O cinema grego vem ganhando destaque nos últimos anos por causa de suas histórias que fogem ao comum. O principal cineasta dessa nova onda é, sem dúvida, Yorgos Lanthimos, que passou a chamar a atenção com “Dente Canino” de 2009. Em 20015 ele dirigiu “O Lagosta”, seu primeiro trabalho em solo Hollywoodiano. Seu talento em construir sequências com situações esquisitas, usando enquadramentos inspirados, além da grande habilidade na direção de atores são fatores que explicam o sucesso do diretor. Esse talento também pode ser conferido no novo “O Sacrifício do Cervo Sagrado”, que possui no elenco Colin Farrell, Nicole Kidman, Alicia Silverstone e os novos expoentes Barry Keoghan e Raffey Cassidy. Uma cirurgia de coração no início do filme serve para apresentar o cardiologista Steven (Farrel), que é casado com a oftalmologista Anna (Kidman). Os dois possuem um casamento aparentemente perfeito e moram numa casa de boneca em um bairro rico junto com seus filhos Kim (Cassidy) e Bob (Sunny Suljic). A vida tranquila dessa família muda quando o garoto Martin (Keoghan) entra em cena. Martin é filho de um homem que morreu na mesa de cirurgia de Steven, o que faz com que o médico passe a se encontrar frequentemente com o órfão. Esses encontros são demonstrações de culpa por parte de Steve, mas ele disfarça esse sentimento dizendo que tem pena do garoto. Gradativamente Martin começa a demonstrar obsessão por Steven e um comportamento violento surge daí. Misteriosamente, os filhos do casal ficam doentes e não conseguem andar ou mesmo comer. Martin parece ter algum tipo de poder nas crianças e diz a Steve que a cura só se dará quando houver o sacrifício de um membro da família. Lanthimos traça, a partir da possibilidade do sacrifico, toda a desconstrução do ideal da família perfeita que existe na cultura ocidental, especialmente nas com influência norte-americana. O pai nesse contexto é o causador dos problemas e aquele que precisa remedia-los e resolve-los. A figura paterna como centro das atenções não é novidade na breve filmografia do cineasta, basta assistir o já citado “Dente Canino”. É interessante notar como a câmera do diretor de fotografia Thimios Bakatakis dá atenção especial ao médico e como os pontos de vista são alterados de acordo com o ambiente onde ele se encontra. Nos inicios de cenas no hospital, ele sempre é acompanhado por um estranho plano sequência em plongé, que parece que esta flutuando um pouco abaixo do teto, quase o esmagando. A sensação de que algo o segue pelos corretores herméticos, como um ser sobrenatural, é evidente. As sequencias na luxuosa casa mostram sempre os amplos espaços onde os personagens interagem, ao mesmo tempo em que há close-ups que enchem a tela e evidenciam toda a confusão mental pelo o que estão passando. A escolha de planos também é responsável por evidenciar esse desequilíbrio mental. Em nenhum momento vemos diálogos acontecendo no meio do quadro. O deslocamento para a borda, onde o plano corta uma pessoa ao meio enquanto ela é encarada pela outra é quase assustador. A forma com os diálogos são apresentados também pode ser, no mínimo, estranho para quem está acostumado com as narrativas clássicas. Os atores os dizem de forma acelerada, sem traçar qualquer característica de personalidade. Parecem pessoas sem almas ou seres artificias que precisam obedecer a uma programação. Possivelmente se trata de um artificio que tem por objetivo demonstrar o quão fora da realidade todos se encontram. A escolha de cores neutras nos figurinos e no design de produção ajuda a criar uma história que parece ser passada dentro de um sonho. Lanthimos constrói um final impactante e consegue expor uma discussão moral que, apesar de cruel, não deixa de ser válida. Mesmo com seu estilo excêntrico, “O Sacrifício do Cervo Sagrado” pode ser eleito o longa mais fácil do cineasta, já que segue um esquema de narrativa clássica de thriller. São raras as obras que se propõem a desafiar o espectador, e quando uma delas aparece, é preciso ir ao cinema e conferi-la. É garantido que ela ficará presente em suas mentes por muito tempo.
A premissa de “The Square - A Arte da Discórdia” chega a ser curiosa, já que a produção dirigida por Ruben Östlund discute, entre outros temas, o mercado artístico em nossa sociedade contemporânea. Aqui, em especial, da dita abstrata, aquela em que os significados nem sempre são claros. A curiosidade se dá pelo fato do próprio filme e muitos outros do circuito alternativo fazerem parte desse tipo de arte. O dito cinema de arte é, em muitas vezes, mais difícil de ser compreendido pelo público do que as complexas instalações em museus pós-modernos. Claro que esse tipo de cinema é reservado aos cinéfilos “intelectuais”, que conseguem ler nas entrelinhas as mensagens dos cineastas, também providos de muita massa cinzenta. O roteiro de “The Square - A Arte da Discórdia” também tira sarro dessas pessoas que são os “entendedores” e os “construtores” culturais. É engraçado, mas também desconfortavelmente trágico. A Palma de Ouro em Cannes não foi desperdiçada com essa produção que tem um diretor já conhecido no circuito por causa do excelente “Força Maior”. Östlund segue o estilo satírico, que faz o espectador rir mesmo sabendo que algo fora do que podemos julgar como ético está acontecendo. A trama acompanha um gerente de museu que usa de todas as armas possíveis para promover o sucesso de uma nova instalação. Entre as tentativas para isso, ele decide contratar uma empresa de relações públicas para fazer barulho em torno do assunto na mídia em geral. A burguesia europeia é retratada de forma degradante pelo roteiro, já que é ela que financia as caras exposições no museu, ao mesmo tempo em que ignora de forma contundente os miseráveis imigrantes à sua volta. As sequencias que mostram as exposições ou mesmo a visita das pessoas ao museu evidenciam a completa ignorância de todos em relação às obras. Em um dos momentos mais marcantes há a performance de um ator durante um jantar de luxo. Ele praticamente incorpora um gorila e passeia no meio dos convidados. Como um animal selvagem, avança de forma violenta contra as pessoas nas mesas e assedia as mulheres. Depois de um grande desconforto, é atacado por vários convidados, imitando assim as relações de luta por sobrevivência dos símios nas florestas. O ser irracional dentro daquele dito civilizado é o que toma conta, mesmo que objetos de luxo estejam adornando- o. A alma das obras se perde quando aqueles que as observam são nada mais que selvagens. O elenco é encabeçado pelo fantástico Claes Bang, como Christian, o curador do museu. Um homem elegante e sofisticado que acusa falsamente um garoto imigrante de ladrão e não possui a honra de se desculpar. Há também Elisabeth Moss, uma jornalista que tem um caso com Cristian e Dominic West como um artista de renome. Os dois últimos possuem papeis pequenos, mas de grande importância para a trama, já que são espécies de degraus que os roteiristas usaram para contextualizar as situações. Provavelmente o mais importante em relação às pretensões do roteiro seja a constatação de que a arte apenas serve para mascarar uma classe dominante que usa de sua falsa cultura para manter o status quo. O niilismo de suas vidas esta impressa em esculturas e pinturas que eles realmente não entendem, mas que apreciam e financiam por excesso ou soberba. Os entendedores em forma de críticos podem estar enganados e há alguém rindo em suas constas. Rindo por causas da ignorância burguesa sem sentido, que possui a convicção de ter visto muito onde não existe nada, ou mesmo vendo fora do lugar.
Quando o primeiro capítulo da nova trilogia de Star Wars foi apresentado, logo veio a impressão de que se tratava de uma releitura do clássico “A Nova Esperança”. Mesmo com as suas incontestáveis qualidades, “O Despertar da Força” claramente segue uma linha narrativa muito parecida com a do longa da década de 70. Por causa disso, era de se supor que os próximos dois filmes seriam as representações de “O Império Contra-Ataca” e de “O Retorno de Jedi”. Não se pode dizer que “Star Wars: Os Últimos Jedi” não possua elementos de “O Império Contra-Ataca”, mas a produção se sobressai ao subverter algumas regras já conhecidas dos fãs da franquia e por ser corajoso em algumas escolhas que causam surpresa na plateia durante as duas horas e meia de projeção. O que sempre estará presente no universo Star Wars é o seu grande tema central: a família. Rey (Daisy Ridley) é assombrada por não ter conhecido seus pais, Kylo Ren (Adam Driver) abraça ainda mais o lado negro da força por causa dos fatos ocorridos entre ele e seu pai e Luke e Léia sofrem pela distância que os separa, além de seus arrependimentos do passado. Todo o aparato sci-fi usado serve para apoiar essas histórias intimistas. Claro que há a sempre bem vinda mensagem antifascista: é preciso derrubar o onipresente repressor, que esmaga a liberdade dos indivíduos com seu poderio bélico. Também já virou ponto comum a semelhança do império, aqui a nova ordem, com o Nazismo. As sequencias de batalha em terra também remetem à primeira guerra mundial, a guerra travada em trincheiras. A direção e o roteiro de Rian Johnson são os elementos que formam a excelência de “Os Últimos Jedi”. Batalhas de naves, lutas com sabres de luz e tiroteios de blasters são executados de forma primorosa. A já esperada infiltração de sabotagem em alguma instalação da primeira ordem é realizada, mas com um desfecho fora do comum em relação a outras já vistas nos filmes anteriores. Criaturas e cenários são belamente trabalhados, honrando a tradição de Star Wars nesse quesito. No final do terceiro ato nos é apresentado um planeta salino em sua superfície que “sangra” assim que é tocado por soldados ou naves de batalha. Abaixo do sal há uma camada vermelha, representando toda a violência de uma guerra. A fotografia nas sequencias passadas nesse mundo merecem premiações no começo do ano que vem. Formado e afiado por J.J Abrams, o elenco novamente dá um show. O carisma de Daisy Ridley é apaixonante, a fúria de Adam Driver é palpável, assim como é enigmática as intenções de Luke Skywalker, interpretado por um maduro Mark Hamill. John Boyega parece mais seguro em seu papel e Carrie Fisher nos brinda com sua última aparição como princesa Léia. Todas as dúvidas que se tinha sobre como ficou as participações da personagem após a morte da atriz são sanadas, já que o roteiro não foi picotado por conta de sua ausência. Se houve algum tipo de substituição por meio de CGI não é possível perceber. C3PO, R2D2 e BB8 são a cereja no bolo nisso tudo. Tão conhecidos já antes da estreia, os porgs são apenas fofos e engraçados, mas irrelevantes para a trama. A decepção fica por conta de Snoke, não por causa da atuação sempre competente de Andy Serkis e sim pela falta de sentido com que o roteiro trata seus propósitos e seu destino. De Snoke não é possível falar muito para evitar spoilers. Tudo descrito acima pode ser sintetizado por uma única palavra: paixão. A paixão que tanto fez falta nos episódios I, II e III de George Luca e que é de suma importância para Star Wars. Em “Os Últimos Jedi” as lagrimas do espectador são de emoção. A emoção por algo que, mesmo se passando em uma galáxia muito distante, parece real, não apenas uma simples simulação de vida criada por computador. Os heróis estão ao alcance e é isso que dá folego à resistência. O mito dos Jedi pode inspirar guerreiros futuros, assim como o faz em crianças pobres que são exploradas por comerciantes de armas. Aquela escória maltrapilha (uma clara referencia a Oliver Twist) não mais se ajoelhará aos tiranos e se lembrará de Luke Skywalker e Rey quando levantarem as armas da revolução. Star Wars nunca foi tão atual, a politica é discutida nas entrelinhas e faz com que a nova geração de fãs se pergunte a respeito dos vilões de seu meio. Aqueles que não usam sabre de luz vermelho, mas são mais perigosos que Darth Vader.
Podemos dizer que “Liga da Justiça” é um filme que nasceu pressionado. Se por um lado o fracasso de seu antecessor “Batman Vs Superman: A Origem da Justiça”, assustou a Warner Brothers, por outro há o grande sucesso angariado pela aventura solo da Mulher Maravilha. Dois extremos que mostram o desiquilíbrio da DC em suas obras cinematográficas. Além disso, Zack Snyder deixou a produção ainda na fase de montagem, por causa da morte de sua filha. A solução foi chamar Joss Whedon para tocar o barco. Os fãs ficaram com o pé atrás quando Whedon decidiu mexer no roteiro e refilmar algumas cenas, e a bizarra história do bigode de Henry Cavill veio para completar o caos das refilmagens. Não há como negar que esses eventos deixavam um forte cheiro de bomba no ar, mas, felizmente, o cheiro se dissipa já nos primeiros momentos do longa, onde vemos a Mulher Maravilha em uma excelente sequência de ação. Como já sabemos pelos trailers, o inicio é ocupado pela busca de Bruce Wayne (Ben Affleck) por aliados; para tentar proteger a humanidade de uma ameaça poderosa. Temos aí a introdução rápida (provavelmente por causa da interferência de Whedon) de Barry Allen (Ezra Miller), Arthur Curry (Jason Momoa) e Victor Stone (Ray Fisher), respectivamente Flash, Aquaman e Cyborg. Os três se juntam à Princesa Amazona (Gal Gadot). A interação entre o grupo também é breve, mostrando alguns conflitos que não passam de superficiais. O vilão é o Lobo da Estepe, que esta atrás das três caixas maternas escondidas com as amazonas, os atlantes e humanos. O tempo é o maior problema de “Liga da Justiça”, já que o roteiro precisa apresentar inúmeros personagens e desenvolver a trama. O corte original de Zack Snyder possuía duas horas e cinquenta minutos, mas, depois das intervenções, foi montado com duas horas cravadas. São minutos que fazem falta em um blockbuster dessas proporções. Tudo é em grande escala e cada personagem precisa de espaço de tela suficiente para agradar os fãs, afinal, tratam-se de lendas da cultura pop. A montagem é eficiente em usar fragmentos de histórias e transformar em introduções, no entanto, não consegue mascarar a estranheza que é causada quando conflitos importantes são resolvidos em segundos. Os efeitos visuais seguem o padrão de qualidade típica de Hollywood, só apresentando alguns problemas pontuais. Um deles é o rosto do Super Man em um flashback do inicio do filme. A tentativa de retirar o bigode não foi totalmente eficiente, transfigurando o rosto do ator e ainda mostrando vestígios de pelos na face. Algumas cenas mostram claramente bonecos digitais e a artificialidade de seus movimentos. Se a montagem é bem trabalhada na introdução dos membros da Liga, o mesmo não pode ser dito da sua capacidade em ambientar o espectador durante algumas lutas e perseguições, contudo, aqui, a direção também tem sua parcela da culpa. Em vários momentos é confuso saber o que está se passando na tela; os planos fechados não ajudam na identificação do cenário e não é possível acompanhar a movimentação dos heróis e vilões; tudo fica extremamente embaralhado. Os pontos descritos acima mostram que “Liga da Justiça” não é perfeito e segue convenções do cinema comercial, assim como seus concorrentes vindos da Marvel. Deixando os detalhes técnicos de lado, a experiência é prazerosa e empolgante, não tendo nenhum ponto que ofenda a quem assisti. O medo de mais um fracasso será esquecido após a estreia, e todas as pessoas ficarão apaixonados e se divertirão com as piadas do Flash, a carranca do Aquaman, a beleza, nobreza e força da Mulher Maravilha; se colocarão na pele do Batman, o único sem super poderes, e sentirão saudades do Superman. Toda a força está nesses personagens, por isso, os aplausos surgirão ao final da sessão. No final mesmo! Já que há cenas importantes depois das ultimas letras dos créditos. Obs: Não perca tempo com a versão em 3D, é apenas um artificio vazio para gerar mais bilheteria.
Atualmente são diversos os filmes que falam sobre a crise migratória que vive a Europa, mas nenhum deles aborda o tema com tanta particularidade como “O Outro Lado da Esperança” de Aki Kaurismäki. O cineasta finlandês, que levou o prêmio de melhor direção no festival de Berlim em 2017, já é conhecido pelo seu jeito diferente de abordar temas que podem ser considerados polêmicos, como aqui, em seu mais recente filme. O roteiro é dividido em duas frentes: o de Khaled (Sherwan Haji), um imigrante Sírio que tenta asilo na Finlândia ao mesmo tempo em que procura a irmã, e Wikström (Sakari Kuosmanen), um vendedor que larga a esposa e a carreira para realizar o sonho de comprar um restaurante. A história dos dois segue paralela até quase o final do segundo ato, dando tempo para que conheçamos cada particularidade de suas personalidades. Os dois buscam um recomeço em suas vidas. Se Khaled tenta se restabelecer em um país que lhe dê abrigo, Wikström desiste de sua situação atual de homem de negócios e esposo para tentar algo novo. Eles se encontram e Khaled passa a trabalhar no restaurante comprado por Wikström. A história descrita não é nova, mas a forma como ela é contada foge do comum ou ao estilo de um diretor mais acadêmico. Cada imagem aqui carrega certo grau de ironia. Tudo é construído de forma teatral, desde os cenários, até as interpretações dos atores, que parecem ler suas falas na frente da câmera. A fotografia é desgastada e granulada, como de um filme antigo, dando um aspecto amarelado aos ambientes. Talvez a falsa sensação de esperança de uma Europa tida como acolhedora seja o alvo ou até mesmo a artificialidade das ações das pessoas e governos. O filme é cadenciado e a abundancia de planos americanos mantém certa distância com a plateia. São poucos os movimentos de câmera, afirmando a sensação de um teatro filmado. As ações dos personagens também são carregadas de significados. Um exemplo é quando Wikström tenta mudar o cardápio de seu restaurante para comida japonesa, a fim de gerar mais lucros. Sem ingredientes necessários para atender uma alta demanda, ele acaba trocando salmão por peixe enlatado, o que acarreta fracasso com a clientela nativa. Não é possível abrigar alguém em sua casa sem conhecê-lo totalmente. Ao substituir um ingrediente pelo outro, ele passa a ignorar parte da cultura de um povo e, com isso, os expulsa. Khaled também é constantemente expulso dos países em que pede asilo, pois nenhum deles o conhece totalmente ou entende seus problemas (um skinhead o chama de judeu em um momento, mostrando total ignorância em relação ao povo Sírio). O interessante é que a globalização mistura a cultura do mundo inteiro. Durante a projeção presenciamos apresentações de música finlandesa e americana, os personagens conversam em inglês e há um quadro de Jimi Hendrix pendurado na parede do restaurante. Será que essa globalização é falsa? Já que as pessoas não conseguem ser livres para ir de um país ao outro sem passar por algum posto de imigração. “O Outro Lado da Esperança” é a visão de mundo de seu realizador, e ele até pode ser visto como um otimista por causa da fraternidade gerada entre o imigrante e o vendedor. O vendedor que, mesmo com seus trejeitos robóticos e frios (não é o povo da Finlândia que possuí a fama estereotipada de ser frio?) é solidário e consegue, por meio de documentos falsos, que o imigrante se torne um cidadão. A ilegalidade ai é aceitável, já que é o estado o principal culpado por formar foras da lei.
