aos pais não tropeça numa promoção pedante de auto-censura benevolente. Em momento algum Renato, Albin ou qualquer um que trabalhe no clube são mostrados como pessoas que deveriam se envergonhar das suas personalidades ou gostos, muito embora estejam cientes do repúdio dos ignorantes. Não só isso, são tratados com a mais natural dignidade pelos vizinhos e comerciantes de onde moram, com exceção dos patéticos idiotas que o filme satiriza.
Há, sim, uns tropeços que vão contra a sensibilidade buscada pela história. (1) Laurant, bom moço, sorridente, filhinho querido do papai Renato, não faz muita questão de levar em consideração o que sua outra figura parental, Albin — que descobrimos que também o criou desde bebê, mesmo sem relação biológica com ele. Em resumo, também seu pai —, está sentindo quando ele deixa bastante claro que não quer ele ali para conhecer a família da noiva. Só quer que ele vá embora. Agora. (2) Algo mais inofensivo, e nada espantoso para a época, a bobagem de retratar um casal gay em termos de sujeito masculino e sujeito feminino da relação. (3) Jacob, que se está ali para fazer contraste ao racismo descarado da família da noiva... bem... é o que há.
Sem dúvidas, La Cage aux Folles é exceção que escapa da armadilha de tantos outros filmes reputados como marcos histórico-sociais — que, apesar da sua importância, trazem abordagens desengonçadas que, no mínimo, provocam justificável desconforto a audiências modernas. Quase 5 décadas desde seu lançamento, não só é eficiente na sua intenção de prestar o devido respeito a um grupo marginalizado e satirizar seus detratores, como ainda é muito engraçado, feito que nem toda comédia, muito menos uma sátira social, consegue sustentar ao longo de várias gerações.
Obs: Momento muito inesperado, francamente surpreendente e que preciso destacar: simplesmente uma personagem que é homem heterossexual, casado, pai de 6 filhos (em breve, 7) e que trabalha como drag queen no clube, sem que haja um mínimo de alvoroço sobre isso no filme — um filme de 1978.
Close
4.2 491 Assista AgoraVi o trailer há alguns meses, quando sua reputação cresceu após ser tão bem recebido nos festivais europeus. Aguardei Close com bastante entusiasmo.
Agora, tendo assistido, não sei se consiguiria assistir de novo.
É ainda tão mais doloroso em Close
perceber que mesmo em ambientes tão saudáveis para a expressividade masculina, que permitiram o florescimento e a intensidade daquela amizade, algo tão raro e genuíno como a relação de Remi e Leo pôde ser destruída tão brutalmente. Séculos, ou mesmo milênios de perseguição e vilificação de tudo supostamente não-heterossexual e não-masculino deixam raízes muito profundas. Não bastam as poucas décadas do ainda frágil progresso que temos vivido para impedir a continuidade do dano.
Tár
3.7 395 Assista Agora"Só quando muda, quando você se envolve, é que você ouve o que ela (a composição de Bach) realmente é. É uma pergunta. E uma resposta — que levanta outra pergunta. Há uma certa humildade em Bach. Ele não está fingindo ter certeza sobre qualquer coisa porque sabe que é a pergunta que envolve o ouvinte. Nunca é a resposta, certo?" (Lydia Tár)
Desde que me interessei por cinema, já assisti uma boa quantidade de filmes que podem ser pensados como estudos de personagem, mas acredito que nenhum que se assemelhe a Tár. É um filme que não se envergonha de ser denso e que não faz concessões ao espectador, seja na utilização de linguagem técnica, nos diálogos entre personagens conhecedores do mundo da música erudita ou mesmo na própria vida privada de Lydia Tár. Há, sim, ramificações temáticas que ultrapassam a pessoa da protagonista, mas ela é o filtro, a fronteira, o mapa, a bússola e a lupa que orienta tudo.