O que seria dos cinéfilos sem o cinema independente? O transbordo de filmes comerciais cansam qualquer cérebro que está disposto a pensar um pouco mais do que o normal. Produções como “Três Anúncios Para um Crime” fogem do formato comercial e pisam em terrenos fora do comum para quem está acostumado com o filão hollywoodiano. Com uma produção modesta e um roteiro cheio de camadas, o cineasta Martin McDonagh constrói sua narrativa que gera uma certa estranheza de início, mas que toma forma e mostra suas intenções durante a projeção. A premissa já é interessante por si só ao mostrar Mildred Hayes (Frances McDormand), uma mulher forte mas totalmente amarga, que compra o espaço em três outdoors na entrada da cidade de onde mora para anunciar frases que cobram da polícia a resolução do caso do estupro e assassinato de sua filha. O xerife vivido por Woody Harrelson ganha destaque em uma das frases porque comanda uma delegacia cheia de policiais pateticamente incompetentes. São todos desprovidos de inteligência, dificultando, evidentemente, na investigação de qualquer crime. O principal deles é o oficial Jason Dixon (Sam Rockwell) com seu racismo e violência acima da média para qualquer agente da lei dos EUA. O humor negro é essencial para que os atos muitas vezes hediondos sejam justificados para os espectadores. Fica clara a influência dos irmãos Coen neste quesito. A cidade pequena, o sotaque característico de seus habitantes e todo o contexto da história lembram em muitas vezes o clássico moderno “Fargo”. O ódio que as pessoas da Ebbing, Missouri carregam deixa o clima tenso, principalmente quando os Outdoors viram notícia na televisão. Mildred Hayes é a síntese desse ódio, que está dentro dela e a sua volta, já que as pessoas da cidade passam a vê-la como uma espécie de vilã. “Três Anúncios Para um Crime” é cadenciado e por isso seus diálogos são importantes para que a trama se desenrole de forma competente. Outro fator agregador é a fotografia de Bem Davis, que externa as condições dos personagens em penumbras e mantem sua câmera sempre perto das emoções. Planos gerais servem como transições ou para mostrar a melancolia de uma cidade no meio do nada. O elenco escolhido por Martin McDonagh é, junto com o roteiro, o grande destaque, o que não é uma surpresa, pois conta com nomes de peso e é encabeçado pela maravilhosa Frances McDormand. A atriz, que havia dado um tempo aos grandes papeis, é uma explosão de emoções e fúria. Ela parece estar no limite de suas faculdades mentais e seu sarcasmo é recorrente. A dor que essa mulher sente é palpável e vemos em seu rosto enrugado as marcas que ela deixou. Marcas do passado, com um marido violento, e depois com a morte da filha. Suas ações são muitas vezes discutíveis, mas o filme não os julga, apenas mostra suas consequências. A indicação ao Oscar para McDormand é praticamente certa e será uma grande injustiça se ela não vir. Outro que merece ser lembrado pela academia é Sam Rockwell. O seu desempenho acarreta sentimentos diversos. Se coramos com seu comportamento patético e muitas vezes engraçado, também nos indignamos por causa da sua falta de comprometimento, com o tom preconceituoso e violento. Essa dualidade é difícil de conseguir em termos de atuação e aí está a aparente competência do interprete. Os personagens são grandes mulas para o sentimento de raiva, e a superação dela é o grande tema do filme. Como não senti-la depois da morte brutal de uma filha? Com a incompetência da policia? Ou mesmo com o simples comportamento de um membro da família? São questões levantadas e não respondidas, deixando ao espectador a função de imaginar o que acontece depois dos créditos finais.
Michael Haneke não é um artista fácil. Suas obras são de difícil absorção; sendo indicadas apenas para aqueles que realmente procuram algo que fuja do habitual. Seus filmes investigam o cerne do ser humano, mostrando sempre facetas assustadoras de nossa sociedade. “Violência Gratuita”, (os dois, já que houve uma refilmagem feita pelo próprio Haneke para Hollywwod) o mais conhecido deles, é um exemplo da escuridão que nos assola. Em sua atual fase e já septuagenário, o cineasta austríaco passou a discutir a morte e a falta de significado da vida, filmando o avassalador “Amor”. Como uma espécie de continuação de “Amor” ele lança em 2017 “Happy End”, que dividiu opiniões em Cannes, mas entregou o de costume: discussões sobre o sentido da vida, junto com uma clara critica a burguesia europeia. A história se passa em Calais, França. Georges Laurent (Jean-Louis Trintignant) é o patriarca da família, que está preso em uma cadeira de rodas. Sua filha Anne (Isabelle Huppert) ainda mora com ele, enquanto que seu filho Thomas (Matthieu Kassovitz) acaba de retornar para a casa do pai, junto com a esposa e a filha Eve (Fantine Harduin), cuja mãe faleceu recentemente. A família é claramente disfuncional e a interação entre eles desperta grande interesse. O niilismo aflora em cada frame capturado pela câmera do diretor de fotografia Christian Berger. As cores frias e os planos fechados são fantasmagóricos. Até a ensolarada praia é afetada pelo vento e a areia escura. No inicio do primeiro ato vemos alguém filmar de um celular a morte de um camundongo e também de uma mulher. As mensagens que aparecem na tela do celular, enquanto vemos as imagens chocantes, são esclarecedoras, e entendemos que a causadora das mortes é a mesma pessoa que filma. Ela envenena suas vitimas com overdose de antidepressivos. A frieza dessa sequência dá o tom do filme, nos fazendo entender que a vida para aqueles personagens não passa de algo banal. O vazio da família é representado pelo personagem de Trintignant. Suas tentativas de suicídio são diversas e sempre frustradas, o que gera até um pouco de humor patético. Se Trintignant é o vazio, Huppert é a imagem de uma burguesia que só se importa com os bens materiais e com convenções. Não há aqui uma personagem mimada, que segue estereótipos de alguém abastado, e sim uma mulher com frieza no olhar. O olhar que está direcionado à empresa da família e não aos seus membros. O relacionamento de Anne com o filho pode até parecer amoroso, mas ela só está preocupada com um sucessor, aquele que ficará a cargo dos negócios. Haneke segue todos com sua câmera, passeando em casas luxuosas, praias e restaurantes. Parece tentar entrar na mente de todos e descobrir quais são seus propósitos. Não encontra nada de fato, apenas a vontade de não existir. O roteiro configura suas pretensões em Eve. Assim como o avô, ela possui tendências suicidas e se vê em uma família que pouco conhece (mesmo o pai foi ausente desde que ela nasceu). É curioso colocar o avô em um lado – como em um final de uma história – e a neta de outro. A família está podre de inicio ao fim, o ideal seria que sumissem, assim como outras que formam a atual Europa idealizada. Os imigrantes também dão as caras, por assim dizer. São os empregados e os andarilhos que vivem no subúrbio, longe dos restaurantes, do luxo e das praias. Eles não existem de fato, estão fora da sociedade. Sociedade essa dominada por pessoas como Anne, que, com seus vazios existenciais, subjugam o que poderia se tornar humano.
É grande a importância de um filme como “O Jovem Karl Marx” em um mundo cada vez mais pendendo para a direita radical. Muitos que apoiam indivíduos como Donald Trump ou mesmo Jair Bolsonaro confundem os conceitos do comunismo com ditaduras retrógadas como a da Coréia do Norte e da Venezuela. Então, preferem apoiar o populismo desses ditos salvadores da pátria do que os “sujos comunistas”; assim mesmo, como se dizia na época da guerra fria. Só é uma pena porque o longa de Raoul Peck será restrito aos cinemas de arte depois que passar pela mostra e não atingirá uma parcela grande da população. Como o título entrega, os primeiros passos de Marx junto com seu amigo Friedrich Engels são esmiuçados pelo roteiro. Ficamos a par da vida desses homens e dos motivos que os levaram a pensar uma nova forma de organização social em contrapartida ao vigente capitalismo. Figuras como Mikhail Bakunin e Pierre Proudhon dão as caras para enriquecer ainda mais os ideais que serão base para o início da luta de classes. Vemos as agruras de Marx para expor suas ideias ao mesmo tempo que tenta sustentar sua família, assim como a angustia de Engels em fazer parte da classe industrial rica. Falado em inglês, alemão e francês, a verborragia impera em um roteiro que precisa, em pouco mais de uma hora e quarenta de duração, explicar teorias e apresentar inúmeros personagens. A legenda atrapalha em alguns momentos se caso o expectador não conheça nada do que está sendo explicado ou mesmo não saiba pelo menos o básico do inglês. Mas nada que atrapalhe o propósito da obra. A ambientação de época é fiel, apesar de ser minimalista. Por isso não espere grandes passeios por Paris de 1844. Tudo é encenado em apartamentos e bares, o que provavelmente aconteceu de fato. August Diehl traz um Karl Marx com explosões de arrogância e que tinha na convicção uma de suas maiores virtudes, enquanto Stefan Konarske faz de seu Friedrich Engels um ser gentil, que parece ter vivido em prol da genialidade do amigo, mesmo que seus escritos tenham sido tão geniais quanto. Academicamente filmado, “O Jovem Karl Marx” não pretende ser tecnicamente arrojado e sim ser um manifesto áudio visual. A câmera não tenta endeusar os personagens, ela sempre fica parcialmente afastada, em plano americano. O preto e o cinza das vestimentas, assim como os ambientes escuros da fotografia só são contrastados quando uma bandeira vermelha é estendida no lugar onde foi formada a primeira associação de trabalhadores. A confecção do Manifesto Comunista é para onde converge a narrativa e é a partir dele que eclodiram, em 1848, revoluções em toda a Europa, a chamada primavera dos povos. Frases do manifesto são narradas, enquanto pensamos no que mudou de lá para cá. É utópico pensar em uma sociedade socialista na nossa realidade moderna, mas é necessário que Marx e Engels sejam lidos e entendidos, para que um pouco deles se infiltre em nosso dia a dia. Será possível?
Durante as duas horas de projeção de Human Flow, Ai Weiwei mostra o voo livre de aves migratórias. A sua câmera as filma fazendo um paralelo com os seres humanos no solo, os que se mantém presos em territórios temporários. Naquele contexto, esses humanos não fazem parte de nenhum país. Fogem das intermináveis guerras, da fome e da morte. Eles não são como as aves, tiveram sua liberdade usurpada. O diretor chinês visita lugares que recebem milhões de imigrantes, mostrando um cenário desumano e que só tende a piorar. O número de pessoas que fogem de seus países de origem em busca de uma vida melhor cresce todos os anos. A Europa, que é o destino mais comum delas, já estuda não receber mais ninguém, e os que já estão por lá permanecem no limbo dos campos de refugiados, que mais parecem campos de concentração O roteiro de Human Flow é sutil em mostrar a vida difícil de quem espera por ajuda. A câmera não se intromete naquelas histórias, ela apenas registra os fatos. Algumas vezes há perguntas diretas feitas pelo diretor, que também se deixa filmar várias vezes(ele interage com os refugiados, entrando no seu dia a dia e nos seu costumes), mas tudo flui naturalmente como um documentário puro. A inserção de legendas é necessária para que a plateia fique a par das estatísticas grandiosas desse problema global. Mesmo sendo imparcial, Human Flow possui ares de denúncia nas suas entrelinhas. A Europa é mostrada como a grande vilã, aquela que paga para que os refugiados sejam enviados para outros lugares. As falas vazias de representantes de países poderosos, e a repercussão na mídia ganham espaço e deixam clara a intenção em mostrar que poucos realmente se importam com as crianças, mulheres e homens que perdem sua dignidade e transformam-se praticamente em sub-humanos. A fotografia é bela mesmo se tratando de um documentário. As analogias empregadas pelos enquadramentos são certeiras em mostrar as intenções dos realizadores. Uma delas é quando um plano geral mostra pessoas amontoadas dentro de uma espécie de jaula, esperando para passar na catraca de controle do que parece ser um posto de imigração. Elas estão espremidas nas barras, parecendo animais indo ao abate. Há também sequências filmadas por drones, que sobrevoam os campos de refugiados fazendo-os parecer grandes formigueiros. As cenas na África trazem pessoas vagando sem rumo em meio às cortinas de areia; em ambientes em que a vida está quase no fim. Cadáveres esquecidos no deserto são filmados em primeiro plano, assim como rostos aos prantos diante da barbárie. Vivendo em Berlim, por causa de atritos com o governo chinês, Weiwei também se considera um refugiado, e talvez por isso ele consiga tanto sucesso em mostrar esse mundo que muitos ignoram. O pessimismo é sim o sentimento mais presente durante a projeção. Talvez não haja esperança de um futuro melhor se as fronteiras não forem extintas e os muros derrubados. Afinal, o planeta pertence a todos os seres humanos, e não podemos ser privados do direito de possui-lo.
O cineasta romeno Calin Peter Netzer ganhou em 2013 o urso de ouro no festival de Berlim com o pesado “Instinto Materno” e, consequentemente, arrebatou o público da 37ª Mostra de Cinema de São Paulo. Agora ele apresenta com altas expectativas “Ana, Meu amor”, seu mais recente trabalho. O cinema cru e realista vindo da Romênia já é conhecido e apreciado por cinéfilos do mundo todo, principalmente em festivais especializados, o que faz com que sempre esperemos mais uma obra prima vinda do país. Infelizmente “Ana, Meu amor” não é uma obra prima e nem possui o poder do filme anterior do cineasta. Netzer filma o relacionamento de Toma e Ana desde o momento em que eles se conhecem na faculdade, mostrando as dificuldades do casal por causa dos problemas psicológicos dela. O recorte de vida que tem por objetivo o estudo de personagens é até competente em sua forma narrativa, pois mostra a vida como ela é: cheia de tempos mortos e situações longas e entediantes. Mas tudo isso na tela, em mais de duas horas, requer um excesso de paciência por parte do espectador. O problema do longa não é sua lentidão, que é justificável pelo tipo de história que se quer contar, mas sim a repetição de situações e a falta de interesse que a trama causa. O filme, em seu primeiro ato, se resume às cenas de sexo entre o casal (muito bem filmadas e corajosamente explicitas) e nos surtos de pânico de Ana. A partir do segundo ato, o diretor passa a fragmentar o filme em uma montagem que mostra passado, presente e futuro entrelaçados, dando uma sensação de desesperança, já que há o amor sincero do início do namoro e o desgaste entre marido e mulher no futuro. Talvez a falta de interesse, gerada em mim pelo menos, seja em parte pela forma de atuação destoante dos atores, que mesmo competentes em suas performances, não possuem química como um casal. Não consegui acreditar no amor entre os dois em nenhum momento. Diana Cavallioti é a mais carismática, suas crises de pânico são convincentes, mas suas interações com Mircea Postelnicu não possuem peso. Mas pode ser pela qualidade superior de sua atuação em comparação com seu colega de cena. Algo a se destacar é a primorosa direção de câmera. Os planos sempre fechados em uma fotografia fria de inverno, aliados com câmeras tremulas dão forma de desespero e isolamento ao filme. O isolamento dela, que mesmo estando sempre junto a ele, se vê em um turbilhão de emoções que não podem ser descritas em palavras. O relacionamento se torna quase como a de um pai com uma filha. O sentimento de que ela nunca conseguirá viver normalmente sem ele é sempre presente, o que gera os conflitos que fazem a história avançar. Nem de longe “Ana, Meu Amor” é um filme ruim, só é sabotado pela sua própria forma. Tende a agradar aos novos fãs do cinema romeno e ao público da mostra, a mim só causou indiferença, infelizmente.
A primeira produção cinematográfica realizada pela Netflix no Brasil não poderia ser mais norte americana. A história de foras da lei e matadores já foi feita tantas vezes que não adianta adicionar o cangaço e o sotaque tupiniquim na equação para que algo de original surja milagrosamente. O cineasta Marcelo Galvão tenta e só não falha totalmente por causa da beleza com que ele imprime suas imagens em nossas retinas. A narração em Off que remete incomodamente a “Cidade de Deus” é o que primeiro problema veio à minha mente quando comecei a pensar neste texto. Não que seja proibido usar narrações em Off, mas construir todas as suas sequencias em forma de “manual” daquele mundo, como no sucesso de Fernando Meirelles, é o que faz “O Matador” perder sua força desde do início. O narrador (que é um contador de histórias apresentado nos primeiros minutos) dá nome aos bois, relata acontecimentos e apresenta os personagens, como Buscapé, mas sem o aprofundamento dos personagens, tão importante para que pudéssemos entender o contexto da situação e nos importarmos com seus destinos. Há problemas de montagem ou mesmo de direção em interromper sequencias sem que haja uma resolução para o que foi iniciado, mesmo que de forma subjetiva. Por isso, não sabemos o que acontece a personagens que tem suas histórias traçadas mas não definidas, sumindo como mágica. Mesmo para um elemento chave, como Sete Orelhas (Deto Montenegro, mudo), que possue um começo, meio e fim na narrativa, tudo é muito vago e vazio, não trazendo sequer justificativas plausíveis para seus atos. As atuações de alguns atores são caricatas demais mesmo sendo a caricatura o propósito de suas existências. Talvez o maior problema seja o protagonistas Cabeleira, vivido pelo ator português Diogo Morgado. Sua mistura de homem das cavernas com cowboy é vergonhoso de fazer corar, apesar de ter gerado risos em alguns momentos. Dentre os arquétipos, o mais competente é Paulo Gorgulho e seu Tenente Sobral. O ator se esforça em conferir sofrimento em suas expressões e acerta na construção de um sujeito consumido pela vontade de vingança. O nome de Mel Lisboa está nos créditos, mas ela entra muda e sai calada em uma cena breve. Maria de Medeiros possui um papel tão insignificante que poderia ser entregue a qualquer iniciante, e não a uma atriz já tão conceituada. Como dito no início, “O Matador” só não é um desastre total pela enorme capacidade com que Marcelo Galvão e seu diretor de fotografia Fabrício Tadeu possuem em criar imagens memoráveis. Com certeza os dois aprenderam muito assistindo os westerns clássicos. O nordeste árido é perfeito para as lentes de Tadeu, já que a poeira é quase palpável nas roupas e nas peles, com o amarelo tomando conta de quase tudo. Os habituais planos e contra planos de duelos de pistolas também estão presentes, mas com a vantagem de ter ao fundo cidadezinhas que parecem que vão desabar a qualquer momento, devido sua fragilidade. Se houvesse uma história realmente relevante em “O Matador” a estética não seria apenas a única a ser apreciada.
Se Matthew Vaughn já surtou na construção das cenas de ação e no humor negro em "Kingsman: Serviço Secreto", posso dizer que ele se superou em "Kingsman: O Círculo Dourado". A fórmula do sucesso da produção de estreia dos espiões engomadinhos está na sua enorme capacidade em não se levar a sério em nenhum momento. E é o que seu sucessor segue ainda mais à risca, mesmo abordando temas tabu, como o uso e a legalização das drogas. Geralmente a produção sequente de um filme de sucesso recebe mais investimentos por parte dos estúdios, o que aumenta suas proporções e também as expectativas. "Kingsman: O Círculo Dourado". Não dá um passo mais largo em suas aspirações, apesar de expandir sua história em alguns pontos. O que ele faz é trazer tudo o que deu certo no primeiro, com a adição de elementos responsáveis por tirar os personagens da zona de conforto. A trama não é nada mais do que comum: Uma criminosa insere um vírus em vários tipos de drogas e infecta pessoas no mundo todo. Para fornecer o antídoto, ela exige que um acordo com o governo dos EUA. Com isso, os agentes Kingsman precisam encontra-la, agora com a ajuda da agência Statesman, sua parceira americana. A simplicidade do texto não impede que Vaughn e os roteiristas Dave Gibbons, Jane Goldman e Mark Millar criem personagens impagáveis. Começando com a vilã vivida por Juliane Moore (se divertindo horrores com esse papel). Ela vive no meio da selva, em uma instalação que lembra as cidades americanas dos anos 50, possui cachorros robôs e faz hambúrguer de carne humana. A atuação de Moore segue o cliché vilanesco, o que não é um problema, já que o charme da atriz nos compensa. Eggsy (Taron Egerton) nós já conhecemos, mas nunca é demais ver um ex malandro como um gentleman mortal. As adições mais interessantes são dos agentes Statesman. Pedro Pascal entrega todo seu carisma como um cowboy laçador, assim como Channing Tatum o faz em suas sequências de introdução (já que, provavelmente irá voltar no futuro). Colin Firth agora é um Galahad desmemoriado e terá sua sanidade questionada, mesmo por seu quase filho Eggsy. Adjetivar suas personalidades pode parecer irrelevante, mas o aprofundamento deles não faz parte do objetivo do roteiro e sim usar as características marcantes de seus intérpretes em prol de suas construções. Elton John, para minha surpresa, também está no filme, e é hilário. Suas cenas cheias de auto referências são memoráveis. E quem pensar que se trata de apenas uma participação especial, saiba que ele é importante para a resolução da história. A edição ágil de Eddie Hamilton ajuda Vaughn na concepção de sequências de ação frenéticas. Como a da abertura, que mostra uma luta dentro de um taxi em alta velocidade. Os cortes rápidos, aliados com as câmeras lentas estilizadas entregam a assinatura do diretor no quesito ação. Cenas de ação essas que são potencializadas pela trilha sonora, com seus hits empolgantes, que grudam na cabeça e passam a fazer parte de cada frame. A franquia Kingsman se destaca por sua sempre frequente tentativa de inovação ou extrapolação de tudo o que já foi feito em Hollywood para esse gênero de filme. É como se James Bond ou Jason Bourne tivessem tomado ácido. Toda a miscelânea de acontecimentos e gadgets poderiam atrapalhar e transformar o filme em algo enfadonho, mas Vaughn tem total controle do processo e entrega um produto divertido e descompromissado. Confesso que o novo cinema comercial está me irritando há algum tempo, por causa, principalmente, da falta de originalidade e da repetição. Por isso, espero que os estúdios se inspirem em Kingsman e comecem a trazer ao público produções mais relevantes, mesmo que seja no cenário Pop.