A conhecemos quase episodicamente, e não por mera escolha narrativa, mas porque é somente assim que Tár concede aos outros a sua presença. Se aqui existem uma protagonista e diversos coadjuvantes, não é pela simples classificação própria das artes cênicas, mas porque não há espaço para outras existências complexas na vida da intocável maestro. Entre as muitas perguntas levantadas, gradualmente, a inabalável importância (ou senso de auto-importância) de Lydia revela suas rachaduras. E então vamos descobrindo uma mulher que a todo momento se refugia no inalcançável pico do seu ego, seja em isolamento emocional ou físico, e que se mostra intencionalmente alheia à sua própria tragédia, ao fato de que ela mesma a arquitetou, e de que seu auge foi imediatamente seguido por uma queda livre, como alguém que não apenas atreveu voar perto demais do Sol, mas que errou duplamente ao fazer isso de olhos vendados.
Essa é apenas minha tentativa de organizar meus pensamentos. Se tive alguma certeza ao fim de Tár é que há muito mais a ser descoberto e que assisti-lo uma vez só não é nem perto de suficiente para digerir a criatura concebida pela Cate Blanchett e pelo Todd Field.
As Boas Maneiras
3.5 648 Assista AgoraEstava há alguns anos na minha lista para assistir, e de início parecia promissor, mas chega a segunda metade do filme e todo o desenvolvimento temático, ambientação e boas atuações voam pela janela, para nunca mais voltarem. E isto foi muito dito nos comentários abaixo, mas eu também preciso repetir porque é inegável: parecem dois filmes diferentes, tamanha a dissonância entre as duas partes. Uma pena.
M3gan
3.0 799 Assista AgoraBobinho, muito mesmo (de propósito), mas tem seus momentos divertidos. O filme traz uma atualização bastante pertinente aos nossos tempos da trama de Brinquedo Assassino — a comparação é inevitável, embora seja mais uma sátira do que um slasher. A M3GAN, em si, é muito bem feita e animada. E embora ela se encaixe de forma orgânica naquele mundo, ela ainda trasmite a inovação tecnológica que representaria e, muito adequadamente, vem mergulhada no saboroso suco do uncanny valley que o filme pede.
Por outro lado, o que prejudica bastante a história, que já segue um caminho extremamente convencional, é que todos os personagens são escritos com a profundidade de um pires. Isso não seria um problema tão grande se fosse restrito aos personagens secundários, que por mais que sejam repetitivos e chatos em cada uma das suas aparições, estavam ali apenas como potenciais vítimas da M3GAN. O que não dá certo é quue a falta de expressividade ou de um mínimo de complexidade na construção dos personagens também atinge o que deveria ser o núcleo emocional da história. Cady acaba recebendo um tratamento um pouco melhor que Gemma — que é mais robótica de a própria M3GAN —, mas nada muito equiparável ao trauma e à perda que ela sofreu. Por essa razão, é muito difícil se investir na relação entre sobrinha e tia/guardiã ou mesmo sentir que qualquer coisa que acontece no filme é muito significativo para elas.
Enquanto terror, carece de tensão; enquanto sátira, muitos outras histórias já trabalharam esses temas de forma melhor. Ainda assim, M3GAN tem seus acertos e diverte nos seus momentos mais absurdos.
Um Lugar Silencioso - Parte II
3.6 1,2K Assista AgoraVocê sabe que está imerso nesse filme quando espirra e seu cérebro imediatamente registra uma coisa tão comum como um pecado capital.
Por mais que tanto este quanto o primeiro Um Lugar Silencioso não sejam, tematicamente, os filmes mais complexos do gênero, sua execução resulta em 1h40min de uma tensão tão divertida que é difícil achar defeitos suficientes que justificariam uma nota mais baixa que 7 estrelas. É verdade que, por vezes, em ambos filmes, os personagens se comportam muito mais como artifícios de roteiro para levar a história na direção escolhida pelo John Krasinski do que pessoas que conhecem e agem com a devida cautela de alguém que sobreviveu por tanto tempo num mundo como aquele. Apesar disso, ao ver essa sequência e não só relembrar, mas reviver a tensão da parte 1, é difícil não se entusiasmar. Em franquias, são raros os filmes que fazem jus à obra original, mas mesmo não dispondo do fator novidade do primeiro filme ou explorando muitos novos elementos daquela realidade pós-apocalíptica, Parte 2 honra seu legado e entrega um resultado tão potente quanto ele.
Cine Holliúdy
3.5 609 Assista AgoraQueria ter gostado, achei a ideia muito boa quando vi na TV uns trechos da primeira temporada seriado que se originou desse filme, mas o humor não foi pra mim. Até começa de forma agradável, introduzindo a dinâmica da família, mas à medida que o filme avançava crescia em mim a frustração por não conseguir dar uma só risada. A parte inicial até conseguiu me fazer dar um sorriso de canto de boca, com algumas referências muito boas a filmes clássicos, mas isso também acabou cedo. Quando chegou ao clímax do filme, então, afundou de vez para mim, que já estava agoniando com tanto falatório dos personagens da cidade. Ali, os 91 minutos de duração já pareciam eternos.
As Duas Irenes
3.7 111 Assista AgoraTive duas surpresas com esse filme: a primeira, sempre muito boa, a de encontrar um filme de que nunca ouvi falar e ele ser ótimo; a segunda, a abordagem que fugiu completamente do que eu esperava ao ler a sinopse.
O foco de As Duas Irenes, em vez do simples drama familiar pela descoberta da traição do pai pela Irene nº 1, é muito mais abrangente: engloba os conflitos internos da protagonista em relação ao seu lugar dentro daquele núcleo familiar, os dilemas da pré-adolescência e formação da(s) Irene(s) enquanto indivíduo(s), os dilemas de classe e gênero pelo contraste das duas famílias (uma de classe média, a dita família tradicional brasileira; a outra, de classe trabalhadora e comandada, na prática, por uma mãe solo) e a mítica — aqui tornada realidade — existência de um duplo, a meia-irmã recém-descoberta, que aos poucos se confunde e se revela na outra.
Não quero me alongar e correr o risco de descrever muito o que deve ser visto em primeira mão — ou pior, descrever mal — então aqui vai minha modesta impressão: é uma das abordagens mais bonitas que encontrei em histórias de coming of age, e toda vez que me pego pensando num trecho desse filme me impressiona a sensibilidade com que as duas irmãs são retratadas. Fica muito claro como tanto o diretor e roteirista, Fábio Meira, quanto as atrizes, Priscila e Isabela, conhecem bem suas personagens. Uma verdadeira pérola do cinema brasileiro e que merece muito ser descoberta.
O Cão e a Raposa
4.1 395 Assista AgoraTinha visto esse filme uma só vez, ainda criança, acho que num sábado da TV Globinho.. Talvez justamente por isso sempre me impressionou a força daquela memória, até porque com os filmes que eu alugava e de que gostava muito eu tinha um hábito de reassisti-los antes de devolver o DVD, o que não pude fazer com O Cão e a Raposa.
Revendo já adulto, confirmei que o núcleo dessa história — esclarecendo: o que de fato é parte da narrativa — é mesmo bastante memorável. Ocorre que o filme tropeça numa péssima tendência das animações infantis ocidentais de acreditar que o público-alvo não seria capaz de apreciar momentos de quietude e reflexão. A história de Tod e Copper (ou Dodó e Toby) é constantemente interrompida por segmentos enfadonhos de um núcleo irrelevante de personagens de alívio cômico, que só prejudicam a fluidez da narrativa, tanto por serem bastante esquecíveis quanto por não serem muito engraçados, afinal.
A produção de O Cão e a Raposa é também infame pela rixa que gerou nos estúdios de animação da Disney. O comando da empresa, que diminuía o valor das animações desde a morte do Disney, interferiu constantemente nesta obra, impondo uma série de mudanças que enrijeceu o trabalho concebido pelo time de fato encarregado de realizá-lo e levou diversos animadores talentosos a deixa o estúdio, mais notavelmente, Don Bluth. Uma mudança notória e que prejudica o tom da segunda metade do filme, é que
Chief (Chefe) deveria ter morrido naquele acidente de trem, como na obra que inspirou o filme, e o trauma daquela perda — muito maior que uma mera pata quebrada — é o que enfim e compreensivelmente tornaria Copper contra Tod.