Se Alfred Hitchcock estivesse vivo e assistisse “Mãe!”, ele com certeza aplaudiria de pé. Darren Aronofsky conseguiu captar toda a aura do mestre do suspense em um filme tenso, assustador, que carrega linhas de interpretação e temas diversos. Muitos irão odiar, outros irão amar, mas o papel da obra de arte estará completo no debate que se torna primordial ao final da projeção. Com certeza não é um filme de fácil assimilação e não é indicado para todos (na cabine de imprensa houve críticos deixando a sala de exibição), mas quem quiser algo diferente e que dispersa emoção, não se arrependerá de assistir.
Na trama, a mãe do titulo (Jennifer Lawrence) e um poeta famoso (Javier Bardem) tem o relacionamento testado quando um homem (Ed Harris) e em seguida uma mulher (Michelle Pfeiffer) surgem em sua residência acabando com a tranquilidade. Inicialmente não sabemos muito sobre essas pessoas, apenas que são um casal passando por dificuldades. Após essa a visita, a casa praticamente receberá uma invasão de pessoas de todas as partes, mesmo estando isolada no meio do campo.
Logo de início, o roteiro de Aronofsky entrega que a casa pertence ao poeta, que se muda com a esposa para que ela o ajude a reforma-la, enquanto ele tenta sair de um bloqueio criativo. A reconstrução da casa, junto com a da carreira do poeta (que não publica nada há muito tempo) seguem em paralelo, com a mãe no centro da duas. Ela é a responsável por todas as obras da reforma e ainda tenta inspirar o marido. Lawrence se entrega à narrativa, e Aronofsky persegue sua musa incessantemente. Nós seguimos seu ponto de vista durante toda a projeção. A câmera gira em torno dela, como se estive em sua orbita. Os planos sufocam-a, ela aparece presa no quadro. Presa em uma situação agonizante. A fotografia de Matthew Libatique é sombria. A penumbra é importante para expor o interior sentimental do casal, e os planos sequência com o barulho dos passos no piso de madeira dão quase vida àquela velha casa, fazendo-a gemer. Tudo se torna orgânico. Como se trata de um filme de câmara, os espaços são reduzidos. Há frequentes closes nos rostos dos personagens, servindo para reforçar as expressões dos atores e tornar ainda mais evidente a extrema categoria de Jennifer Lawrence como atriz. A sua voz quase não pode ser ouvida em alguns momentos, devido a sua calma e serenidade. Mas, com a tensão crescente por causa das visitas inesperadas e por acontecimentos estranhos que passam a acontecer na casa, o seu tom muda gradualmente, indo da confusão à extrema histeria. Lawrence consegue dosar tudo com maestria e com uma hipnotizante presença de cena. Javier Bardem não é menos que genial em sua construção. O poeta é assustador com seus ataques de fúria (um desses com um grito quase demoníaco) e encantador quando declara seu amor à esposa. Os dois se completam em cena, trazendo substancia para a história.
Os ícones de adoração são temas chave em “Mãe!”. Toda a narrativa começa e se encerra neles. O menino jesus sendo carregado pela multidão é encenado de forma brutal, o culto às celebridades, à fama, à riqueza, ou mesmo a um simples objeto são materiais de estudo. A casa vira um microcosmo que representa toda a nossa história de guerras e mortes em torno de algo que, em algum momento, alguém achou que tivesse algum significado. Cultos e bizarrices tomam conta de cada cômodo e a mãe se desespera por não conseguir expulsar todos aqueles seres de dentro da casa, de dentro dela. A casa é saqueada, praticamente destruída e leva junto a sanidade de sua moradora. O poeta, não se importa com a invasão, já que há ali vários de seus fãs. Ele se alimenta da devoção deles. Aronofsky conduz a trama destrutivamente até o final que impacta pela violência e pela revelação. Como eu disse, não é um filme fácil, mas quem entrar na atmosfera criada pelo diretor, sairá baqueado com o resultado.
Ao final da sessão de “Os Guardiões” fiquei me perguntando o motivo da sua existência. A versão russa de Os Vingadores poderia funcionar como uma sátira ao famoso supergrupo; com a formação de heróis europeus em contrapartida à massiva presença dos americanos. Mas, infelizmente, o filme se leva a sério e tenta criar uma franquia cinematográfica para, na cabeça de seus idealizadores, competir com seus primos ricos da américa. A Rússia se destaca mundialmente pelo seu cinema de arte, que faz sucesso em festivais importantes, sendo em “Os Guardiões” uma das poucas vezes que algo mais pop é produzido no país. Quando os filmes da Marvel começaram a pipocar nas telas, o gênero super-heróis se tornou a grande pedida de Hollywood para gerar lucros. Já foram produzidos tantos exemplares que fica difícil algum deles fugir dos clichês intermináveis e das tramas genéricas. Então, já que não há mais o que ser contato, o melhor é investir pesado nos efeitos visuais. Histórias vazias em capas extremamente bonitas e bem feitas. Mesmo personagens icônicos dos quadrinhos não estão conseguindo transportar para o cinema suas auras inovadoras de décadas passadas. Mesmo neste cenário, alguém teve a “grande” ideia de fazer mais um filme de super-heróis, ainda por cima, falado em russo e com atores que possuem nomes impronunciáveis (pelo menos para quem não mora naquela parte do globo). Já me desculpando com os roteiristas que podem ler esse texto, usarei a palavra “trama” apenas como fator ilustrativo. Ela (a trama) gira em torno de quatro pessoas que são submetidas a experiências genéticas durante a guerra fria e ganham habilidade especiais como resultado. Um deles pode manipular concreto, outra fica invisível, há o do tele transporte e o metade homem - metade urso. Além dos quatro, há o cientista que também é afetado pelos experimentos e se torna o grande vilão da história. Os heróis são reunidos de forma rápida por uma espécie de Nick Fury feminina, porque o cientista louco perdeu o controle e quer dominar o mundo. Quando eu disse que eles são reunidos de forma rápida, foi na forma literal mesmo, já que o filme possui uma hora e vinte e oito minutos de duração, o que, evidentemente, retira qualquer possibilidade de aprofundamento dos personagens. Se Hollywood passou a investir em efeitos visuais para suprir a falta de ideias, o mesmo não pode ser dito dos responsáveis por “Os Guardiões”. Em uma sequência ou outra eles são até satisfatórios, mas na maior parte da projeção são tão vergonhosos que fazem corar qualquer cineasta de filmes B da década noventa – provavelmente o orçamento foi se esgotando e os efeitos foram junto. A direção de Sarik Andreasyan não ajuda para atenuar a escassez de qualidade técnica, já que é quase amadora. Então, quando um personagem tem que dizer algo que soe heroico, ele vira a cabeça para fora do enquadramento enquanto a música se torna estridente. Andreasyan não consegue gerar nenhum tipo de estrutura para seu personagens, tornando-os apenas arquétipos mal feitos que desfilam na tela. A direção em algumas cenas de luta não é desastrosa – como a que apresenta o personagem que se tele transporta – pois traz um certo grau de originalidade em sua coreografia, o que não salva todo o resto do pastiche. A condução de atores é inexistente, com atuações dignas das piores telenovelas. Não resta muito mais o que dizer sobre "Os Guardiões" além de enumerar as enormes falhas em sua concepção, o que tornaria esse texto extremamente cansativo. Se alguém quer ir ao cinema para dar boas risadas com uma produção ao estilo Ed Wood, aqui encontrará uma boa pedida.
Hollywood espreita Stephen King como um urubu na carniça. A fábrica de escrever livros que o autor se tornou o faz ser um dos que mais disponibilizam obras para adaptações cinematográficas. Sejam séries ou filmes, por muitas vezes nos deparamos com “baseado na obra de Stephen King” nos créditos. Usar livros do mestre do terror como base para roteiros é uma boa ideia, levando em consideração a quantidade de dólares que ele faz em vendas (que são gerados pelo abastecimento aos seus milhões de fãs espalhados pelo mundo). No entanto, às vezes, o tiro sai pela culatra. Isso por causa de produções que não conseguem traduzir o estilo do escritor para as telas ou que o altera de diferentes formas. O exemplo mais recente na TV foi a limitada e já cancelada “Under The Dome”. No cinema um que, surpreendentemente, não obteve a chancela de King foi o clássico “O Iluminado”, mesmo sendo uma obra prima da sétima arte e pertencente ao mítico cineasta Stanley Kubrick (aqui há algumas questões de discordâncias pessoais entre os dois que não cabem descrever neste texto).
A tentativa em 2017 de fazer dinheiro nas costas do pobre escriba do Maine é “A Torre Negra”. Mas, sinto dizer que não será dessa vez (mais uma vez) que veremos um grande filme vindo de um de seus escritos. O longa dirigido por Nikolaj Arcel (“O Amante da Rainha”) não é, de maneira alguma, deplorável, mas passa longe de ser algo relevante para a cultura POP ou mesmo de transpor a inventividade de King. Digo isso de forma geral, baseando-se em outros livros dele e em adaptações antes feitas, já que não li a série “A Torre Negra”. A história é tão genérica e breve em sua execução que poderia ter sido baseada em qualquer outro livro, menos em um de King.
Na trama há um feiticeiro poderoso chamado de Homem de Preto (Matthew McConaughey, canastrão) que viaja entre dimensões atrás de crianças com o poder de destruir a torre negra. Essa torre é o pilar que mantém todo o universo seguro contra os demônios do outro lado, ou seja, além do universo conhecido. O pistoleiro Roland Deschain (Idris Elba), é o último de sua classe e o único que pode tentar combater o feiticeiro. Ao encontrar a tal criança aqui na terra, a luta entre o bem e o mal tem início. Literalmente há uma torre que é o alicerce para uma barreira invisível que separa nós e todas as outras dimensões do inferno. Junto a isso temos pistoleiros, feiticeiros e crianças com poderes telecinéticos. Todos esses elementos juntos em uma história só poderiam ter saído da mente de King. Bastava pegá-los e construir um filme a sua volta, mas os roteiristas preferiram ir pelo caminho mais fácil e que, na concepção deles, seria de melhor compreensão para o público em geral. Claramente as novas regras sagradas do cinema comercial e desenvolvidas pela Marvel foram seguidas aqui: o filme precisa ser menos sombrio e não mostrar violência ou questões psicológicas que não sejam resolvidas no intervalo entre dois cortes, além de vez ou outra fazer uma piadinha para descontrair. Então, ao espectador mais acostumado, fica claro que não haverá consequências realmente sérias para todos os personagens, e mesmo aquelas que são, possuem um verniz superficial que se sustentam por alguns minutos apenas. Tudo ficará bem com um bom abraço e um cachorro quente.
Tecnicamente o filme entrega o que já é habitual e obrigatório na Hollywood moderna: efeitos especiais competentes e cenas de ação barulhentas e bem coreografadas, apesar de serem clichês. O design de algumas criaturas e principalmente da torre negra são o que se destacam esteticamente, trazendo inspiração em suas concepções. Fotograficamente fica difícil analisar um filme desses, já que nunca sabemos o que foi realmente filmado ou o que é fundo verde, no entanto, julgando-se as cenas passadas na terra e apenas com atores, nada foge ao comum. A montagem é falha em alguns momentos ao conferir transições muito rápidas entre uma cena e outra e por não seguir o fluxo adequado da mise-en-scène. Em síntese, “A Torre Negra” é para aqueles que nunca botaram os olhos em nada do que Stephen King escreveu e que gostam de cenas de ação e momentos dignos de filmes de super-heróis.
A segunda guerra mundial provavelmente é o conflito mais retratado pelo cinema nos últimos anos. Já foram feitos filmes sobre as batalhas em si e sobre pessoas comuns que tiveram importância nos seus rumos. Alguns dos mais conhecidos e premiados são “A Lista de Schindler”, “O Pianista” e “O Resgate do Soldado Ryan”. Praticamente todos os anos temos alguma produção que conta alguma história passada no período, e que saem de vários países, não só de Hollywood. A França faz o seu em “A Viagem De Fanny”, que é sobre um grupo de crianças judias que são acolhidas e escondidas por famílias francesas durante a ocupação nazista no país. Após a descoberta dos abrigos, elas são obrigadas a fugir e tentar chegar à fronteira com a Suíça. A guerra pelo ponto de vista de crianças deixa o tom da produção um pouco mais leve, apesar de haver alguns momentos de tensão durante a fuga, como quando elas são aprisionadas por soldados traidores. A condução de Lola Doillon é eficiente em tirar de todos em cena, mesmo dos mais novos, atuações convincentes e sem exageros, além de construir cenas em que as brincadeiras infantis aliviam o clima. Por isso, a esperança sempre está presente dentro do grupo, o que leva o espectador acreditar que tudo ficará bem. A fotografia segue o otimismo por trazer ambientes extremamente iluminadas e coloridos, destacados pelos planos abertos e por expositivos movimentos de câmeras. O que, evidentemente, tem o objetivo de mostrar os belos cenários em que a história se passa. O figurino é trabalhado para, praticamente, retirar as cores escuras da vestimenta das crianças, deixando para os soldados o preto e cinza. O roteiro não traz nenhuma grande sacada, apenas mostra o típico Road Movie que todo cinéfilo aprendeu a gostar, sendo os relacionamentos o seu foco principal. Os adultos são mostrados como seres que não são de total confiança, tornando a aparição de qualquer um em uma potencial ameaça. Personagens como de Cécile de France e Stéphane De Groodt são os poucos que servem de ajuda durante a jornada, mas que estão presentes apenas como pontes para o amadurecimento precoce das crianças. Obviamente, a personagem Fanny (Léonie Souchaud) é a que possui mais atenção do roteiro, sendo ela a líder do grupo e a que mostra mais coragem para enfrentar os problemas. Sua responsabilidade é ainda maior porque tem que cuidar das duas irmãs pequenas e precisa fazer o papel dos pais ausentes. Ela, ao olhar pelo visor de uma câmera, lembra-se dos momentos felizes com sua família no passado e sonha um dia voltar a eles, mas, para isso, precisa chegar à Suíça. A falta de comida, de água e a perseguição dos inimigos é constante, o atrito entre o grupo também chega a ser um problema para a garota. A aventura do filme está contida nesses elementos e a inocências dos envolvidos confere, às vezes, alguns momentos cômicos, servindo de escape para o contexto geral da trama. A fofura de algumas situações ajuda a criar empatia suficiente para que a história transcorra até o final sem grandes percalços. O filme é baseado em uma história real e tem em sua base os inúmeros órfãos que surgiram na Europa pós-guerra. É triste constatar, pelo que é mostrado no filme e pelos fatos históricos, que muitas dessas crianças não tiveram chances de fugir, sendo vitimas dos campos de concentração nazistas. O que nos resta é o consolo em saber que houve inúmeros grupos de Fannys que conseguiram sobreviver a umas das maiores barbáries que nós já produzimos neste planeta. Vale a pena conferir para que possamos pensar com mais carinho sobre nossas crianças.
Guerra. Essa é uma palavra muito presente na história da humanidade e, por mais que evoluímos, esses conflitos ainda estão presentes. A nossa espécie busca na destruição a forma de resolução de seus problemas, e assim será até que não sobre pedra sobre pedra. A arte alerta para esse padrão destrutivo que possuímos, como Pablo Picasso fez com Guernica ou Kubrick com “Nascido para Matar”, mas os erros continuam a ser cometidos. As guerras podem ser em escala mundial ou podem fazer parte de um microcosmo, como a guerra travada por negros e mulheres para serem aceitos como iguais, ou mesmo dos homossexuais que são tratados como escória por vários outros grupos que fazem parte do mundo dito civilizado. As diferenças são, talvez, as principais causadoras dos horrores que fazemos uns para os outros. O medo do que é diferente é uma arma poderosa para causar a extinção, e é sobre isso que trata “Planeta dos Macacos: A Guerra”. Caesar (Andy Serkis) é a síntese dos conflitos vividos por todos os seres pensantes que já pisaram na terra. Apesar de parecer mais evoluído e, claro, por não fazer parte do homo sapiens, Caesar está entre a compaixão, o perdão e o ódio, assim como está o Coronel (Woody Harrelson). Os dois compartilham a busca pela sua sobrevivência e de seus semelhantes e também o medo de um futuro incerto para as espécies. “Planeta dos Macacos: A Guerra” começa com um grupo de macacos sendo perseguidos por soldados em meio a uma floresta, onde estão exilados junto a seu líder Caesar. Mesmo com a vitória, os macacos sofrem inúmeras baixas, fazendo-os pensar em fugir para uma região mais afastada. Daí surge o embate entre o líder dos macacos e o Coronel, seguindo as temáticas da perseguição, escravidão e, claro, da guerra. O Coronel não é retratado como um simples vilão que quer a morte dos macacos por motivos fúteis. Ele possui motivos tão profundos como os de Caesar e Woody Harrelson contribui para a complexidade do personagem, assim como o faz Andy Serkis. Os macacos são ameaçados pelo Coronel e seu exército, e o Coronel por sua vez é ameaçado por um inimigo desconhecido que não conhecemos de início Matt Reeves executa uma obra dramática e filosófica, que possui cenas pontuais de ação, bem menos do que sugeriam os trailers, que mostraram muitas explosões e correria. A câmera de Reeves é ágil nas sequencias de batalhas e soturna naquelas onde as mortes são retratadas. A fotografia executa algumas homenagens, como a cavalgada na praia ao pôr do sol, remetendo ao Planeta dos Macacos clássico e mesmo alguns planos na mata, que fazem lembrar “Apocalypse Now” ou mesmo “Platoon”. O holocausto também está presente nas prisões ao céu aberto onde os macacos são confinados. Em meio às referencias está Caesar, o grande herói grego. Ele possui tragédias em sua família, a sabedoria angariada como líder e a responsabilidade entre escolher para seu povo a barbárie ou a complacência. Caesar nos guia em sua epopeia ao mesmo tempo que lidera os macacos. Como Moisés fez com os israelitas. A jornada é reforçada pela trilha de Michael Giacchino, que nos traz uma mistura de tensão – com batidas intensas e ininterruptas – e heroísmo – rápidas e de teor épico – o que já era esperado se tratando de um super blockbuster. Como Caesar é o ícone aqui, é justo que o filme jogue todas as suas fichas nele. As representações físicas de conceitos abordados pelo roteiro são claras de várias formas. A variação da postura de Caesar é um exemplo: se suas emoções estão mais próximas das dos humanos, o vemos ereto em meio aos seus súditos, parecendo um ditador que faz valer suas vontades supremas, já quando corre em quatro patas, se iguala ao povo e entende as suas agruras. Na verdade vemos Caesar quadrúpede poucas vezes, sendo uma já quase no encerramento e de forma decisiva. A inclusão de novos personagens como o atrapalhado e inocente Macaco Mau (Steve Zahn) e uma garota muda, chamada de nova – como sendo uma evolução dos humanos e macacos – faz um contraponto ao sério líder, o que confere leveza e alivio cômico em alguns momentos. “Planeta dos Macacos: A Guerra” encerra a franquia trazendo algumas definições, mas deixa muito em aberto para que haja mais histórias no futuro. Provavelmente veremos algum filme pautado na nova espécie evoluída dos humanos e macacos e os conflitos gerados pela divisão em três frentes, o que seria interessante de ver. O certo é que a franquia não irá parar por aqui , já que trata das melhores produções que Hollywood vem entregando nos últimos anos.