Também diminui o impacto da história uma outra tendência dos filmes da Disney da época, mas aí já não sei dizer se foi imposição do estúdio: o romance instantâneo e forçado introduzido já nos momentos finais do filme. Como em Mogli, o protagonista masculino troca um único olhar com uma figura feminina, que corresponde com um movimento de olhos bizarramente sensual para uma obra infantil (em Mogli, muito pior por se tratar de uma criança) e ali passa a estar todo o sentido da sua existência, ignorando completamente o que foi sua vida até então
— além de perder o melhor amigo, Tod também foi abandonado pela sua figura materna para que pudesse sobreviver
É um filme de que ainda gosto, que nas qualidades que possui ainda é bastante memorável, mas que é inegavelmente inconstante e bastante simbólico do estado em que se encontravam os estúdios de animação (e a chefia) da Disney naquela época. Apesar dos defeitos, é certamente uma história bonita e ainda que merece ser conferida.
Querido Ex
3.8 83 Assista AgoraHistória honestamente bonita e que possui uma peculiaridade bastante curiosa em sua execução, o que me fez sentir um afeto especial pelo filme ao seu final, apesar do seu estilo de humor não me atrair.
Como somos introduzidos ao trio de personagens centrais pela perspectiva de Chengxi, o rabugento protagonista de 13 anos, em toda sua revolta, suspeita, confusão e ressentimento por tudo que ocorreu na sua vida familiar, a princípio somos privados de qualquer simpatia por sua mãe, o amante do pai ou mesmo pelo próprio garoto, eternamente ranzinza. Aos poucos, mas nunca de maneira que traia o conflito de um menino desnorteado pela dupla perda do pai — a primeira, privado da sua convivência; a segunda, definitiva — e pelo caos da vida com a mãe, somos melhor contextualizados ao que move cada uma daquelas três pessoas. Podemos até não aprovar seus erros, mas esse não é o objetivo: compreendemos como chegaram até aquele ponto. Além deles três, vamos montando o quebra-cabeças da quarta figura ali onipresente, pessoa amada por todos eles — quer reconheçam isso, ou não — o falecido pai, cônjuge e namorado. A cereja no bolo, para mim, é a forma como os flashbacks são introduzidos, se confundindo com a cena presente e elevando a representação do estado de espírito e das motivações de cada personagem.
Uma História de Amor e Fúria
4.0 657Existem certos filmes que você sabe que vai gostar — ou melhor, presume que vai gostar. E quando, afinal, não gosta... bem... Uma História de Amor e Fúria é um desses casos para mim.
Em seu conceito, o filme antecipava algo artisticamente grandioso, mas que nunca se concretizou. O tempo é pouco e os segmentos (ou fases, como descreve a sinopse) são muitos para uma obra tão curta. Ao fim de cada era da vida do protagonista hexacentenário, cresceu em mim uma frustração aparentemente não desejada pelos realizadores, pois os segmentos não me pareceram agregar algo indispensável aos anteriores. Para piorar, também se intensificou, ao passar dos segmentos, um tom de palestrinha política tão enfadonha e grosseiramente pedante diante da superficialidade da narrativa que, também pela repetição, até manchou um pouco a memória dos acertos do filme.
Também quero acrescentar aqui uma birra pessoal com o Selton Mello, que carrego desde que assisti seu intragável O Melhor Filme da Minha Vida nos cinemas: PARA DE CONVERSAR SUSSURRANDO, DESGRAÇA!
Como Nossos Pais
3.8 444Com acertos admiráveis, Como Nosso Pais mescla um drama familiar de conflitos e traumas geracionais com o drama interno de uma mulher que se depara com a inevitável dissonância entre ideologia e a crueza de como a vida acontece. Tem, sim, seus tropeços. Concordando com algumas das críticas mais negativas que li abaixo, é verdade que os diálogos, por vezes, contrastam com a abordagem naturalista do filme quando parecem pensados demais, ensaiados e roteirizados demais em vez de algo que sairia espontaneamente daquelas pessoas. Nem por isso acredito que diminui seu valor e a estranha originalidade que alcança no equilíbrio dos conflitos externos e internos da sua protagonista.
Um desses acertos é o fato de que Rosa nunca passa por uma grande epifania que muda tudo em sua vida. Não se trata desse tipo de história. Talvez justamente por isso, como observei ao ler os comentários abaixo,
tantas pessoas se inconformaram com o destino da protagonista ao fim do filme, principalmente por ela continuar casada com Dado (que, não, não é legal).
No mundo real, o encanto do príncipe dura pouco, mas nem por isso não deixa suas marcas positivas, quem sabe até o desprendimento do medo de errar ou de se arrepender. Vemos uma daquelas pequenas libertações na modesta, mas significativa cena final do filme.
Quando Rosa, já desamarrada do temor de não conseguir controlar tudo na sua vida, também liberta a filha mais velha ao ir com ela de bicicleta para a escola, como a primogênita tanto desejava.
Mundo Estranho
3.1 135O conceito é muito interessante, assim como o design das criaturas, mas a história em si? O conflito familiar é extremamente raso e, francamente, desimportante, e as tentativas de humor são vergonhosamente ruins. Fosse mais focado no desenvolvimento do mundo ou fosse o conflito entre pai(s) e filho(s) de alguma consequência real, talvez até se redimisse em alguma qualidade. É uma pena que os roteiristas não tenham sido minimamente ambiciosos. É, basicamente, "uma pena" parece ser a forma mais apropriada de descrever Mundo Estranho.
Pearl
3.9 992Confesso que até ver a reação positiva do público e da crítica a Pearl, eu não pensava em assistir a esse filme. X foi interessante, visualmente muito belo e deixou claro o amor do diretor pela história do horror no cinema, mas para mim foi um tanto anti-climático e perdeu boas oportunidades com a temática. No que acertou, acertou muito bem, mas não foi uma experiência tão memorável quanto eu esperava.
Pearl, por outro lado, une horror e tragicomédia maravilhosamente, e entrega com gosto o que sua estrela precisa. Pearl, a personagem, vive numa linha tênue entre a doçura e a crueldade, a fantasia e a insanidade, a pureza e o caos. Tudo isso é alimentado por uma solidão e um vazio onipresentes que, curiosamente, embora a tornem implacável e fatal, são também o que gera empatia pela sua condição. E Mia Goth transita entre esses humores antagônicos encatadora e perturbadoramente bem. O que ela construiu e revelou ali não deixa qualquer espaço para duvidar do quão profundamente ela conhece sua personagem.
Também digno de aplausos é o próprio Ti West. Se X não me cumpriu com o que parecia oferecer no início do filme, Pearl é uma criatura tão peculiar (talvez uma verdadeira quimera cinematográfica) que a cada minuto que passa eu me pego revirando uma cena diferente na minha cabeça e volto a ficar encantado com a inventividade de tudo.
Agora, sim, posso dizer que aguardo ansioso pelo próximo filme.
O Balconista
3.9 222 Assista AgoraEm qualquer outro trabalho independente, as atuações amadoras poderiam acrescentar um certo charme ao filme. Aqui, os atores não parecem ter qualquer noção de timing cômico e reproduzem toda fala da maneira mais desinteressante possível — ou quem sabe seja mais uma falha da própria direção do Kevin Smith. Para tornar tudo ainda mais insuportavelmente chato, toda a ideia de comédia desse filme é baseado em referências pop e tentativas de chocar o espectador, sempre batendo na mesma tecla de misoginia e babaquice injustificada, como se bastasse isso para fazer sátira e humor negro.
Em qualquer outro trabalho independente, as atuações amadoras poderiam acrescentar um certo charme ao filme. Em Clerks, escancara o quão maçante e ruim é o roteiro.
Você Nem Imagina
3.4 517 Assista AgoraHonestamente intrigado por como tantas pessoas podem chamar de
queerbaiting um filme em que a protagonista É QUEER. Não é poque a Ellie não fica com a Aster que o filme deixa de ser sobre uma personagem lésbica. Não existe baiting nenhum aqui.
Dito isso, minhas impressões: não sou fã de comédias românticas, nem costumo procurar por filmes do gênero, mas fiquei curioso em como uma trama inspirada em Cyrano seria desenvolvida com uma protagonista lésbica.
E afinal, fui muito bem surpreendido por como a Alice Wu aborda as convenções do gênero no filme, mas também imprime na história uma identidade bastante própria, favorecendo o crescimento da Ellie e optanto por uma rota não-tradicional, até mesmo intimista. E é essa ousadia que, pela sessão de comentários, parece não ter agradado tanto alguns dos que assistiram ao filme, mas para mim com certeza tornou a experiência do filme muito mais rica e memorável — o que eu realmente não esperava de uma comédia romântica, muito menos de uma produzida pela Netflix.