No imaginário popular dos brasileiros há a visão enraizada de um cinema nacional onde o que impera são os filmes violentos passados em favelas, os do sertão miserável ou mesmo as comédias escatológicas. Esse tipo de ponto de vista é presente porque as produções estão em nossas telas há muito tempo e em grande quantidade, quase transformando o nosso cinema em um produtor de temáticas limitadas. Parece que não aproveitamos nosso grande território, concentrando as histórias no centro oeste e no nordeste. Mas, como Selton Mello prova em “O Filme da Minha Vida”, a verdade não é bem essa. Toda a trama de “O Filme da Minha Vida” se passa na bela e bucólica região da serra gaúcha, mais precisamente na pequena cidade de Remanso. Lá, acompanhamos o jovem Tony (Johnny Massaro), que decide retornar a sua terra natal após passar alguns anos estudando na capital. Ao chegar, ele descobre que Nicolas (Vincent Cassel), seu pai, voltou para França alegando sentir falta dos amigos e do país de origem. Tony acaba tornando-se professor e vê-se em meio aos conflitos devido às inexperiências juvenis e também à melancolia crescente de sua mão Sofia (Ondina Clais Castilho, ótima). A história adaptada a partir da obra do autor chileno Antonio Skármeta é carregada de poesia visual. Selton Mello, com o apoio do celebre diretor de fotografia Walter Carvalho, desfila seu estilo em planos que parecem tirados de pinturas impressionistas, por causa da variação de cores e do belo trabalho de luz. As casas e os objetos de cena são todos pensados para que pareçam antigos e gastos, com a ferrugem sempre aparente. Uma espécie de capsula do tempo. As influencias do cinema europeu são evidentes pelo estilo da fotografia e pela direção, que é mais cadenciada e privilegia as atuações. Para reforçar a europeização há também a trilha sonora, onde se destacam Charles Aznavour e Nina Simone. Além de belo, “O Filme da Minha Vida” traz uma narrativa que consegue proporcionar emoção e suspense. Mello conduz intercalando passado e presente e mescla com momentos de sonhos de Tony. A montagem é competente ao mostrar o essencial e ajuda a construir o caráter dubio de alguns personagens chave para a resolução da trama. O drama familiar e o amadurecimento são os temas abordados pelo roteiro (também escrito por Selton Mello) e, com um elenco inspirado, são convincentes em suas execuções. Johnny Massaro cria um Tony que começa frágil, quase um filhote de pássaro sozinho em um ambiente hostil. A falta de compreensão sobre a fuga do pai deixa Tony quase que em um estado catatônico, mergulhado em lembranças. Mello o faz seguir o tortuoso processo de amadurecimento sem uma figura paterna presente e as idas do rapaz todos os dias à estação de trem, na esperança da volta do pai, revelam a sua falta de preparo para a vida. O pai possui pouco tempo em cena, já que se quer reforçar a ausência, mas é peça chave para o entendimento dos sentimentos de Tony. Vincent Cassel entrega todo seu charme com um português cheio de sotaque e por isso, mesmo largando a família, não se torna um vilão da história, e sim mais uma vitima das casualidades da vida. Luna (Bruna Linzmeyer) é uma antiga amiga e potencial interesse amoroso de Tony e carrega um olhar profundo e misterioso, mas que será importante para o amadurecimento do rapaz. Mesmo o trem acaba se tornando um personagem do filme, já que é nele que as despedidas acontecem e as esperanças florescem. As viagens da Maria fumaça são filmadas de forma romântica e representam as aspirações das pessoas daquela cidade. Selton Mello mais uma vez mostra que sabe conduzir um filme com sensibilidade e técnica e que seus roteiros e mesmo sua direção sempre fogem do obvio. Sua arte extrapola qualquer pretensão comercial e leva mensagens sentimentais para seu público. Espero que ele tenha vida longa atrás e à frente das câmeras, porque, hoje em dia, estamos precisando de um pouco de beleza nesse cinza e feio mundo em que vivemos.
Os fatos históricos são os que mais me atraem em filmes de guerra, mas sei que muitos vão assisti-los pelo potencial espetaculoso que eles proporcionam. Temos, a partir do “O Resgaste do Soldado Ryan” a elevação técnica desse tipo de filme. Spielberg traz as vísceras para a tela em sua famosa sequência do desembarque em Normandia. Claro que clássicos como “Apocalypse Now” e “Platoon” são grandes histórias contadas durante esses conflitos, no entanto, com novos instrumentos, o cinema pôde extrapolar a imaginação dos realizadores e da plateia. Por isso, quando foi noticiado que Christopher Nolan iria não só dirigir mas também escrever a história da evacuação inglesa na praia de Dunkirk durante a segunda guerra mundial e que tudo seria filmado em IMAX, todo mundo que gosta minimamente de cinema ficou com os pelos do corpo arrepiados. Nolan tem em seu currículo filmes que dividem a crítica mas que agradam muito o público em geral. Sua capacidade em criar cenas grandiosas mas que possuem significados narrativos é de fato uma de suas qualidades. As histórias aventurescas apoiadas na fantasia e na ficção cientifica transformam o cineasta britânico quase em um novo Spielberg. O “quase” é porque Nolan não consegue alcançar a potência emocional dos filmes de Spielberg. Seus personagens, quando não interpretados por atores competentes, tendem a cair na caricatura, tornando-se unidimensionais. Até o momento é justo quando lhe “acusam” de não ser um bom diretor de atores. Sua técnica se sobressai à dramaturgia, o que pode atrapalhar o desenrolar de algumas histórias. Seus filmes anteriores são ótimos por serem cinema de espetáculo e que possuem interpretes que conseguem entregar muito mais do que o exigido pelo diretor. Infelizmente para Nolan, “Dunkirk” é um tipo de filme que necessita muito de atuações convincentes e de situações que façam a tensão crescer a ponto da sobrevivência daqueles personagens ficarem em risco. Não que a tensão não esteja lá, mas é minimizada por causa de uma narrativa prejudicada por uma montagem confusa. O editor Lee Smith foi incumbido de juntar os vários núcleos de personagens em terra, no mar e no ar e tornar claro os pulos temporais durante o longa; o que não faz com sucesso. Durante longos momentos fiquei confuso em relação à sequência de acontecimentos, já que não há uma referência que faça com que o espectador entenda que um personagem foi do ponto A para o ponto B ou mesmo que uma cena complementa a outra no futuro ou no passado. Tudo parece ser picotado e jogado na tela, chegando ao ponto de fazer com que um único corte separe uma batalha de dia e outra de noite, o que é irreal, já que se passam na mesma região. Apenas depois de alguns momentos, onde alguns personagens aparecem em lugares diferentes ao mesmo tempo, é possível entender a intenção do diretor em relação à construção da história. Essa falta de conexão da montagem atrapalha a relação dos personagens com o público pois é impossível, em frações de tempo durante a trama, que eles sejam aprofundados a ponto de fazer com que nos importemos com seus destinos. Os personagens vagam em praias cheias de corpos, se afogam em navios afundando ou caem com seus aviões, o que passa insipidamente diante de nossos olhos. A falta de humanidade nesse caso não parte da plateia mas sim do roteiro. Uma virtude de Nolan e que está presente em todos os seus outros filmes é seu total controle da cinematografia. Junto com o diretor de fotografia Hoyte van Hoytema ele cria um clima extremante opressor mesmo em um ambiente aberto como a extensa praia. Em vários momentos Nolan e Hoytema enquadram os soldados agrupados em uma espécie de píer aguardando o resgate, transformando-os em um rebanho aguardando o abate. O que se torna realidade nos frequentes bombardeios alemães. Um curto mas genial plano holandês mostra a falta de horizonte dos soldados sentados na areia, o que é reforçado pelas cores sem vida das roupas e mesmo da espuma quase alienígena que se acumula onde as ondas se quebram. Outra ótima sacada da direção são as batalhas aéreas filmadas em “primeira pessoa”, só mostrando a mira do avião perseguindo o seu alvo. Por esse ponto de vista não fica difícil perceber o quão trabalhoso era atingir qualquer coisa com os aviões Spitfire da aeronáutica britânica. Outra estrela que ajuda Nolan em sua jornada é Hans Zimmer. Quase todo o filme é permeado pela música épica do experiente compositor, o que contribui para toda a tensão vista em tela. A ameaça é incessante, assim como os acordes que explodem as caixas de som do cinema e tremem a sala de exibição. A presença da trilha só é encerrada no final da película, sobrando apenas o silêncio de uma nação provisoriamente derrotada, já que sabemos como a guerra terminou. Nolan não acerta totalmente em Dunkirk, mas entrega um filme que possui atributos impossíveis de ignorar, o que o tornará em sucesso de bilheteria e, quem sabe, convença a maior parte dos críticos.
Em 2006 o curta metragem “Tarantino’s Mind” chamou a atenção dos cinéfilos ao contar uma história simples, baseada em um dialogo entre dois amigos em um bar, os dois são interpretados por Selton Mello e Seu Jorge. Eles discutem a conexão hipotética de todos os filmes de Quentin Tarantino. O pequeno filme conta com diálogos muito bem escritos, que fazem com que acreditemos que todos os filmes do cineasta americano foram pensados como uma única historia desconexa. Nascia aí uma promessa para o cinema brasileiro: o coletivo da 300 ML, que são responsáveis pela direção e pelo roteiro. Mas, infelizmente, a promessa foi subjugada pela pobre realidade do cinema brasileiro. Os diretores não contaram com apoio para seguirem com suas carreiras promissoras e não conseguiram filmar mais nada durante os dez anos que se seguiram. Finalmente, em 2017, lançam esse “Soundtrack”, que também conta com Selton Mello e Seu Jorge, agora também como produtores do longa. O roteiro segue o fotógrafo Cris (Selton Mello) em uma viajem até uma estação de pesquisa polar para realizar um experimento artístico. O intuito é se isolar e tirar selfies que capturem as sensações causadas por uma série de músicas pré-selecionadas. No local, ele conhece o botânico brasileiro Cao (Seu Jorge), o especialista britânico em aquecimento global Mark (Ralph Ineson), o biólogo chinês Huang (Thomas Chaanhing) e o pesquisador dinamarquês Rafnar (Lukas Loughran). “Soundtrack” compartilha da mesma qualidade de diálogos de “Tarantino’s Mind”. Quase todo falado em inglês, o roteiro consegue leveza mesmo em situações melancólicas e também naturalidade naquelas engendradas pelos personagens durante a convivência difícil na estação cientifica gelada. Selton Mello mostra desenvoltura na atuação em uma língua não nativa, e sensibiliza a plateia com um personagem agridoce, que parece buscar algo que lhe foi usurpado na vida. Seu Jorge serve bem como personagem de apoio ou mesmo como alivio cômico em varias linhas de dialogo em português. Ralph Ineson com seu vozeirão e sotaque britânico, às vezes Lembra seu personagem em “A Bruxa” principalmente nas explosões de raiva e tristeza, mas é tridimensional ao construir um ser que possui a bondade dentro de si, mas é constantemente assolado pela saudade de sua família. O existencialismo domina a narrativa, os diretores levam Cris a buscar tudo no meio do nada. Ele é coberto pelo branco da neve e da névoa, quase flutua no ar em um ambiente que parece não ter dimensões. Sua experimentação artística é a busca por um sentido, um mínimo de sentimento, a fuga do niilismo. Em vários momentos ele fecha os olhos e sente os objetos em suas mãos, como um cego em busca da essência de tudo que o cerca. A música que serve como trilha sonora para seus autorretratos é o que lhe traz a cumplicidade dos cientistas da base, principalmente de Mark, que percebe que os sons podem proporcionar sensações diversas, fazendo-o vivencia-las quase que de forma real. A direção de fotografia é importante na confecção desse clima. Iluminam-se os cômodos de forma rasa; o branco que vem das janelas é a única luz a entrar e encher o rosto de seus habitantes. O clima claustrofóbico é reforçado pelos planos fechados e a movimentação de câmera discreta. As cores só aparecem em momentos de descontração e felicidade, como no laranja de uma bola de futebol ou na aquarela de um jogo de pesca antigo. A música diegética, que vem dos aparelhos de Cris, é usada para mergulhar o espectador no mundo da base ártica e também para reforçar o convite à exposição das obras mostradas no filme e que estão disponíveis para o público visitar no Museu da Imagem e do Som em São Paulo. De acordo com os realizadores, os autorretratos junto com fones de ouvido, trarão ao visitante a trilha sonora exata dos momentos que mostram Cris trabalhando. Na verdade, a arte é criada pelo gaucho Oskar Metsavaht, que é o diretor artístico do filme. É bastante interessante assistir o filme e depois visitar a exposição, pois tudo traz uma boa sensação de realidade e nos torna cúmplices do artista. Claro que não é obrigatório visitar a exposição para ser atingido por tudo que o roteiro pretende transmitir. Basta mergulhar na mente e na vida de Cris, já que, afinal, estamos conectados por tudo aquilo que nos torna humanos.
“Grave” começou sua trajetória sendo premiado pela FIPRESCI (Federação Internacional de Críticos de Cinema) no festival de Cannes em 2016 para, logo depois, causar desmaios em algumas pessoas da plateia no festival de Toronto do mesmo ano. Nunca uma história sobre a transição da adolescência para a vida adulta foi, com perdão do trocadilho, tão visceral como a contada pela estreante cineasta Julia Ducournau. No filme acompanhamos Justine (Garance Marillier), uma jovem tímida e vegetariana, que começa os estudos na mesma faculdade de veterinária em que está sua irmã, Alexia (Ella Rumpf). Durante o trote de inicio de ano, ela é forçada a comer carne animal pela primeira vez, o que leva a garota a sentir um incessante impulso carnívoro, principalmente pelo cru. O roteiro é esperto em levar a personagem para uma faculdade de veterinária, onde se vê, em todos os momentos, animais mortos sendo dissecados e também grandes quantidades de sangue. As acomodações do local são extremamente opressoras, lembrando uma grande prisão misturada com um abatedouro. As paredes cinzas só saem de evidência por causa dos aventais brancos manchados de sangue dos estudantes. A iluminação é de caráter quase documental, só se desgarrando de sua alta granulação quando usa filtros para cobrir Justine em luzes vermelhas de neon em festas que acontecem no campus ou mesmo durante as cenas em seu dormitório. A direção de câmera faz notar a estranheza das situações com enquadramentos em que os personagens são vistos nos cantos, e economiza na velocidade dos cortes para trabalhar os momentos com paradoxal naturalidade. O filme está sendo vendido como um terror, no entanto, o vejo mais como um suspense com toques dramáticos. As cenas de canibalismo não causam medo e sim nojo. Toda a sujeira causada pelo sangue, pela carne crua e pelo excremento dos animais são mostrados de forma gráfica e poucas vezes há a ocultação ou mesmo o desvio das câmeras. Isso mostra coragem e fidelidade para o tipo de história que se quer contar. Outro mérito é a excelente maquiagem, que faz com que acreditemos em cada ferida ou pedaço de corpo que é mostrado. Um ato falho é a falta de consequências para muito do que se vê em tela. Há brigas com amputações, humilhações e todos os tipos de bizarrices sem que a polícia ou mesmo a direção da escola sejam alertados, o que tira um pouco do impacto por sua inverossimilhança. A trama avança apoiada nas descobertas sexuais e carnívoras de Justine, fazendo um claro paralelo à fase de transição da vida adulta para adolescência. Ela descobre seu corpo e seus desejos, luta para suprimir os mais explícitos, mas se entrega à vida com a ajuda da irmã, que também possui os mesmos impulsos. A interação entre as irmãs é interessante porque proporciona ainda mais peso na trama, fazendo o espectador se perguntar se a condição delas se trata ou não de um fator genético. O porte físico frágil de Garance Marillier a transforma no filhote que ainda não descobriu todos os prazeres e mesmo as formas de sobreviver, precisando de uma irmã mais velha e desenvolvida para ajuda-la. Talvez o pior momento seja no final do terceiro ato, quando os roteiristas tentam chocar com informações que já são obvias desde o inicio para os espectadores mais habituados com as reviravoltas desse tipo de trama, mas nada que atrapalhe a experiência no total. No final se trata de mais uma boa produção vinda da França e se você tem estômago forte e preza pela boa execução de um filme, “Grave” é uma boa pedida, mesmo porque é preciso que o cinema respire bem com novas temáticas, nem que elas sejam, neste caso, nojentas.
O mítico diretor polonês Krzysztof Kieślowski é conhecido por seu cinema poético, onde a essência transborda em narrativas que fogem do habitual. Boa parte de suas obras são pautadas em personagens femininos fortes, que são o centro das suas tramas. Um de seus trabalhos mais conhecidos é a trilogia baseada nas cores da bandeira francesa e seus significados. Usou o lema liberdade, igualdade e fraternidade para contar a história de três mulheres francesas. O primeiro filme se chama, em seu título original, “Trois couleurs: Bleu” que no Brasil ficou “A Liberdade é Azul”, o que, convenhamos, soa bem mais poético. “A Liberdade é Azul”, tem início com um acidente de carro em que morre um famoso compositor e sua filha pequena. No carro também estava a sua esposa Julie, que sobrevive. Depois de recuperada, Julie tenta se livrar da vida passada, afim de esquecer seus entes queridos mortos. Coloca à venda a mansão em que viveram juntos e literalmente queima todos os seus pertences pessoais. Tenta destruir uma partitura inacabada que o compositor trabalhava (que era sobre a unificação europeia) e aluga um apartamento em uma área pouco valorizada de Paris. São nos momentos onde Julie “destrói” sua vida passada que o cineasta imprimi toda a sua genialidade como autor e esteta da sétima arte. Claro que a sua direção já constrói a personagem desde o momento em que ela se encontra no hospital. Todos os planos são de extremo sufoco; planos hiper fechados que a encaixotam. Quase uma prisão de dentro para fora da tela. Ainda no hospital ela passa a ser acossada pela cor azul do título. Seu rosto é inundado por uma luz azulada misteriosa que a acorda em certo momento e que, pela montagem proposta, a faz lembrar da tal composição musical incompleta. A partir daí, em vários momentos a música toma conta e o faz quando o azul está presente, como em objetos ou mesmo na iluminação. Mesmo se estabelecendo na nova vida e tentando esquecer do passado, parece haver uma força que a leva de volta, essa força é caracterizada por situações que deixam o filme inquietante e são trabalhadas de forma genial pela construção do roteiro. Uma das cenas em questão é quando Julie é enquadrada boiando em uma piscina em posição fetal, tentando “afogar” a música que surge em sua cabeça e que nós expectadores também ouvimos. Quando ela mergulha, a música cessa. Tudo é feito em uma piscina, evidentemente, azul em sua extensão. A câmera também é um personagem, ela se move entre cômodos e confere instabilidade à trama enquadrando Julie sempre nos cantos. Há um plano sequência primoroso mostrando-a andando enquadrada do tronco para cima. A câmera não se mexe e sim Julie, que joga o corpo de uma extremidade a outra da tela, deixando o espectador atordoado. Todo o potencial narrativo e técnico do filme não seria suficiente se Krzysztof Kieślowski não contasse com o talento de uma jovem Juliete Binoche, que é extremamente competente em construir uma personagem confusa com os acontecimentos e, paradoxalmente, determinada em esquecê-los. A obra foi lançada em 1993, o ano em que houve a construção do bloco dos países europeus e trata sutilmente dessa questão com a citada partitura inacabada feita para celebrar essa união. A Europa deu uma lição em juntar seus países e demonstrou que a liberdade que deu a seus cidadãos é bem mais benéfico do que isola-los. O isolamento que Julie escolheu depois de uma tragédia é quebrado quando ela percebe que a memória de seu marido nunca será apagada e decide terminar a sinfonia da união. Ela se integra ao passado para enfim ganhar a liberdade. Por isso, saldemos a Europa e contemplemos Kieślowski.
Quando “Intocáveis” estreou em 2011, o sucesso foi instantâneo. Todos ficaram comovidos pela história de um malandro de bom coração que passa a cuidar de um milionário tetraplégico. Baseados em fatos reais, o filme conta o desenvolvimento da amizade desses homens tão diferentes, mas que se completam e mudam a vida um do outro. Após o lançamento, já surgiram inúmeras noticias sobre um possível remake vindo de Hollywood. Os endinheirados americanos, neste caso, foram passados para trás, pois os argentinos o fizeram primeiro. Em 2016 temos “Inseparáveis”, com Oscar Martínez (Relatos Selvagens) e Rodrigo de La Serna (Diários de Motocicleta) nos papeis principais. A palavra refilmagem foi tratada na forma literal, já que cada frame é vindo do original francês. Mesmo a barroca mansão do milionário parece ter sido reproduzida nos mínimos detalhes. Quase todas as situações que marcam o encontro dos dois também são repetidas, alterando-se alguns pequenos detalhes que não são importantes para o avanço do enredo. A fotografia, assim como em “Intocáveis” possui momentos soturnos e coloridos, variando de acordo com o estado emocional dos personagens. O tom melodramático impera em cenas de confissões e choro. Em se tratando de narrativa, não há nenhum elemento que se destaque ou que ultrapasse o acadêmico. Não deixa de ser uma pena, já que há situações que poderiam ser trabalhadas com outros pontos de vista, trazendo mais discussões nas entrelinhas. Sem muita complexidade, era possível traçar uma linha sobre a nossa mortalidade na figura do milionário; que até possui algumas falas que podem indicar esse caminho, mas que, de tão superficiais, ficam fora de contexto. O elenco cumpre seu papel, principalmente com Rodrigo de La Serna encarnando um homem que, apesar de suas maneiras brutas, consegue ser apaixonante e sensível. O problema é que Omar Sy já havia interpretado esse mesmo personagem e com a mesma sensibilidade. O ator argentino só inclui traços de personalidade latinos, principalmente na cena da dança durante um aniversario. Oscar Martínez causa pena e tristeza com um homem amargurado, que teve a vida interrompida por um acidente, chegando a superar em alguns momentos a atuação do francês François Cluzet. Para quem não viu o original, será uma boa oportunidade para ir ao cinema e acompanhar a história recontada por nossos vizinhos portenhos e, mesmo para quem já viu, será uma reprise agradável como passa tempo. Quando digo passa tempo, não é minha intenção rebaixar o filme, mas sim dizer que a missão de contar uma história de amizade leve em engraçada foi cumprida, mesmo com a grande e evidente sensação de déjà-vu.