Sobre o que eu chamo de convenções, é que me pareceu haver um contraste curioso entre as duas metades do filme. Na primeira, o filme parece transcorrer pelo que, geralmente, seria a história inteira de uma comédia romântica, com a amizade entre Ellie e Paul. Fossem ambos heterossexuais, a trama não precisaria ir além para ser encerrada da forma mais convencional possível. Ocorre que não só a Ellie é lésbica, como ela traz em sua vida diversos outros dilemas que uma comédia romântica tradicional não seria suficiente para permitir que ela crescesse. E aí está o grande acerto da Alice Wu, que além de libertar a Ellie das amarras daquela cidade e do que foi sua vida até então, também a liberta das regras comumente rígidas das comédias românticas.
Halloween
3.4 1,1KA completa antítese do suspense.
Nos dois primeiros filmes da franquia, Myers é creditado simplesmente como "The Shape". Não à toa, pois Myers foi concebido pelo Carpenter como algo simples e puramente maligno, cuja única força motriz é o desejo de matar. Nada mais, nada menos, e a Laurie era apenas uma pobre infeliz que teve o azar de se tornar seu alvo e teve que se virar para sobreviver.
3 anos depois de achar que escapei de acreditar na cilada que seria a promessa de mais outro reboot que corrigiria os problemas das sequências da franquia, cá estou eu. Halloween 2018 realmente corrige alguns problemas, como as inúmeras tentativas de ligar o Myers a qualquer motivação externa que pudesse dar ao personagem uma aparência porca de profundidade. Vimos isso nas sequências originais, quando introduziram misticismos baratos para tentar explicar a resistência e insistência do Myers, assim no completo lixo realizado pelo Rob Zombie, onde tentaram encaixá-lo numa tramazinha batida de família disfuncional (descrição ainda um tanto generosa do que são aqueles filmes).
Sim, Halloween 2018 não recorre a artifícios baratos que, desde a década de 80, só empobreceram o espírito do conceito original do Carpenter. O problema aqui é que o resultado final é um filme tão absolutamente entediante e sem personalidade, sem qualquer resquício de suspense ou tensão, que eu nem sou capaz de dizer que o odiei. Ele simplesmente existe, não adiciona nada, e será prontamente esquecido por mim com o tempo.
No mais, pobre da Jamie Lee Curtis que retornou para a franquia "uma última vez" pela terceira vez, encontrou, talvez, a rota mais promissora já proposta para a Laurie, e ter sido esse o resultado. Ela é o que carrega os poucos pontos positivos desse reboot, e talvez por isso a Laurie pareça completamente perdida nesse mar de 109 minutos de completa chatice.
Felizmente, precisando de um bom slasher e suspense, ainda temos o original.
Corrente do Mal
3.2 1,8K Assista AgoraApenas um alerta para quem ainda não assistiu e lhe disseram que a história é uma metáfora para ISTs (como fizeram comigo e parece ser repetido por muitos como se fosse *o* ponto interessante do filme). Esqueçam isso.
Essa interpretação é reducionista e nem se sustenta diante de muito que nos é mostrado. Entrem de cabeça aberta, parem de esperar que tudo seja entregue de bandeja por diálogos expositivos enfadonhos (é um trabalho audiovisual, não se apeguem exclusivamente ao que é ou não dito), e exigir que filmes de horror sejam escapismos preguiçosos.
Digo isso tudo mais pelo desapontamento de perceber que comentários desproporcionalmente negativos são tão mais comuns em filmes de horror (não-formulaicos) que em qualquer outro gênero aqui no Filmow.
De resto, que cada um continue assistindo e chegando às suas próprias conclusões sobre o que gostaram e não gostaram numa obra. Só não precisamos nos perpetuar na ignorância de pensar que filmes de horror são uma expressão menos valiosa de cinema e que por isso podemos ser passivos ao assisti-los.
Lola
3.7 35 Assista AgoraMuito mais que uma narrativa sobre a pobreza, Lola retrata um país esquecido de si e de seu povo.
As Filipinas foram um dos primeiros territórios asiáticos a serem vitimados pelo imperialismo europeu, e só no século passado alcançou sua soberania: foi colônia espanhola do século XVI ao XIX, mas teve sua revolução frustrada, e passou para o domínio dos EUA, situação que perdurou até 1946.