Mais do que o filme em si, é válido discutir a necessidade da realização de refilmagens de produções tão recentes. O cinema possui uma linguagem universal, que, mesmo precisando de legenda ou dublagem, consegue atingir pessoas do mundo todo. “Intocáveis” surgiu e atingiu milhares, inclusive na Argentina, e é até curioso ver uma refilmagem vinda de lá, que é um país festejado por sua filmografia original e de estilo próprio, sendo reconhecida no mundo todo por sua excelência. Esse papel de reprodutor é muito associado aos EUA, que não possui muita aceitação do que vem de outros países. Será que essa falta de aceitação está atingindo outros lugares? Será que a globalização do cinema passará a ter barreiras representadas pela língua e pela cultura? Não quero acreditar que a forma de arte mais completa que existe seguirá o exemplo da política de alguns países e construirá muros em suas fronteiras, preferindo refazer com sua visão algo vindo de outro lugar não agradável aos seus olhos. Esperemos e acreditemos que se trata de apenas mais uma tentativa de se produzir mais dinheiro em bilheteria.
Desde o final de sucessos como “Senhor dos Anéis” e “Harry Potter” a Warner Bros vem procurando uma nova franquia que sustente o seu catálogo durante os anos. Conseguiu ótimo desempenho com “Animais Fantásticos e Onde Habitam”, mas, como uma andorinha não faz verão, aposta em produções como o novo “Rei Arthur: A Lenda da Espada”, esperando tirar daí mais um sucesso de bilheteria. Depois de várias adaptações da história dos cavaleiros da távola redonda, há a necessidade de atualizar o mito para a nova geração, tentando transforma-lo em mais um ícone pop. Alguns desses filmes predecessores tiveram lapsos dessa tentativa de atualização, mas esbarraram na falta de interesse do público. O exemplo mais recente é de 2004, com “Rei Arthur”, dirigido por Antoine Fuqua (Dia de Treinamento) e que conta com um elenco estrelar.
Quando se pensa em filmes pop, logo nos vem à mente a edição picotada, os diálogos espertos e engraçados e os personagens carismáticos, além, é claro, as indispensáveis cenas de ação. Todos esses fatores , quando ligados a um bom roteiro, geralmente agradam o público e, por que não, os exigentes críticos. Um dos nomes na indústria que pode entregar todos esses elementos em forma de filme é o talentoso diretor Guy Ritchie, que, a julgar pelos seus melhores trabalhos, não precisa de apresentação.
Em “Rei Arthur: A Lenda da Espada” Guy Ritchie até consegue imprimir seu estilo em algumas sequências, como na excelente introdução, onde conta a vida de nosso herói desde a infância até a fase adulta de forma acelerada e com cortes extremamente rápidos. As cenas de lutas, com sua famosa câmera lenta, também se fazem presentes, assim como os diálogos rápidos, onde um personagem completa a fala do outro e se tratam por apelidos que parecem saídos das ruas da Londres do século XXI. Uma versão de “Snatch – Porcos e Diamantes” e “Jogos, Trapaça e Dois Canos Fumegantes” da idade média.
Mas, mesmo com seu apuro técnico, o cineasta não consegue fugir de um roteiro genérico que, mesmo tentando subverter a clássica história de Rei Arthur, se mostra frágil em emular diversas ideias já vistas em outros filmes de fantasia. Por isso, quem pisou em uma sala de cinema durante os últimos dez anos, saberá exatamente como toda a história irá se desenvolver e como será seu desfecho. Para completar, há o elenco com Eric Banna e Jude Law no automático, um Charlie Hunnam unidimensional e toda uma gama de coadjuvantes como enfeites de cena.
Para quem se interessar eis a sinopse: Arthur (Charlie Hunnam) é um jovem das ruas que controla os becos de Londonium e desconhece sua predestinação até o momento em que entra em contato pela primeira vez com a espada Excalibur. A partir daí, ele precisará dominar os poderes da espada para derrotar o tirano Vortigern (Jude Law). Genérico não?
Claro que, por causa das peripécias de Guy Ritche e dos bons efeitos visuais, o longa se mantém em um patamar aceitável em seu desenrolar, contentando o público eventual que vai aos cinemas com a intenção de se divertir. A diversão poderá ser aproveitada por todas as idades já que o sangue é artigo raro durante a projeção, mesmo se tratando de uma história passada em um contexto extremamente violento. A trilha sonora também pode ser tratada como um ponto positivo e agradável. As músicas acompanham o ritmo do diretor em batidas rápidas e acordes empolgantes, trazendo mais ritmo em sequencias que, sem elas, talvez fossem comuns.
No geral, “Rei Arthur: A Lenda da Espada” é um filme que pode ser conferido sem medo se você está procurando alguma coisa para assistir no fim de semana. Provavelmente você vai sair do cinema satisfeito e com a sensação de que o dinheiro do ingresso valeu a pena, mas não espere lembrar-se de tudo o que passou na tela depois de algumas horas. Isso é certeza!
OBS: Evite a versão em 3D se você é daqueles que espera mais do que objetos lançados em seu rosto.
O Sacrifício do Cervo Sagrado
3.7 1,2K Assista AgoraO cinema grego vem ganhando destaque nos últimos anos por causa de suas histórias que fogem ao comum. O principal cineasta dessa nova onda é, sem dúvida, Yorgos Lanthimos, que passou a chamar a atenção com “Dente Canino” de 2009. Em 20015 ele dirigiu “O Lagosta”, seu primeiro trabalho em solo Hollywoodiano. Seu talento em construir sequências com situações esquisitas, usando enquadramentos inspirados, além da grande habilidade na direção de atores são fatores que explicam o sucesso do diretor. Esse talento também pode ser conferido no novo “O Sacrifício do Cervo Sagrado”, que possui no elenco Colin Farrell, Nicole Kidman, Alicia Silverstone e os novos expoentes Barry Keoghan e Raffey Cassidy.
Uma cirurgia de coração no início do filme serve para apresentar o cardiologista Steven (Farrel), que é casado com a oftalmologista Anna (Kidman). Os dois possuem um casamento aparentemente perfeito e moram numa casa de boneca em um bairro rico junto com seus filhos Kim (Cassidy) e Bob (Sunny Suljic). A vida tranquila dessa família muda quando o garoto Martin (Keoghan) entra em cena. Martin é filho de um homem que morreu na mesa de cirurgia de Steven, o que faz com que o médico passe a se encontrar frequentemente com o órfão. Esses encontros são demonstrações de culpa por parte de Steve, mas ele disfarça esse sentimento dizendo que tem pena do garoto. Gradativamente Martin começa a demonstrar obsessão por Steven e um comportamento violento surge daí.
Misteriosamente, os filhos do casal ficam doentes e não conseguem andar ou mesmo comer. Martin parece ter algum tipo de poder nas crianças e diz a Steve que a cura só se dará quando houver o sacrifício de um membro da família. Lanthimos traça, a partir da possibilidade do sacrifico, toda a desconstrução do ideal da família perfeita que existe na cultura ocidental, especialmente nas com influência norte-americana. O pai nesse contexto é o causador dos problemas e aquele que precisa remedia-los e resolve-los. A figura paterna como centro das atenções não é novidade na breve filmografia do cineasta, basta assistir o já citado “Dente Canino”. É interessante notar como a câmera do diretor de fotografia Thimios Bakatakis dá atenção especial ao médico e como os pontos de vista são alterados de acordo com o ambiente onde ele se encontra. Nos inicios de cenas no hospital, ele sempre é acompanhado por um estranho plano sequência em plongé, que parece que esta flutuando um pouco abaixo do teto, quase o esmagando. A sensação de que algo o segue pelos corretores herméticos, como um ser sobrenatural, é evidente. As sequencias na luxuosa casa mostram sempre os amplos espaços onde os personagens interagem, ao mesmo tempo em que há close-ups que enchem a tela e evidenciam toda a confusão mental pelo o que estão passando.
A escolha de planos também é responsável por evidenciar esse desequilíbrio mental. Em nenhum momento vemos diálogos acontecendo no meio do quadro. O deslocamento para a borda, onde o plano corta uma pessoa ao meio enquanto ela é encarada pela outra é quase assustador. A forma com os diálogos são apresentados também pode ser, no mínimo, estranho para quem está acostumado com as narrativas clássicas. Os atores os dizem de forma acelerada, sem traçar qualquer característica de personalidade. Parecem pessoas sem almas ou seres artificias que precisam obedecer a uma programação. Possivelmente se trata de um artificio que tem por objetivo demonstrar o quão fora da realidade todos se encontram. A escolha de cores neutras nos figurinos e no design de produção ajuda a criar uma história que parece ser passada dentro de um sonho.
Lanthimos constrói um final impactante e consegue expor uma discussão moral que, apesar de cruel, não deixa de ser válida. Mesmo com seu estilo excêntrico, “O Sacrifício do Cervo Sagrado” pode ser eleito o longa mais fácil do cineasta, já que segue um esquema de narrativa clássica de thriller. São raras as obras que se propõem a desafiar o espectador, e quando uma delas aparece, é preciso ir ao cinema e conferi-la. É garantido que ela ficará presente em suas mentes por muito tempo.
The Square - A Arte da Discórdia
3.6 318 Assista AgoraA premissa de “The Square - A Arte da Discórdia” chega a ser curiosa, já que a produção dirigida por Ruben Östlund discute, entre outros temas, o mercado artístico em nossa sociedade contemporânea. Aqui, em especial, da dita abstrata, aquela em que os significados nem sempre são claros. A curiosidade se dá pelo fato do próprio filme e muitos outros do circuito alternativo fazerem parte desse tipo de arte. O dito cinema de arte é, em muitas vezes, mais difícil de ser compreendido pelo público do que as complexas instalações em museus pós-modernos. Claro que esse tipo de cinema é reservado aos cinéfilos “intelectuais”, que conseguem ler nas entrelinhas as mensagens dos cineastas, também providos de muita massa cinzenta. O roteiro de “The Square - A Arte da Discórdia” também tira sarro dessas pessoas que são os “entendedores” e os “construtores” culturais. É engraçado, mas também desconfortavelmente trágico.
A Palma de Ouro em Cannes não foi desperdiçada com essa produção que tem um diretor já conhecido no circuito por causa do excelente “Força Maior”. Östlund segue o estilo satírico, que faz o espectador rir mesmo sabendo que algo fora do que podemos julgar como ético está acontecendo. A trama acompanha um gerente de museu que usa de todas as armas possíveis para promover o sucesso de uma nova instalação. Entre as tentativas para isso, ele decide contratar uma empresa de relações públicas para fazer barulho em torno do assunto na mídia em geral. A burguesia europeia é retratada de forma degradante pelo roteiro, já que é ela que financia as caras exposições no museu, ao mesmo tempo em que ignora de forma contundente os miseráveis imigrantes à sua volta. As sequencias que mostram as exposições ou mesmo a visita das pessoas ao museu evidenciam a completa ignorância de todos em relação às obras.
Em um dos momentos mais marcantes há a performance de um ator durante um jantar de luxo. Ele praticamente incorpora um gorila e passeia no meio dos convidados. Como um animal selvagem, avança de forma violenta contra as pessoas nas mesas e assedia as mulheres. Depois de um grande desconforto, é atacado por vários convidados, imitando assim as relações de luta por sobrevivência dos símios nas florestas. O ser irracional dentro daquele dito civilizado é o que toma conta, mesmo que objetos de luxo estejam adornando- o. A alma das obras se perde quando aqueles que as observam são nada mais que selvagens.
O elenco é encabeçado pelo fantástico Claes Bang, como Christian, o curador do museu. Um homem elegante e sofisticado que acusa falsamente um garoto imigrante de ladrão e não possui a honra de se desculpar. Há também Elisabeth Moss, uma jornalista que tem um caso com Cristian e Dominic West como um artista de renome. Os dois últimos possuem papeis pequenos, mas de grande importância para a trama, já que são espécies de degraus que os roteiristas usaram para contextualizar as situações.
Provavelmente o mais importante em relação às pretensões do roteiro seja a constatação de que a arte apenas serve para mascarar uma classe dominante que usa de sua falsa cultura para manter o status quo. O niilismo de suas vidas esta impressa em esculturas e pinturas que eles realmente não entendem, mas que apreciam e financiam por excesso ou soberba. Os entendedores em forma de críticos podem estar enganados e há alguém rindo em suas constas. Rindo por causas da ignorância burguesa sem sentido, que possui a convicção de ter visto muito onde não existe nada, ou mesmo vendo fora do lugar.
Star Wars, Episódio VIII: Os Últimos Jedi
4.1 1,6K Assista AgoraQuando o primeiro capítulo da nova trilogia de Star Wars foi apresentado, logo veio a impressão de que se tratava de uma releitura do clássico “A Nova Esperança”. Mesmo com as suas incontestáveis qualidades, “O Despertar da Força” claramente segue uma linha narrativa muito parecida com a do longa da década de 70. Por causa disso, era de se supor que os próximos dois filmes seriam as representações de “O Império Contra-Ataca” e de “O Retorno de Jedi”. Não se pode dizer que “Star Wars: Os Últimos Jedi” não possua elementos de “O Império Contra-Ataca”, mas a produção se sobressai ao subverter algumas regras já conhecidas dos fãs da franquia e por ser corajoso em algumas escolhas que causam surpresa na plateia durante as duas horas e meia de projeção.
O que sempre estará presente no universo Star Wars é o seu grande tema central: a família. Rey (Daisy Ridley) é assombrada por não ter conhecido seus pais, Kylo Ren (Adam Driver) abraça ainda mais o lado negro da força por causa dos fatos ocorridos entre ele e seu pai e Luke e Léia sofrem pela distância que os separa, além de seus arrependimentos do passado. Todo o aparato sci-fi usado serve para apoiar essas histórias intimistas. Claro que há a sempre bem vinda mensagem antifascista: é preciso derrubar o onipresente repressor, que esmaga a liberdade dos indivíduos com seu poderio bélico. Também já virou ponto comum a semelhança do império, aqui a nova ordem, com o Nazismo. As sequencias de batalha em terra também remetem à primeira guerra mundial, a guerra travada em trincheiras.
A direção e o roteiro de Rian Johnson são os elementos que formam a excelência de “Os Últimos Jedi”. Batalhas de naves, lutas com sabres de luz e tiroteios de blasters são executados de forma primorosa. A já esperada infiltração de sabotagem em alguma instalação da primeira ordem é realizada, mas com um desfecho fora do comum em relação a outras já vistas nos filmes anteriores. Criaturas e cenários são belamente trabalhados, honrando a tradição de Star Wars nesse quesito. No final do terceiro ato nos é apresentado um planeta salino em sua superfície que “sangra” assim que é tocado por soldados ou naves de batalha. Abaixo do sal há uma camada vermelha, representando toda a violência de uma guerra. A fotografia nas sequencias passadas nesse mundo merecem premiações no começo do ano que vem.
Formado e afiado por J.J Abrams, o elenco novamente dá um show. O carisma de Daisy Ridley é apaixonante, a fúria de Adam Driver é palpável, assim como é enigmática as intenções de Luke Skywalker, interpretado por um maduro Mark Hamill. John Boyega parece mais seguro em seu papel e Carrie Fisher nos brinda com sua última aparição como princesa Léia. Todas as dúvidas que se tinha sobre como ficou as participações da personagem após a morte da atriz são sanadas, já que o roteiro não foi picotado por conta de sua ausência. Se houve algum tipo de substituição por meio de CGI não é possível perceber. C3PO, R2D2 e BB8 são a cereja no bolo nisso tudo. Tão conhecidos já antes da estreia, os porgs são apenas fofos e engraçados, mas irrelevantes para a trama. A decepção fica por conta de Snoke, não por causa da atuação sempre competente de Andy Serkis e sim pela falta de sentido com que o roteiro trata seus propósitos e seu destino. De Snoke não é possível falar muito para evitar spoilers.
Tudo descrito acima pode ser sintetizado por uma única palavra: paixão. A paixão que tanto fez falta nos episódios I, II e III de George Luca e que é de suma importância para Star Wars. Em “Os Últimos Jedi” as lagrimas do espectador são de emoção. A emoção por algo que, mesmo se passando em uma galáxia muito distante, parece real, não apenas uma simples simulação de vida criada por computador. Os heróis estão ao alcance e é isso que dá folego à resistência. O mito dos Jedi pode inspirar guerreiros futuros, assim como o faz em crianças pobres que são exploradas por comerciantes de armas. Aquela escória maltrapilha (uma clara referencia a Oliver Twist) não mais se ajoelhará aos tiranos e se lembrará de Luke Skywalker e Rey quando levantarem as armas da revolução. Star Wars nunca foi tão atual, a politica é discutida nas entrelinhas e faz com que a nova geração de fãs se pergunte a respeito dos vilões de seu meio. Aqueles que não usam sabre de luz vermelho, mas são mais perigosos que Darth Vader.
Liga da Justiça
3.3 2,5K Assista AgoraPodemos dizer que “Liga da Justiça” é um filme que nasceu pressionado. Se por um lado o fracasso de seu antecessor “Batman Vs Superman: A Origem da Justiça”, assustou a Warner Brothers, por outro há o grande sucesso angariado pela aventura solo da Mulher Maravilha. Dois extremos que mostram o desiquilíbrio da DC em suas obras cinematográficas. Além disso, Zack Snyder deixou a produção ainda na fase de montagem, por causa da morte de sua filha. A solução foi chamar Joss Whedon para tocar o barco. Os fãs ficaram com o pé atrás quando Whedon decidiu mexer no roteiro e refilmar algumas cenas, e a bizarra história do bigode de Henry Cavill veio para completar o caos das refilmagens. Não há como negar que esses eventos deixavam um forte cheiro de bomba no ar, mas, felizmente, o cheiro se dissipa já nos primeiros momentos do longa, onde vemos a Mulher Maravilha em uma excelente sequência de ação.
Como já sabemos pelos trailers, o inicio é ocupado pela busca de Bruce Wayne (Ben Affleck) por aliados; para tentar proteger a humanidade de uma ameaça poderosa. Temos aí a introdução rápida (provavelmente por causa da interferência de Whedon) de Barry Allen (Ezra Miller), Arthur Curry (Jason Momoa) e Victor Stone (Ray Fisher), respectivamente Flash, Aquaman e Cyborg. Os três se juntam à Princesa Amazona (Gal Gadot). A interação entre o grupo também é breve, mostrando alguns conflitos que não passam de superficiais. O vilão é o Lobo da Estepe, que esta atrás das três caixas maternas escondidas com as amazonas, os atlantes e humanos.
O tempo é o maior problema de “Liga da Justiça”, já que o roteiro precisa apresentar inúmeros personagens e desenvolver a trama. O corte original de Zack Snyder possuía duas horas e cinquenta minutos, mas, depois das intervenções, foi montado com duas horas cravadas. São minutos que fazem falta em um blockbuster dessas proporções. Tudo é em grande escala e cada personagem precisa de espaço de tela suficiente para agradar os fãs, afinal, tratam-se de lendas da cultura pop. A montagem é eficiente em usar fragmentos de histórias e transformar em introduções, no entanto, não consegue mascarar a estranheza que é causada quando conflitos importantes são resolvidos em segundos.
Os efeitos visuais seguem o padrão de qualidade típica de Hollywood, só apresentando alguns problemas pontuais. Um deles é o rosto do Super Man em um flashback do inicio do filme. A tentativa de retirar o bigode não foi totalmente eficiente, transfigurando o rosto do ator e ainda mostrando vestígios de pelos na face. Algumas cenas mostram claramente bonecos digitais e a artificialidade de seus movimentos. Se a montagem é bem trabalhada na introdução dos membros da Liga, o mesmo não pode ser dito da sua capacidade em ambientar o espectador durante algumas lutas e perseguições, contudo, aqui, a direção também tem sua parcela da culpa. Em vários momentos é confuso saber o que está se passando na tela; os planos fechados não ajudam na identificação do cenário e não é possível acompanhar a movimentação dos heróis e vilões; tudo fica extremamente embaralhado.
Os pontos descritos acima mostram que “Liga da Justiça” não é perfeito e segue convenções do cinema comercial, assim como seus concorrentes vindos da Marvel. Deixando os detalhes técnicos de lado, a experiência é prazerosa e empolgante, não tendo nenhum ponto que ofenda a quem assisti. O medo de mais um fracasso será esquecido após a estreia, e todas as pessoas ficarão apaixonados e se divertirão com as piadas do Flash, a carranca do Aquaman, a beleza, nobreza e força da Mulher Maravilha; se colocarão na pele do Batman, o único sem super poderes, e sentirão saudades do Superman. Toda a força está nesses personagens, por isso, os aplausos surgirão ao final da sessão. No final mesmo! Já que há cenas importantes depois das ultimas letras dos créditos.
Obs: Não perca tempo com a versão em 3D, é apenas um artificio vazio para gerar mais bilheteria.
O Outro Lado da Esperança
3.8 35Atualmente são diversos os filmes que falam sobre a crise migratória que vive a Europa, mas nenhum deles aborda o tema com tanta particularidade como “O Outro Lado da Esperança” de Aki Kaurismäki. O cineasta finlandês, que levou o prêmio de melhor direção no festival de Berlim em 2017, já é conhecido pelo seu jeito diferente de abordar temas que podem ser considerados polêmicos, como aqui, em seu mais recente filme.
O roteiro é dividido em duas frentes: o de Khaled (Sherwan Haji), um imigrante Sírio que tenta asilo na Finlândia ao mesmo tempo em que procura a irmã, e Wikström (Sakari Kuosmanen), um vendedor que larga a esposa e a carreira para realizar o sonho de comprar um restaurante. A história dos dois segue paralela até quase o final do segundo ato, dando tempo para que conheçamos cada particularidade de suas personalidades. Os dois buscam um recomeço em suas vidas. Se Khaled tenta se restabelecer em um país que lhe dê abrigo, Wikström desiste de sua situação atual de homem de negócios e esposo para tentar algo novo. Eles se encontram e Khaled passa a trabalhar no restaurante comprado por Wikström.
A história descrita não é nova, mas a forma como ela é contada foge do comum ou ao estilo de um diretor mais acadêmico. Cada imagem aqui carrega certo grau de ironia. Tudo é construído de forma teatral, desde os cenários, até as interpretações dos atores, que parecem ler suas falas na frente da câmera. A fotografia é desgastada e granulada, como de um filme antigo, dando um aspecto amarelado aos ambientes. Talvez a falsa sensação de esperança de uma Europa tida como acolhedora seja o alvo ou até mesmo a artificialidade das ações das pessoas e governos. O filme é cadenciado e a abundancia de planos americanos mantém certa distância com a plateia. São poucos os movimentos de câmera, afirmando a sensação de um teatro filmado.
As ações dos personagens também são carregadas de significados. Um exemplo é quando Wikström tenta mudar o cardápio de seu restaurante para comida japonesa, a fim de gerar mais lucros. Sem ingredientes necessários para atender uma alta demanda, ele acaba trocando salmão por peixe enlatado, o que acarreta fracasso com a clientela nativa. Não é possível abrigar alguém em sua casa sem conhecê-lo totalmente. Ao substituir um ingrediente pelo outro, ele passa a ignorar parte da cultura de um povo e, com isso, os expulsa. Khaled também é constantemente expulso dos países em que pede asilo, pois nenhum deles o conhece totalmente ou entende seus problemas (um skinhead o chama de judeu em um momento, mostrando total ignorância em relação ao povo Sírio). O interessante é que a globalização mistura a cultura do mundo inteiro. Durante a projeção presenciamos apresentações de música finlandesa e americana, os personagens conversam em inglês e há um quadro de Jimi Hendrix pendurado na parede do restaurante. Será que essa globalização é falsa? Já que as pessoas não conseguem ser livres para ir de um país ao outro sem passar por algum posto de imigração.
“O Outro Lado da Esperança” é a visão de mundo de seu realizador, e ele até pode ser visto como um otimista por causa da fraternidade gerada entre o imigrante e o vendedor. O vendedor que, mesmo com seus trejeitos robóticos e frios (não é o povo da Finlândia que possuí a fama estereotipada de ser frio?) é solidário e consegue, por meio de documentos falsos, que o imigrante se torne um cidadão. A ilegalidade ai é aceitável, já que é o estado o principal culpado por formar foras da lei.
Três Anúncios Para um Crime
4.2 2,0K Assista AgoraO que seria dos cinéfilos sem o cinema independente? O transbordo de filmes comerciais cansam qualquer cérebro que está disposto a pensar um pouco mais do que o normal. Produções como “Três Anúncios Para um Crime” fogem do formato comercial e pisam em terrenos fora do comum para quem está acostumado com o filão hollywoodiano. Com uma produção modesta e um roteiro cheio de camadas, o cineasta Martin McDonagh constrói sua narrativa que gera uma certa estranheza de início, mas que toma forma e mostra suas intenções durante a projeção.
A premissa já é interessante por si só ao mostrar Mildred Hayes (Frances McDormand), uma mulher forte mas totalmente amarga, que compra o espaço em três outdoors na entrada da cidade de onde mora para anunciar frases que cobram da polícia a resolução do caso do estupro e assassinato de sua filha. O xerife vivido por Woody Harrelson ganha destaque em uma das frases porque comanda uma delegacia cheia de policiais pateticamente incompetentes. São todos desprovidos de inteligência, dificultando, evidentemente, na investigação de qualquer crime. O principal deles é o oficial Jason Dixon (Sam Rockwell) com seu racismo e violência acima da média para qualquer agente da lei dos EUA.
O humor negro é essencial para que os atos muitas vezes hediondos sejam justificados para os espectadores. Fica clara a influência dos irmãos Coen neste quesito. A cidade pequena, o sotaque característico de seus habitantes e todo o contexto da história lembram em muitas vezes o clássico moderno “Fargo”. O ódio que as pessoas da Ebbing, Missouri carregam deixa o clima tenso, principalmente quando os Outdoors viram notícia na televisão. Mildred Hayes é a síntese desse ódio, que está dentro dela e a sua volta, já que as pessoas da cidade passam a vê-la como uma espécie de vilã. “Três Anúncios Para um Crime” é cadenciado e por isso seus diálogos são importantes para que a trama se desenrole de forma competente. Outro fator agregador é a fotografia de Bem Davis, que externa as condições dos personagens em penumbras e mantem sua câmera sempre perto das emoções. Planos gerais servem como transições ou para mostrar a melancolia de uma cidade no meio do nada.
O elenco escolhido por Martin McDonagh é, junto com o roteiro, o grande destaque, o que não é uma surpresa, pois conta com nomes de peso e é encabeçado pela maravilhosa Frances McDormand. A atriz, que havia dado um tempo aos grandes papeis, é uma explosão de emoções e fúria. Ela parece estar no limite de suas faculdades mentais e seu sarcasmo é recorrente. A dor que essa mulher sente é palpável e vemos em seu rosto enrugado as marcas que ela deixou. Marcas do passado, com um marido violento, e depois com a morte da filha. Suas ações são muitas vezes discutíveis, mas o filme não os julga, apenas mostra suas consequências. A indicação ao Oscar para McDormand é praticamente certa e será uma grande injustiça se ela não vir. Outro que merece ser lembrado pela academia é Sam Rockwell. O seu desempenho acarreta sentimentos diversos. Se coramos com seu comportamento patético e muitas vezes engraçado, também nos indignamos por causa da sua falta de comprometimento, com o tom preconceituoso e violento. Essa dualidade é difícil de conseguir em termos de atuação e aí está a aparente competência do interprete.
Os personagens são grandes mulas para o sentimento de raiva, e a superação dela é o grande tema do filme. Como não senti-la depois da morte brutal de uma filha? Com a incompetência da policia? Ou mesmo com o simples comportamento de um membro da família? São questões levantadas e não respondidas, deixando ao espectador a função de imaginar o que acontece depois dos créditos finais.
Happy End
3.5 93 Assista AgoraMichael Haneke não é um artista fácil. Suas obras são de difícil absorção; sendo indicadas apenas para aqueles que realmente procuram algo que fuja do habitual. Seus filmes investigam o cerne do ser humano, mostrando sempre facetas assustadoras de nossa sociedade. “Violência Gratuita”, (os dois, já que houve uma refilmagem feita pelo próprio Haneke para Hollywwod) o mais conhecido deles, é um exemplo da escuridão que nos assola. Em sua atual fase e já septuagenário, o cineasta austríaco passou a discutir a morte e a falta de significado da vida, filmando o avassalador “Amor”.
Como uma espécie de continuação de “Amor” ele lança em 2017 “Happy End”, que dividiu opiniões em Cannes, mas entregou o de costume: discussões sobre o sentido da vida, junto com uma clara critica a burguesia europeia. A história se passa em Calais, França. Georges Laurent (Jean-Louis Trintignant) é o patriarca da família, que está preso em uma cadeira de rodas. Sua filha Anne (Isabelle Huppert) ainda mora com ele, enquanto que seu filho Thomas (Matthieu Kassovitz) acaba de retornar para a casa do pai, junto com a esposa e a filha Eve (Fantine Harduin), cuja mãe faleceu recentemente. A família é claramente disfuncional e a interação entre eles desperta grande interesse.
O niilismo aflora em cada frame capturado pela câmera do diretor de fotografia Christian Berger. As cores frias e os planos fechados são fantasmagóricos. Até a ensolarada praia é afetada pelo vento e a areia escura. No inicio do primeiro ato vemos alguém filmar de um celular a morte de um camundongo e também de uma mulher. As mensagens que aparecem na tela do celular, enquanto vemos as imagens chocantes, são esclarecedoras, e entendemos que a causadora das mortes é a mesma pessoa que filma. Ela envenena suas vitimas com overdose de antidepressivos. A frieza dessa sequência dá o tom do filme, nos fazendo entender que a vida para aqueles personagens não passa de algo banal. O vazio da família é representado pelo personagem de Trintignant. Suas tentativas de suicídio são diversas e sempre frustradas, o que gera até um pouco de humor patético.
Se Trintignant é o vazio, Huppert é a imagem de uma burguesia que só se importa com os bens materiais e com convenções. Não há aqui uma personagem mimada, que segue estereótipos de alguém abastado, e sim uma mulher com frieza no olhar. O olhar que está direcionado à empresa da família e não aos seus membros. O relacionamento de Anne com o filho pode até parecer amoroso, mas ela só está preocupada com um sucessor, aquele que ficará a cargo dos negócios. Haneke segue todos com sua câmera, passeando em casas luxuosas, praias e restaurantes. Parece tentar entrar na mente de todos e descobrir quais são seus propósitos. Não encontra nada de fato, apenas a vontade de não existir.
O roteiro configura suas pretensões em Eve. Assim como o avô, ela possui tendências suicidas e se vê em uma família que pouco conhece (mesmo o pai foi ausente desde que ela nasceu). É curioso colocar o avô em um lado – como em um final de uma história – e a neta de outro. A família está podre de inicio ao fim, o ideal seria que sumissem, assim como outras que formam a atual Europa idealizada. Os imigrantes também dão as caras, por assim dizer. São os empregados e os andarilhos que vivem no subúrbio, longe dos restaurantes, do luxo e das praias. Eles não existem de fato, estão fora da sociedade. Sociedade essa dominada por pessoas como Anne, que, com seus vazios existenciais, subjugam o que poderia se tornar humano.
O Jovem Karl Marx
3.6 272 Assista AgoraÉ grande a importância de um filme como “O Jovem Karl Marx” em um mundo cada vez mais pendendo para a direita radical. Muitos que apoiam indivíduos como Donald Trump ou mesmo Jair Bolsonaro confundem os conceitos do comunismo com ditaduras retrógadas como a da Coréia do Norte e da Venezuela. Então, preferem apoiar o populismo desses ditos salvadores da pátria do que os “sujos comunistas”; assim mesmo, como se dizia na época da guerra fria. Só é uma pena porque o longa de Raoul Peck será restrito aos cinemas de arte depois que passar pela mostra e não atingirá uma parcela grande da população.
Como o título entrega, os primeiros passos de Marx junto com seu amigo Friedrich Engels são esmiuçados pelo roteiro. Ficamos a par da vida desses homens e dos motivos que os levaram a pensar uma nova forma de organização social em contrapartida ao vigente capitalismo. Figuras como Mikhail Bakunin e Pierre Proudhon dão as caras para enriquecer ainda mais os ideais que serão base para o início da luta de classes. Vemos as agruras de Marx para expor suas ideias ao mesmo tempo que tenta sustentar sua família, assim como a angustia de Engels em fazer parte da classe industrial rica.
Falado em inglês, alemão e francês, a verborragia impera em um roteiro que precisa, em pouco mais de uma hora e quarenta de duração, explicar teorias e apresentar inúmeros personagens. A legenda atrapalha em alguns momentos se caso o expectador não conheça nada do que está sendo explicado ou mesmo não saiba pelo menos o básico do inglês. Mas nada que atrapalhe o propósito da obra. A ambientação de época é fiel, apesar de ser minimalista. Por isso não espere grandes passeios por Paris de 1844. Tudo é encenado em apartamentos e bares, o que provavelmente aconteceu de fato.
August Diehl traz um Karl Marx com explosões de arrogância e que tinha na convicção uma de suas maiores virtudes, enquanto Stefan Konarske faz de seu Friedrich Engels um ser gentil, que parece ter vivido em prol da genialidade do amigo, mesmo que seus escritos tenham sido tão geniais quanto. Academicamente filmado, “O Jovem Karl Marx” não pretende ser tecnicamente arrojado e sim ser um manifesto áudio visual. A câmera não tenta endeusar os personagens, ela sempre fica parcialmente afastada, em plano americano. O preto e o cinza das vestimentas, assim como os ambientes escuros da fotografia só são contrastados quando uma bandeira vermelha é estendida no lugar onde foi formada a primeira associação de trabalhadores. A confecção do Manifesto Comunista é para onde converge a narrativa e é a partir dele que eclodiram, em 1848, revoluções em toda a Europa, a chamada primavera dos povos. Frases do manifesto são narradas, enquanto pensamos no que mudou de lá para cá. É utópico pensar em uma sociedade socialista na nossa realidade moderna, mas é necessário que Marx e Engels sejam lidos e entendidos, para que um pouco deles se infiltre em nosso dia a dia. Será possível?
Human Flow - Não Existe Lar Se Não Há Para …
4.2 13 Assista AgoraDurante as duas horas de projeção de Human Flow, Ai Weiwei mostra o voo livre de aves migratórias. A sua câmera as filma fazendo um paralelo com os seres humanos no solo, os que se mantém presos em territórios temporários. Naquele contexto, esses humanos não fazem parte de nenhum país. Fogem das intermináveis guerras, da fome e da morte. Eles não são como as aves, tiveram sua liberdade usurpada.
O diretor chinês visita lugares que recebem milhões de imigrantes, mostrando um cenário desumano e que só tende a piorar. O número de pessoas que fogem de seus países de origem em busca de uma vida melhor cresce todos os anos. A Europa, que é o destino mais comum delas, já estuda não receber mais ninguém, e os que já estão por lá permanecem no limbo dos campos de refugiados, que mais parecem campos de concentração
O roteiro de Human Flow é sutil em mostrar a vida difícil de quem espera por ajuda. A câmera não se intromete naquelas histórias, ela apenas registra os fatos. Algumas vezes há perguntas diretas feitas pelo diretor, que também se deixa filmar várias vezes(ele interage com os refugiados, entrando no seu dia a dia e nos seu costumes), mas tudo flui naturalmente como um documentário puro. A inserção de legendas é necessária para que a plateia fique a par das estatísticas grandiosas desse problema global.
Mesmo sendo imparcial, Human Flow possui ares de denúncia nas suas entrelinhas. A Europa é mostrada como a grande vilã, aquela que paga para que os refugiados sejam enviados para outros lugares. As falas vazias de representantes de países poderosos, e a repercussão na mídia ganham espaço e deixam clara a intenção em mostrar que poucos realmente se importam com as crianças, mulheres e homens que perdem sua dignidade e transformam-se praticamente em sub-humanos.
A fotografia é bela mesmo se tratando de um documentário. As analogias empregadas pelos enquadramentos são certeiras em mostrar as intenções dos realizadores. Uma delas é quando um plano geral mostra pessoas amontoadas dentro de uma espécie de jaula, esperando para passar na catraca de controle do que parece ser um posto de imigração. Elas estão espremidas nas barras, parecendo animais indo ao abate. Há também sequências filmadas por drones, que sobrevoam os campos de refugiados fazendo-os parecer grandes formigueiros. As cenas na África trazem pessoas vagando sem rumo em meio às cortinas de areia; em ambientes em que a vida está quase no fim. Cadáveres esquecidos no deserto são filmados em primeiro plano, assim como rostos aos prantos diante da barbárie. Vivendo em Berlim, por causa de atritos com o governo chinês, Weiwei também se considera um refugiado, e talvez por isso ele consiga tanto sucesso em mostrar esse mundo que muitos ignoram.
O pessimismo é sim o sentimento mais presente durante a projeção. Talvez não haja esperança de um futuro melhor se as fronteiras não forem extintas e os muros derrubados. Afinal, o planeta pertence a todos os seres humanos, e não podemos ser privados do direito de possui-lo.
Ana, Meu Amor
3.4 16O cineasta romeno Calin Peter Netzer ganhou em 2013 o urso de ouro no festival de Berlim com o pesado “Instinto Materno” e, consequentemente, arrebatou o público da 37ª Mostra de Cinema de São Paulo. Agora ele apresenta com altas expectativas “Ana, Meu amor”, seu mais recente trabalho. O cinema cru e realista vindo da Romênia já é conhecido e apreciado por cinéfilos do mundo todo, principalmente em festivais especializados, o que faz com que sempre esperemos mais uma obra prima vinda do país.
Infelizmente “Ana, Meu amor” não é uma obra prima e nem possui o poder do filme anterior do cineasta. Netzer filma o relacionamento de Toma e Ana desde o momento em que eles se conhecem na faculdade, mostrando as dificuldades do casal por causa dos problemas psicológicos dela. O recorte de vida que tem por objetivo o estudo de personagens é até competente em sua forma narrativa, pois mostra a vida como ela é: cheia de tempos mortos e situações longas e entediantes. Mas tudo isso na tela, em mais de duas horas, requer um excesso de paciência por parte do espectador.
O problema do longa não é sua lentidão, que é justificável pelo tipo de história que se quer contar, mas sim a repetição de situações e a falta de interesse que a trama causa. O filme, em seu primeiro ato, se resume às cenas de sexo entre o casal (muito bem filmadas e corajosamente explicitas) e nos surtos de pânico de Ana. A partir do segundo ato, o diretor passa a fragmentar o filme em uma montagem que mostra passado, presente e futuro entrelaçados, dando uma sensação de desesperança, já que há o amor sincero do início do namoro e o desgaste entre marido e mulher no futuro.
Talvez a falta de interesse, gerada em mim pelo menos, seja em parte pela forma de atuação destoante dos atores, que mesmo competentes em suas performances, não possuem química como um casal. Não consegui acreditar no amor entre os dois em nenhum momento. Diana Cavallioti é a mais carismática, suas crises de pânico são convincentes, mas suas interações com Mircea Postelnicu não possuem peso. Mas pode ser pela qualidade superior de sua atuação em comparação com seu colega de cena. Algo a se destacar é a primorosa direção de câmera. Os planos sempre fechados em uma fotografia fria de inverno, aliados com câmeras tremulas dão forma de desespero e isolamento ao filme. O isolamento dela, que mesmo estando sempre junto a ele, se vê em um turbilhão de emoções que não podem ser descritas em palavras. O relacionamento se torna quase como a de um pai com uma filha. O sentimento de que ela nunca conseguirá viver normalmente sem ele é sempre presente, o que gera os conflitos que fazem a história avançar.
Nem de longe “Ana, Meu Amor” é um filme ruim, só é sabotado pela sua própria forma. Tende a agradar aos novos fãs do cinema romeno e ao público da mostra, a mim só causou indiferença, infelizmente.