Ao longo do filme, em diversos ambientes de estrutura precarizada, somos — se tal paradoxo é possível — sutilmente bombardeados pela língua inglesa, que infesta não só as ruas da cidade, mas também todas as instituições públicas, as quais supostamente se destinariam a assistir aquela população que não reconhece o idioma como seu. Em duas cenas particularmente bizarras, para não dizer enfurecedoras, uma das idosas recebe uma intimação do tribunal, mas não consegue lê-la, pois não foi redigida na língua que fala; mais tarde, quando todo o núcleo de personagens vai à Corte para o julgamento do acusado, nada podem fazer além de se sentar rígidos, desnorteados, pois a audiência é integralmente realizada em inglês — quando o juiz lhes exige a palavra, ato de mera formalidade, devem mecanicamente repetir três vocábulos que pouco lhes faz sentido: "Yes, your Honour".
As personagens principais, vovó Sepa e vovó Puring, tem em comum sobretudo o fato de serem alvo de diversos processos de segregação. Se por um lado são marginalizadas pelo sistema público, por outro, embora matriarcas de suas respectivas famílias, são esquecidas pelos parentes até que a voz da necessidade reclame a sua presença — e elas, eternas mães, fadadas à servilidade feminina e à invisibilidade da terceira idade, fazem de bom grado; sorriem, amam. Em ambos os casos, quando servem ao seu propósito, são novamente enxotadas como criaturas inconvenientes. O desmazelo social também se reproduz na confusão entre o espaço urbano precário e a natureza, que toma parte na agressão: para conseguir sair do casebre onde vive, vovó Sepá precisa de balsa; nas ruas falhas da cidade, ambas enfrentam com suas ossadas artríticas o vento que lhes sopra a imundice e a chuva violenta que lhes faz encolher sob um guarda-chuva desgastado; quer em casa ou na cidade, em passos lentos e rígidos, devem subir e descer uma série sem fim de degraus, sempre pelo bem dos seus queridos ingratos.
Não confundam o desfecho com outro caso de fetichização da pobreza ou da devoção materna. Não é que
o amor resolve o conflito, como a sinopse prenuncia; é que não há escolha.
A Última Sessão de Cinema
4.1 123 Assista AgoraOs 15 anos que compreendem o cinema novo americano são únicos na história filmográfica do país. Afrouxadas as correntes do monopólio dos grandes estúdios e do código de auto-censura da indústria, a nova geração de artistas não só se recusava a alimentar a velha e decadente glamourização hollywoodiana, como a atacava diretamente.
Sempre me pareceu que precisamente quando essas novas vozes passaram a relatar experiências regionalistas dos EUA, sobretudo sob a ótica do íntimo perturbado das suas personagens, é que o cinema americano finalmente alcançou um certo patamar de universalidade — não em sentido de alcançar um vasto público e gerar lucro, como querem as produtoras, mas na capacidade de criar e expressar uma experiência genuinamente humana.
Em sua honestidade crua e desconfortante, A Última Sessão de Cinema é certamente uma das obras-primas da Nova Hollywood. O delírio do estilo de vida americano é aqui revelado tão inautêntico quanto o escapismo dos ridículos faroestes hipermasculinizados. Já a mitológica moralidade da década de 1950, nostálgica, é revelada como um código de conduta que tudo dita, mas que nunca poderia se concretizar, embora teimem em querer conservá-lo sobre os ruinosos pilares da religião, do patriotismo bélico e da dita família tradicional.
Em Anarene, a morte da juventude não abala a vida adulta, já derrotada — longe disso, o mal-estar é muito bem acolhido, num abraço eterno e putrefato.
"Never you mind, honey. Never you mind."
O tédio entorpecente prossegue e consome.
Domicílio Conjugal
4.1 114 Assista AgoraEngraçado como em Antoine e Colette, Doinel assume para si, de certa forma, responsabilidade pelo mau relacionamento com os pais. E aqui, então, descobrimos que o livro que está escrevendo é justamente sobre os conflitos não resolvidos da infância.