O Matador
3.3 222 Assista AgoraA primeira produção cinematográfica realizada pela Netflix no Brasil não poderia ser mais norte americana. A história de foras da lei e matadores já foi feita tantas vezes que não adianta adicionar o cangaço e o sotaque tupiniquim na equação para que algo de original surja milagrosamente. O cineasta Marcelo Galvão tenta e só não falha totalmente por causa da beleza com que ele imprime suas imagens em nossas retinas.
A narração em Off que remete incomodamente a “Cidade de Deus” é o que primeiro problema veio à minha mente quando comecei a pensar neste texto. Não que seja proibido usar narrações em Off, mas construir todas as suas sequencias em forma de “manual” daquele mundo, como no sucesso de Fernando Meirelles, é o que faz “O Matador” perder sua força desde do início. O narrador (que é um contador de histórias apresentado nos primeiros minutos) dá nome aos bois, relata acontecimentos e apresenta os personagens, como Buscapé, mas sem o aprofundamento dos personagens, tão importante para que pudéssemos entender o contexto da situação e nos importarmos com seus destinos.
Há problemas de montagem ou mesmo de direção em interromper sequencias sem que haja uma resolução para o que foi iniciado, mesmo que de forma subjetiva. Por isso, não sabemos o que acontece a personagens que tem suas histórias traçadas mas não definidas, sumindo como mágica. Mesmo para um elemento chave, como Sete Orelhas (Deto Montenegro, mudo), que possue um começo, meio e fim na narrativa, tudo é muito vago e vazio, não trazendo sequer justificativas plausíveis para seus atos.
As atuações de alguns atores são caricatas demais mesmo sendo a caricatura o propósito de suas existências. Talvez o maior problema seja o protagonistas Cabeleira, vivido pelo ator português Diogo Morgado. Sua mistura de homem das cavernas com cowboy é vergonhoso de fazer corar, apesar de ter gerado risos em alguns momentos. Dentre os arquétipos, o mais competente é Paulo Gorgulho e seu Tenente Sobral. O ator se esforça em conferir sofrimento em suas expressões e acerta na construção de um sujeito consumido pela vontade de vingança. O nome de Mel Lisboa está nos créditos, mas ela entra muda e sai calada em uma cena breve. Maria de Medeiros possui um papel tão insignificante que poderia ser entregue a qualquer iniciante, e não a uma atriz já tão conceituada.
Como dito no início, “O Matador” só não é um desastre total pela enorme capacidade com que Marcelo Galvão e seu diretor de fotografia Fabrício Tadeu possuem em criar imagens memoráveis. Com certeza os dois aprenderam muito assistindo os westerns clássicos. O nordeste árido é perfeito para as lentes de Tadeu, já que a poeira é quase palpável nas roupas e nas peles, com o amarelo tomando conta de quase tudo. Os habituais planos e contra planos de duelos de pistolas também estão presentes, mas com a vantagem de ter ao fundo cidadezinhas que parecem que vão desabar a qualquer momento, devido sua fragilidade. Se houvesse uma história realmente relevante em “O Matador” a estética não seria apenas a única a ser apreciada.
Kingsman: O Círculo Dourado
3.5 885 Assista AgoraSe Matthew Vaughn já surtou na construção das cenas de ação e no humor negro em "Kingsman: Serviço Secreto", posso dizer que ele se superou em "Kingsman: O Círculo Dourado". A fórmula do sucesso da produção de estreia dos espiões engomadinhos está na sua enorme capacidade em não se levar a sério em nenhum momento. E é o que seu sucessor segue ainda mais à risca, mesmo abordando temas tabu, como o uso e a legalização das drogas. Geralmente a produção sequente de um filme de sucesso recebe mais investimentos por parte dos estúdios, o que aumenta suas proporções e também as expectativas. "Kingsman: O Círculo Dourado". Não dá um passo mais largo em suas aspirações, apesar de expandir sua história em alguns pontos. O que ele faz é trazer tudo o que deu certo no primeiro, com a adição de elementos responsáveis por tirar os personagens da zona de conforto.
A trama não é nada mais do que comum: Uma criminosa insere um vírus em vários tipos de drogas e infecta pessoas no mundo todo. Para fornecer o antídoto, ela exige que um acordo com o governo dos EUA. Com isso, os agentes Kingsman precisam encontra-la, agora com a ajuda da agência Statesman, sua parceira americana. A simplicidade do texto não impede que Vaughn e os roteiristas Dave Gibbons, Jane Goldman e Mark Millar criem personagens impagáveis. Começando com a vilã vivida por Juliane Moore (se divertindo horrores com esse papel). Ela vive no meio da selva, em uma instalação que lembra as cidades americanas dos anos 50, possui cachorros robôs e faz hambúrguer de carne humana. A atuação de Moore segue o cliché vilanesco, o que não é um problema, já que o charme da atriz nos compensa. Eggsy (Taron Egerton) nós já conhecemos, mas nunca é demais ver um ex malandro como um gentleman mortal. As adições mais interessantes são dos agentes Statesman. Pedro Pascal entrega todo seu carisma como um cowboy laçador, assim como Channing Tatum o faz em suas sequências de introdução (já que, provavelmente irá voltar no futuro). Colin Firth agora é um Galahad desmemoriado e terá sua sanidade questionada, mesmo por seu quase filho Eggsy. Adjetivar suas personalidades pode parecer irrelevante, mas o aprofundamento deles não faz parte do objetivo do roteiro e sim usar as características marcantes de seus intérpretes em prol de suas construções. Elton John, para minha surpresa, também está no filme, e é hilário. Suas cenas cheias de auto referências são memoráveis. E quem pensar que se trata de apenas uma participação especial, saiba que ele é importante para a resolução da história.
A edição ágil de Eddie Hamilton ajuda Vaughn na concepção de sequências de ação frenéticas. Como a da abertura, que mostra uma luta dentro de um taxi em alta velocidade. Os cortes rápidos, aliados com as câmeras lentas estilizadas entregam a assinatura do diretor no quesito ação. Cenas de ação essas que são potencializadas pela trilha sonora, com seus hits empolgantes, que grudam na cabeça e passam a fazer parte de cada frame. A franquia Kingsman se destaca por sua sempre frequente tentativa de inovação ou extrapolação de tudo o que já foi feito em Hollywood para esse gênero de filme. É como se James Bond ou Jason Bourne tivessem tomado ácido. Toda a miscelânea de acontecimentos e gadgets poderiam atrapalhar e transformar o filme em algo enfadonho, mas Vaughn tem total controle do processo e entrega um produto divertido e descompromissado. Confesso que o novo cinema comercial está me irritando há algum tempo, por causa, principalmente, da falta de originalidade e da repetição. Por isso, espero que os estúdios se inspirem em Kingsman e comecem a trazer ao público produções mais relevantes, mesmo que seja no cenário Pop.
Mãe!
4.0 3,9K Assista AgoraSe Alfred Hitchcock estivesse vivo e assistisse “Mãe!”, ele com certeza aplaudiria de pé. Darren Aronofsky conseguiu captar toda a aura do mestre do suspense em um filme tenso, assustador, que carrega linhas de interpretação e temas diversos. Muitos irão odiar, outros irão amar, mas o papel da obra de arte estará completo no debate que se torna primordial ao final da projeção. Com certeza não é um filme de fácil assimilação e não é indicado para todos (na cabine de imprensa houve críticos deixando a sala de exibição), mas quem quiser algo diferente e que dispersa emoção, não se arrependerá de assistir.
Na trama, a mãe do titulo (Jennifer Lawrence) e um poeta famoso (Javier Bardem) tem o relacionamento testado quando um homem (Ed Harris) e em seguida uma mulher (Michelle Pfeiffer) surgem em sua residência acabando com a tranquilidade. Inicialmente não sabemos muito sobre essas pessoas, apenas que são um casal passando por dificuldades. Após essa a visita, a casa praticamente receberá uma invasão de pessoas de todas as partes, mesmo estando isolada no meio do campo.
Logo de início, o roteiro de Aronofsky entrega que a casa pertence ao poeta, que se muda com a esposa para que ela o ajude a reforma-la, enquanto ele tenta sair de um bloqueio criativo. A reconstrução da casa, junto com a da carreira do poeta (que não publica nada há muito tempo) seguem em paralelo, com a mãe no centro da duas. Ela é a responsável por todas as obras da reforma e ainda tenta inspirar o marido. Lawrence se entrega à narrativa, e Aronofsky persegue sua musa incessantemente. Nós seguimos seu ponto de vista durante toda a projeção. A câmera gira em torno dela, como se estive em sua orbita. Os planos sufocam-a, ela aparece presa no quadro. Presa em uma situação agonizante. A fotografia de Matthew Libatique é sombria. A penumbra é importante para expor o interior sentimental do casal, e os planos sequência com o barulho dos passos no piso de madeira dão quase vida àquela velha casa, fazendo-a gemer. Tudo se torna orgânico.
Como se trata de um filme de câmara, os espaços são reduzidos. Há frequentes closes nos rostos dos personagens, servindo para reforçar as expressões dos atores e tornar ainda mais evidente a extrema categoria de Jennifer Lawrence como atriz. A sua voz quase não pode ser ouvida em alguns momentos, devido a sua calma e serenidade. Mas, com a tensão crescente por causa das visitas inesperadas e por acontecimentos estranhos que passam a acontecer na casa, o seu tom muda gradualmente, indo da confusão à extrema histeria. Lawrence consegue dosar tudo com maestria e com uma hipnotizante presença de cena. Javier Bardem não é menos que genial em sua construção. O poeta é assustador com seus ataques de fúria (um desses com um grito quase demoníaco) e encantador quando declara seu amor à esposa. Os dois se completam em cena, trazendo substancia para a história.
Os ícones de adoração são temas chave em “Mãe!”. Toda a narrativa começa e se encerra neles. O menino jesus sendo carregado pela multidão é encenado de forma brutal, o culto às celebridades, à fama, à riqueza, ou mesmo a um simples objeto são materiais de estudo. A casa vira um microcosmo que representa toda a nossa história de guerras e mortes em torno de algo que, em algum momento, alguém achou que tivesse algum significado. Cultos e bizarrices tomam conta de cada cômodo e a mãe se desespera por não conseguir expulsar todos aqueles seres de dentro da casa, de dentro dela. A casa é saqueada, praticamente destruída e leva junto a sanidade de sua moradora. O poeta, não se importa com a invasão, já que há ali vários de seus fãs. Ele se alimenta da devoção deles. Aronofsky conduz a trama destrutivamente até o final que impacta pela violência e pela revelação. Como eu disse, não é um filme fácil, mas quem entrar na atmosfera criada pelo diretor, sairá baqueado com o resultado.
Os Guardiões
2.1 271 Assista AgoraAo final da sessão de “Os Guardiões” fiquei me perguntando o motivo da sua existência. A versão russa de Os Vingadores poderia funcionar como uma sátira ao famoso supergrupo; com a formação de heróis europeus em contrapartida à massiva presença dos americanos. Mas, infelizmente, o filme se leva a sério e tenta criar uma franquia cinematográfica para, na cabeça de seus idealizadores, competir com seus primos ricos da américa. A Rússia se destaca mundialmente pelo seu cinema de arte, que faz sucesso em festivais importantes, sendo em “Os Guardiões” uma das poucas vezes que algo mais pop é produzido no país.
Quando os filmes da Marvel começaram a pipocar nas telas, o gênero super-heróis se tornou a grande pedida de Hollywood para gerar lucros. Já foram produzidos tantos exemplares que fica difícil algum deles fugir dos clichês intermináveis e das tramas genéricas. Então, já que não há mais o que ser contato, o melhor é investir pesado nos efeitos visuais. Histórias vazias em capas extremamente bonitas e bem feitas. Mesmo personagens icônicos dos quadrinhos não estão conseguindo transportar para o cinema suas auras inovadoras de décadas passadas. Mesmo neste cenário, alguém teve a “grande” ideia de fazer mais um filme de super-heróis, ainda por cima, falado em russo e com atores que possuem nomes impronunciáveis (pelo menos para quem não mora naquela parte do globo).
Já me desculpando com os roteiristas que podem ler esse texto, usarei a palavra “trama” apenas como fator ilustrativo. Ela (a trama) gira em torno de quatro pessoas que são submetidas a experiências genéticas durante a guerra fria e ganham habilidade especiais como resultado. Um deles pode manipular concreto, outra fica invisível, há o do tele transporte e o metade homem - metade urso. Além dos quatro, há o cientista que também é afetado pelos experimentos e se torna o grande vilão da história. Os heróis são reunidos de forma rápida por uma espécie de Nick Fury feminina, porque o cientista louco perdeu o controle e quer dominar o mundo. Quando eu disse que eles são reunidos de forma rápida, foi na forma literal mesmo, já que o filme possui uma hora e vinte e oito minutos de duração, o que, evidentemente, retira qualquer possibilidade de aprofundamento dos personagens.
Se Hollywood passou a investir em efeitos visuais para suprir a falta de ideias, o mesmo não pode ser dito dos responsáveis por “Os Guardiões”. Em uma sequência ou outra eles são até satisfatórios, mas na maior parte da projeção são tão vergonhosos que fazem corar qualquer cineasta de filmes B da década noventa – provavelmente o orçamento foi se esgotando e os efeitos foram junto. A direção de Sarik Andreasyan não ajuda para atenuar a escassez de qualidade técnica, já que é quase amadora. Então, quando um personagem tem que dizer algo que soe heroico, ele vira a cabeça para fora do enquadramento enquanto a música se torna estridente. Andreasyan não consegue gerar nenhum tipo de estrutura para seu personagens, tornando-os apenas arquétipos mal feitos que desfilam na tela. A direção em algumas cenas de luta não é desastrosa – como a que apresenta o personagem que se tele transporta – pois traz um certo grau de originalidade em sua coreografia, o que não salva todo o resto do pastiche. A condução de atores é inexistente, com atuações dignas das piores telenovelas. Não resta muito mais o que dizer sobre "Os Guardiões" além de enumerar as enormes falhas em sua concepção, o que tornaria esse texto extremamente cansativo. Se alguém quer ir ao cinema para dar boas risadas com uma produção ao estilo Ed Wood, aqui encontrará uma boa pedida.
A Torre Negra
2.6 839 Assista AgoraHollywood espreita Stephen King como um urubu na carniça. A fábrica de escrever livros que o autor se tornou o faz ser um dos que mais disponibilizam obras para adaptações cinematográficas. Sejam séries ou filmes, por muitas vezes nos deparamos com “baseado na obra de Stephen King” nos créditos. Usar livros do mestre do terror como base para roteiros é uma boa ideia, levando em consideração a quantidade de dólares que ele faz em vendas (que são gerados pelo abastecimento aos seus milhões de fãs espalhados pelo mundo). No entanto, às vezes, o tiro sai pela culatra. Isso por causa de produções que não conseguem traduzir o estilo do escritor para as telas ou que o altera de diferentes formas. O exemplo mais recente na TV foi a limitada e já cancelada “Under The Dome”. No cinema um que, surpreendentemente, não obteve a chancela de King foi o clássico “O Iluminado”, mesmo sendo uma obra prima da sétima arte e pertencente ao mítico cineasta Stanley Kubrick (aqui há algumas questões de discordâncias pessoais entre os dois que não cabem descrever neste texto).
A tentativa em 2017 de fazer dinheiro nas costas do pobre escriba do Maine é “A Torre Negra”. Mas, sinto dizer que não será dessa vez (mais uma vez) que veremos um grande filme vindo de um de seus escritos. O longa dirigido por Nikolaj Arcel (“O Amante da Rainha”) não é, de maneira alguma, deplorável, mas passa longe de ser algo relevante para a cultura POP ou mesmo de transpor a inventividade de King. Digo isso de forma geral, baseando-se em outros livros dele e em adaptações antes feitas, já que não li a série “A Torre Negra”. A história é tão genérica e breve em sua execução que poderia ter sido baseada em qualquer outro livro, menos em um de King.
Na trama há um feiticeiro poderoso chamado de Homem de Preto (Matthew McConaughey, canastrão) que viaja entre dimensões atrás de crianças com o poder de destruir a torre negra. Essa torre é o pilar que mantém todo o universo seguro contra os demônios do outro lado, ou seja, além do universo conhecido. O pistoleiro Roland Deschain (Idris Elba), é o último de sua classe e o único que pode tentar combater o feiticeiro. Ao encontrar a tal criança aqui na terra, a luta entre o bem e o mal tem início.
Literalmente há uma torre que é o alicerce para uma barreira invisível que separa nós e todas as outras dimensões do inferno. Junto a isso temos pistoleiros, feiticeiros e crianças com poderes telecinéticos. Todos esses elementos juntos em uma história só poderiam ter saído da mente de King. Bastava pegá-los e construir um filme a sua volta, mas os roteiristas preferiram ir pelo caminho mais fácil e que, na concepção deles, seria de melhor compreensão para o público em geral. Claramente as novas regras sagradas do cinema comercial e desenvolvidas pela Marvel foram seguidas aqui: o filme precisa ser menos sombrio e não mostrar violência ou questões psicológicas que não sejam resolvidas no intervalo entre dois cortes, além de vez ou outra fazer uma piadinha para descontrair. Então, ao espectador mais acostumado, fica claro que não haverá consequências realmente sérias para todos os personagens, e mesmo aquelas que são, possuem um verniz superficial que se sustentam por alguns minutos apenas. Tudo ficará bem com um bom abraço e um cachorro quente.
Tecnicamente o filme entrega o que já é habitual e obrigatório na Hollywood moderna: efeitos especiais competentes e cenas de ação barulhentas e bem coreografadas, apesar de serem clichês. O design de algumas criaturas e principalmente da torre negra são o que se destacam esteticamente, trazendo inspiração em suas concepções. Fotograficamente fica difícil analisar um filme desses, já que nunca sabemos o que foi realmente filmado ou o que é fundo verde, no entanto, julgando-se as cenas passadas na terra e apenas com atores, nada foge ao comum. A montagem é falha em alguns momentos ao conferir transições muito rápidas entre uma cena e outra e por não seguir o fluxo adequado da mise-en-scène. Em síntese, “A Torre Negra” é para aqueles que nunca botaram os olhos em nada do que Stephen King escreveu e que gostam de cenas de ação e momentos dignos de filmes de super-heróis.
A Viagem de Fanny
4.0 46 Assista AgoraA segunda guerra mundial provavelmente é o conflito mais retratado pelo cinema nos últimos anos. Já foram feitos filmes sobre as batalhas em si e sobre pessoas comuns que tiveram importância nos seus rumos. Alguns dos mais conhecidos e premiados são “A Lista de Schindler”, “O Pianista” e “O Resgate do Soldado Ryan”. Praticamente todos os anos temos alguma produção que conta alguma história passada no período, e que saem de vários países, não só de Hollywood. A França faz o seu em “A Viagem De Fanny”, que é sobre um grupo de crianças judias que são acolhidas e escondidas por famílias francesas durante a ocupação nazista no país. Após a descoberta dos abrigos, elas são obrigadas a fugir e tentar chegar à fronteira com a Suíça.
A guerra pelo ponto de vista de crianças deixa o tom da produção um pouco mais leve, apesar de haver alguns momentos de tensão durante a fuga, como quando elas são aprisionadas por soldados traidores. A condução de Lola Doillon é eficiente em tirar de todos em cena, mesmo dos mais novos, atuações convincentes e sem exageros, além de construir cenas em que as brincadeiras infantis aliviam o clima. Por isso, a esperança sempre está presente dentro do grupo, o que leva o espectador acreditar que tudo ficará bem.
A fotografia segue o otimismo por trazer ambientes extremamente iluminadas e coloridos, destacados pelos planos abertos e por expositivos movimentos de câmeras. O que, evidentemente, tem o objetivo de mostrar os belos cenários em que a história se passa. O figurino é trabalhado para, praticamente, retirar as cores escuras da vestimenta das crianças, deixando para os soldados o preto e cinza. O roteiro não traz nenhuma grande sacada, apenas mostra o típico Road Movie que todo cinéfilo aprendeu a gostar, sendo os relacionamentos o seu foco principal. Os adultos são mostrados como seres que não são de total confiança, tornando a aparição de qualquer um em uma potencial ameaça. Personagens como de Cécile de France e Stéphane De Groodt são os poucos que servem de ajuda durante a jornada, mas que estão presentes apenas como pontes para o amadurecimento precoce das crianças.