Não acredito que ele tenha, em algum momento da vida, realmente afastado a lembrança dos pais, como sei que supus ao ver o curta da Collete,
mas me fez pensar sobre como a paternidade deve ter feito com que tudo reemergisse com mais intensidade. Ele diz a Christine, afinal, que tudo voltaria ao normal entre eles quando terminasse de escrever.
Tenho que confessar que, num primeiro momento, tive um certo desapontamento ao começar a assistir a Baiser Voles e pensar que os filmes seguintes a 400 Coups não seriam tão grandiosos quanto ele, mas ainda estou para encontrar outra série que permita a experiência de conhecer o íntimo de uma personagem como o Truffaut nos possibilitou com o Antoine Doinel.
Felizes Juntos
4.2 261 Assista AgoraHappy Together, há pouco mais de dois meses, foi meu primeiro contato com o Wong Kar-wai. Eu não seria capaz de satisfatoriamente pôr em palavras o quão forte foi a impressão construída em mim ao longo desse filme, me trazendo uma obsessão com sua filmografia que beira a devoção religiosa. É claro, o mérito não é apenas do diretor: se não é possível falar na estética de Bergman sem Sven Nykvist e Gunnar Fischer, ou seria injusto falar em Hitchcock e esquecer de Robert Burks, também o trabalho cinematográfico Wong é resultado da visão de seu cinematografista, Christopher Doyle.
O conjunto meticuloso de fotografia, design, som, edição, constrói uma realidade visual e narrativa inimaginavelmente peculiar. Aqui estão presentes muitos dos temas comuns na filmografia do diretor, tal quais o amor impossível, a solidão, o sufocante ambiente urbano, além uma melancólica latente e nostálgica por Hong Kong. Tudo isso converge não em prol da imersão numa estrutura narrativa tradicional, mas para trazer presença ao íntimo das personagens. Tampouco poderia querer fazê-lo de outra forma; seu processo de criação é completamente assistemático: Wong escreve seus roteiros ao passo em que os realiza em filme, partindo tão somente de sua ideia inicial, permitindo-se a liberdade de desenvolvê-lo ao passo que contempla as diversas possibilidades de se contar a história. Aliás, mesmo a seleção de música e locais de filmagem, que tanto marcam o longa, antecedem a própria criação narrativa. A associação desses artifícios é de um encaixe tão ideal com o todo do filme que me impossibilitam de vê-los separadamente: nunca mais California Dreaming ou Cranberries sem Chunking Express; nunca Nat King Cole sem Amor à Flor da Pele; e, sem possibilidade me questionar, Chunga's Revenge do Zappa e o tango de Astor Piazzola, na falta de palavras melhores, são, propriamente, Happy Together.
Sua obra é o visual no sentido excelente da palavra. Wong Kar-wai é verdadeiro autor de cinema.
O Amor aos Vinte Anos
4.1 47Alguém conseguiu esse filme com o áudio original de cada curta? Só o encontro completamente dublado em italiano.
A Bruxa
3.6 3,4K Assista AgoraSim, é um filme de horror. E horror é um gênero divisivo, poucas vezes aclamado e raramente levado a sério. As expectativas em torno dessas obras é sempre bastante fixa, esquemática, e por isso também penso que a maioria daqueles que se viram decepcionados com A Bruxa não fazem parte da audiência que se interessaria por esse tipo de abordagem.
O potencial do horror não está em Premonição, Sexta-feira 13 ou Mama. Não desmerecendo quem gosta desses filmes -- apesar de tê-los escolhido como exemplo por não gostar deles --, mas por estarem entre aqueles mais associados ao gênero, escondem o poder do subjetivo e da introspecção que está presente nas obras primas. O horror é humano, e o horror é parte da vida. Não há nada de errado com obras completamente voltadas ao entretenimento, mas não se deve privar o sentimento horror da sua ligação intrínseca com o drama e o psíquico.
Um dos melhores exemplos é a obra de Edgar Allan Poe. O conto Berenice é uma ótima amostra disso, e talvez valha a leitura para aqueles que ainda não decidiram se valeria a pena investir em A Bruxa ou mesmo para quebrar os tantos pressupostos resultantes dos maus costumes do terror comercial, que há tanto tempo são usados para desmerecer o gênero e negligenciar obras que propõem uma alternativa ao formulaico.