Obviamente, a personagem Fanny (Léonie Souchaud) é a que possui mais atenção do roteiro, sendo ela a líder do grupo e a que mostra mais coragem para enfrentar os problemas. Sua responsabilidade é ainda maior porque tem que cuidar das duas irmãs pequenas e precisa fazer o papel dos pais ausentes. Ela, ao olhar pelo visor de uma câmera, lembra-se dos momentos felizes com sua família no passado e sonha um dia voltar a eles, mas, para isso, precisa chegar à Suíça. A falta de comida, de água e a perseguição dos inimigos é constante, o atrito entre o grupo também chega a ser um problema para a garota. A aventura do filme está contida nesses elementos e a inocências dos envolvidos confere, às vezes, alguns momentos cômicos, servindo de escape para o contexto geral da trama. A fofura de algumas situações ajuda a criar empatia suficiente para que a história transcorra até o final sem grandes percalços.
O filme é baseado em uma história real e tem em sua base os inúmeros órfãos que surgiram na Europa pós-guerra. É triste constatar, pelo que é mostrado no filme e pelos fatos históricos, que muitas dessas crianças não tiveram chances de fugir, sendo vitimas dos campos de concentração nazistas. O que nos resta é o consolo em saber que houve inúmeros grupos de Fannys que conseguiram sobreviver a umas das maiores barbáries que nós já produzimos neste planeta. Vale a pena conferir para que possamos pensar com mais carinho sobre nossas crianças.
Planeta dos Macacos: A Guerra
4.0 956 Assista AgoraGuerra. Essa é uma palavra muito presente na história da humanidade e, por mais que evoluímos, esses conflitos ainda estão presentes. A nossa espécie busca na destruição a forma de resolução de seus problemas, e assim será até que não sobre pedra sobre pedra. A arte alerta para esse padrão destrutivo que possuímos, como Pablo Picasso fez com Guernica ou Kubrick com “Nascido para Matar”, mas os erros continuam a ser cometidos. As guerras podem ser em escala mundial ou podem fazer parte de um microcosmo, como a guerra travada por negros e mulheres para serem aceitos como iguais, ou mesmo dos homossexuais que são tratados como escória por vários outros grupos que fazem parte do mundo dito civilizado. As diferenças são, talvez, as principais causadoras dos horrores que fazemos uns para os outros. O medo do que é diferente é uma arma poderosa para causar a extinção, e é sobre isso que trata “Planeta dos Macacos: A Guerra”.
Caesar (Andy Serkis) é a síntese dos conflitos vividos por todos os seres pensantes que já pisaram na terra. Apesar de parecer mais evoluído e, claro, por não fazer parte do homo sapiens, Caesar está entre a compaixão, o perdão e o ódio, assim como está o Coronel (Woody Harrelson). Os dois compartilham a busca pela sua sobrevivência e de seus semelhantes e também o medo de um futuro incerto para as espécies. “Planeta dos Macacos: A Guerra” começa com um grupo de macacos sendo perseguidos por soldados em meio a uma floresta, onde estão exilados junto a seu líder Caesar. Mesmo com a vitória, os macacos sofrem inúmeras baixas, fazendo-os pensar em fugir para uma região mais afastada. Daí surge o embate entre o líder dos macacos e o Coronel, seguindo as temáticas da perseguição, escravidão e, claro, da guerra. O Coronel não é retratado como um simples vilão que quer a morte dos macacos por motivos fúteis. Ele possui motivos tão profundos como os de Caesar e Woody Harrelson contribui para a complexidade do personagem, assim como o faz Andy Serkis. Os macacos são ameaçados pelo Coronel e seu exército, e o Coronel por sua vez é ameaçado por um inimigo desconhecido que não conhecemos de início
Matt Reeves executa uma obra dramática e filosófica, que possui cenas pontuais de ação, bem menos do que sugeriam os trailers, que mostraram muitas explosões e correria. A câmera de Reeves é ágil nas sequencias de batalhas e soturna naquelas onde as mortes são retratadas. A fotografia executa algumas homenagens, como a cavalgada na praia ao pôr do sol, remetendo ao Planeta dos Macacos clássico e mesmo alguns planos na mata, que fazem lembrar “Apocalypse Now” ou mesmo “Platoon”. O holocausto também está presente nas prisões ao céu aberto onde os macacos são confinados. Em meio às referencias está Caesar, o grande herói grego. Ele possui tragédias em sua família, a sabedoria angariada como líder e a responsabilidade entre escolher para seu povo a barbárie ou a complacência. Caesar nos guia em sua epopeia ao mesmo tempo que lidera os macacos. Como Moisés fez com os israelitas. A jornada é reforçada pela trilha de Michael Giacchino, que nos traz uma mistura de tensão – com batidas intensas e ininterruptas – e heroísmo – rápidas e de teor épico – o que já era esperado se tratando de um super blockbuster.
Como Caesar é o ícone aqui, é justo que o filme jogue todas as suas fichas nele. As representações físicas de conceitos abordados pelo roteiro são claras de várias formas. A variação da postura de Caesar é um exemplo: se suas emoções estão mais próximas das dos humanos, o vemos ereto em meio aos seus súditos, parecendo um ditador que faz valer suas vontades supremas, já quando corre em quatro patas, se iguala ao povo e entende as suas agruras. Na verdade vemos Caesar quadrúpede poucas vezes, sendo uma já quase no encerramento e de forma decisiva. A inclusão de novos personagens como o atrapalhado e inocente Macaco Mau (Steve Zahn) e uma garota muda, chamada de nova – como sendo uma evolução dos humanos e macacos – faz um contraponto ao sério líder, o que confere leveza e alivio cômico em alguns momentos.
“Planeta dos Macacos: A Guerra” encerra a franquia trazendo algumas definições, mas deixa muito em aberto para que haja mais histórias no futuro. Provavelmente veremos algum filme pautado na nova espécie evoluída dos humanos e macacos e os conflitos gerados pela divisão em três frentes, o que seria interessante de ver. O certo é que a franquia não irá parar por aqui , já que trata das melhores produções que Hollywood vem entregando nos últimos anos.
O Filme da Minha Vida
3.6 500 Assista AgoraNo imaginário popular dos brasileiros há a visão enraizada de um cinema nacional onde o que impera são os filmes violentos passados em favelas, os do sertão miserável ou mesmo as comédias escatológicas. Esse tipo de ponto de vista é presente porque as produções estão em nossas telas há muito tempo e em grande quantidade, quase transformando o nosso cinema em um produtor de temáticas limitadas. Parece que não aproveitamos nosso grande território, concentrando as histórias no centro oeste e no nordeste. Mas, como Selton Mello prova em “O Filme da Minha Vida”, a verdade não é bem essa.
Toda a trama de “O Filme da Minha Vida” se passa na bela e bucólica região da serra gaúcha, mais precisamente na pequena cidade de Remanso. Lá, acompanhamos o jovem Tony (Johnny Massaro), que decide retornar a sua terra natal após passar alguns anos estudando na capital. Ao chegar, ele descobre que Nicolas (Vincent Cassel), seu pai, voltou para França alegando sentir falta dos amigos e do país de origem. Tony acaba tornando-se professor e vê-se em meio aos conflitos devido às inexperiências juvenis e também à melancolia crescente de sua mão Sofia (Ondina Clais Castilho, ótima).
A história adaptada a partir da obra do autor chileno Antonio Skármeta é carregada de poesia visual. Selton Mello, com o apoio do celebre diretor de fotografia Walter Carvalho, desfila seu estilo em planos que parecem tirados de pinturas impressionistas, por causa da variação de cores e do belo trabalho de luz. As casas e os objetos de cena são todos pensados para que pareçam antigos e gastos, com a ferrugem sempre aparente. Uma espécie de capsula do tempo. As influencias do cinema europeu são evidentes pelo estilo da fotografia e pela direção, que é mais cadenciada e privilegia as atuações. Para reforçar a europeização há também a trilha sonora, onde se destacam Charles Aznavour e Nina Simone.
Além de belo, “O Filme da Minha Vida” traz uma narrativa que consegue proporcionar emoção e suspense. Mello conduz intercalando passado e presente e mescla com momentos de sonhos de Tony. A montagem é competente ao mostrar o essencial e ajuda a construir o caráter dubio de alguns personagens chave para a resolução da trama. O drama familiar e o amadurecimento são os temas abordados pelo roteiro (também escrito por Selton Mello) e, com um elenco inspirado, são convincentes em suas execuções. Johnny Massaro cria um Tony que começa frágil, quase um filhote de pássaro sozinho em um ambiente hostil. A falta de compreensão sobre a fuga do pai deixa Tony quase que em um estado catatônico, mergulhado em lembranças. Mello o faz seguir o tortuoso processo de amadurecimento sem uma figura paterna presente e as idas do rapaz todos os dias à estação de trem, na esperança da volta do pai, revelam a sua falta de preparo para a vida.
O pai possui pouco tempo em cena, já que se quer reforçar a ausência, mas é peça chave para o entendimento dos sentimentos de Tony. Vincent Cassel entrega todo seu charme com um português cheio de sotaque e por isso, mesmo largando a família, não se torna um vilão da história, e sim mais uma vitima das casualidades da vida. Luna (Bruna Linzmeyer) é uma antiga amiga e potencial interesse amoroso de Tony e carrega um olhar profundo e misterioso, mas que será importante para o amadurecimento do rapaz. Mesmo o trem acaba se tornando um personagem do filme, já que é nele que as despedidas acontecem e as esperanças florescem. As viagens da Maria fumaça são filmadas de forma romântica e representam as aspirações das pessoas daquela cidade.
Selton Mello mais uma vez mostra que sabe conduzir um filme com sensibilidade e técnica e que seus roteiros e mesmo sua direção sempre fogem do obvio. Sua arte extrapola qualquer pretensão comercial e leva mensagens sentimentais para seu público. Espero que ele tenha vida longa atrás e à frente das câmeras, porque, hoje em dia, estamos precisando de um pouco de beleza nesse cinza e feio mundo em que vivemos.
Dunkirk
3.8 2,0K Assista AgoraOs fatos históricos são os que mais me atraem em filmes de guerra, mas sei que muitos vão assisti-los pelo potencial espetaculoso que eles proporcionam. Temos, a partir do “O Resgaste do Soldado Ryan” a elevação técnica desse tipo de filme. Spielberg traz as vísceras para a tela em sua famosa sequência do desembarque em Normandia. Claro que clássicos como “Apocalypse Now” e “Platoon” são grandes histórias contadas durante esses conflitos, no entanto, com novos instrumentos, o cinema pôde extrapolar a imaginação dos realizadores e da plateia. Por isso, quando foi noticiado que Christopher Nolan iria não só dirigir mas também escrever a história da evacuação inglesa na praia de Dunkirk durante a segunda guerra mundial e que tudo seria filmado em IMAX, todo mundo que gosta minimamente de cinema ficou com os pelos do corpo arrepiados.
Nolan tem em seu currículo filmes que dividem a crítica mas que agradam muito o público em geral. Sua capacidade em criar cenas grandiosas mas que possuem significados narrativos é de fato uma de suas qualidades. As histórias aventurescas apoiadas na fantasia e na ficção cientifica transformam o cineasta britânico quase em um novo Spielberg. O “quase” é porque Nolan não consegue alcançar a potência emocional dos filmes de Spielberg. Seus personagens, quando não interpretados por atores competentes, tendem a cair na caricatura, tornando-se unidimensionais. Até o momento é justo quando lhe “acusam” de não ser um bom diretor de atores. Sua técnica se sobressai à dramaturgia, o que pode atrapalhar o desenrolar de algumas histórias. Seus filmes anteriores são ótimos por serem cinema de espetáculo e que possuem interpretes que conseguem entregar muito mais do que o exigido pelo diretor.
Infelizmente para Nolan, “Dunkirk” é um tipo de filme que necessita muito de atuações convincentes e de situações que façam a tensão crescer a ponto da sobrevivência daqueles personagens ficarem em risco. Não que a tensão não esteja lá, mas é minimizada por causa de uma narrativa prejudicada por uma montagem confusa. O editor Lee Smith foi incumbido de juntar os vários núcleos de personagens em terra, no mar e no ar e tornar claro os pulos temporais durante o longa; o que não faz com sucesso. Durante longos momentos fiquei confuso em relação à sequência de acontecimentos, já que não há uma referência que faça com que o espectador entenda que um personagem foi do ponto A para o ponto B ou mesmo que uma cena complementa a outra no futuro ou no passado. Tudo parece ser picotado e jogado na tela, chegando ao ponto de fazer com que um único corte separe uma batalha de dia e outra de noite, o que é irreal, já que se passam na mesma região. Apenas depois de alguns momentos, onde alguns personagens aparecem em lugares diferentes ao mesmo tempo, é possível entender a intenção do diretor em relação à construção da história. Essa falta de conexão da montagem atrapalha a relação dos personagens com o público pois é impossível, em frações de tempo durante a trama, que eles sejam aprofundados a ponto de fazer com que nos importemos com seus destinos. Os personagens vagam em praias cheias de corpos, se afogam em navios afundando ou caem com seus aviões, o que passa insipidamente diante de nossos olhos. A falta de humanidade nesse caso não parte da plateia mas sim do roteiro.
Uma virtude de Nolan e que está presente em todos os seus outros filmes é seu total controle da cinematografia. Junto com o diretor de fotografia Hoyte van Hoytema ele cria um clima extremante opressor mesmo em um ambiente aberto como a extensa praia. Em vários momentos Nolan e Hoytema enquadram os soldados agrupados em uma espécie de píer aguardando o resgate, transformando-os em um rebanho aguardando o abate. O que se torna realidade nos frequentes bombardeios alemães. Um curto mas genial plano holandês mostra a falta de horizonte dos soldados sentados na areia, o que é reforçado pelas cores sem vida das roupas e mesmo da espuma quase alienígena que se acumula onde as ondas se quebram. Outra ótima sacada da direção são as batalhas aéreas filmadas em “primeira pessoa”, só mostrando a mira do avião perseguindo o seu alvo. Por esse ponto de vista não fica difícil perceber o quão trabalhoso era atingir qualquer coisa com os aviões Spitfire da aeronáutica britânica.
Outra estrela que ajuda Nolan em sua jornada é Hans Zimmer. Quase todo o filme é permeado pela música épica do experiente compositor, o que contribui para toda a tensão vista em tela. A ameaça é incessante, assim como os acordes que explodem as caixas de som do cinema e tremem a sala de exibição. A presença da trilha só é encerrada no final da película, sobrando apenas o silêncio de uma nação provisoriamente derrotada, já que sabemos como a guerra terminou. Nolan não acerta totalmente em Dunkirk, mas entrega um filme que possui atributos impossíveis de ignorar, o que o tornará em sucesso de bilheteria e, quem sabe, convença a maior parte dos críticos.
Soundtrack
3.4 42Em 2006 o curta metragem “Tarantino’s Mind” chamou a atenção dos cinéfilos ao contar uma história simples, baseada em um dialogo entre dois amigos em um bar, os dois são interpretados por Selton Mello e Seu Jorge. Eles discutem a conexão hipotética de todos os filmes de Quentin Tarantino. O pequeno filme conta com diálogos muito bem escritos, que fazem com que acreditemos que todos os filmes do cineasta americano foram pensados como uma única historia desconexa. Nascia aí uma promessa para o cinema brasileiro: o coletivo da 300 ML, que são responsáveis pela direção e pelo roteiro.
Mas, infelizmente, a promessa foi subjugada pela pobre realidade do cinema brasileiro. Os diretores não contaram com apoio para seguirem com suas carreiras promissoras e não conseguiram filmar mais nada durante os dez anos que se seguiram. Finalmente, em 2017, lançam esse “Soundtrack”, que também conta com Selton Mello e Seu Jorge, agora também como produtores do longa. O roteiro segue o fotógrafo Cris (Selton Mello) em uma viajem até uma estação de pesquisa polar para realizar um experimento artístico. O intuito é se isolar e tirar selfies que capturem as sensações causadas por uma série de músicas pré-selecionadas. No local, ele conhece o botânico brasileiro Cao (Seu Jorge), o especialista britânico em aquecimento global Mark (Ralph Ineson), o biólogo chinês Huang (Thomas Chaanhing) e o pesquisador dinamarquês Rafnar (Lukas Loughran).
“Soundtrack” compartilha da mesma qualidade de diálogos de “Tarantino’s Mind”. Quase todo falado em inglês, o roteiro consegue leveza mesmo em situações melancólicas e também naturalidade naquelas engendradas pelos personagens durante a convivência difícil na estação cientifica gelada. Selton Mello mostra desenvoltura na atuação em uma língua não nativa, e sensibiliza a plateia com um personagem agridoce, que parece buscar algo que lhe foi usurpado na vida. Seu Jorge serve bem como personagem de apoio ou mesmo como alivio cômico em varias linhas de dialogo em português. Ralph Ineson com seu vozeirão e sotaque britânico, às vezes Lembra seu personagem em “A Bruxa” principalmente nas explosões de raiva e tristeza, mas é tridimensional ao construir um ser que possui a bondade dentro de si, mas é constantemente assolado pela saudade de sua família.
O existencialismo domina a narrativa, os diretores levam Cris a buscar tudo no meio do nada. Ele é coberto pelo branco da neve e da névoa, quase flutua no ar em um ambiente que parece não ter dimensões. Sua experimentação artística é a busca por um sentido, um mínimo de sentimento, a fuga do niilismo. Em vários momentos ele fecha os olhos e sente os objetos em suas mãos, como um cego em busca da essência de tudo que o cerca. A música que serve como trilha sonora para seus autorretratos é o que lhe traz a cumplicidade dos cientistas da base, principalmente de Mark, que percebe que os sons podem proporcionar sensações diversas, fazendo-o vivencia-las quase que de forma real. A direção de fotografia é importante na confecção desse clima. Iluminam-se os cômodos de forma rasa; o branco que vem das janelas é a única luz a entrar e encher o rosto de seus habitantes. O clima claustrofóbico é reforçado pelos planos fechados e a movimentação de câmera discreta. As cores só aparecem em momentos de descontração e felicidade, como no laranja de uma bola de futebol ou na aquarela de um jogo de pesca antigo.
A música diegética, que vem dos aparelhos de Cris, é usada para mergulhar o espectador no mundo da base ártica e também para reforçar o convite à exposição das obras mostradas no filme e que estão disponíveis para o público visitar no Museu da Imagem e do Som em São Paulo. De acordo com os realizadores, os autorretratos junto com fones de ouvido, trarão ao visitante a trilha sonora exata dos momentos que mostram Cris trabalhando. Na verdade, a arte é criada pelo gaucho Oskar Metsavaht, que é o diretor artístico do filme. É bastante interessante assistir o filme e depois visitar a exposição, pois tudo traz uma boa sensação de realidade e nos torna cúmplices do artista. Claro que não é obrigatório visitar a exposição para ser atingido por tudo que o roteiro pretende transmitir. Basta mergulhar na mente e na vida de Cris, já que, afinal, estamos conectados por tudo aquilo que nos torna humanos.
Grave
3.4 1,1K“Grave” começou sua trajetória sendo premiado pela FIPRESCI (Federação Internacional de Críticos de Cinema) no festival de Cannes em 2016 para, logo depois, causar desmaios em algumas pessoas da plateia no festival de Toronto do mesmo ano. Nunca uma história sobre a transição da adolescência para a vida adulta foi, com perdão do trocadilho, tão visceral como a contada pela estreante cineasta Julia Ducournau.
No filme acompanhamos Justine (Garance Marillier), uma jovem tímida e vegetariana, que começa os estudos na mesma faculdade de veterinária em que está sua irmã, Alexia (Ella Rumpf). Durante o trote de inicio de ano, ela é forçada a comer carne animal pela primeira vez, o que leva a garota a sentir um incessante impulso carnívoro, principalmente pelo cru.
O roteiro é esperto em levar a personagem para uma faculdade de veterinária, onde se vê, em todos os momentos, animais mortos sendo dissecados e também grandes quantidades de sangue. As acomodações do local são extremamente opressoras, lembrando uma grande prisão misturada com um abatedouro. As paredes cinzas só saem de evidência por causa dos aventais brancos manchados de sangue dos estudantes. A iluminação é de caráter quase documental, só se desgarrando de sua alta granulação quando usa filtros para cobrir Justine em luzes vermelhas de neon em festas que acontecem no campus ou mesmo durante as cenas em seu dormitório. A direção de câmera faz notar a estranheza das situações com enquadramentos em que os personagens são vistos nos cantos, e economiza na velocidade dos cortes para trabalhar os momentos com paradoxal naturalidade.
O filme está sendo vendido como um terror, no entanto, o vejo mais como um suspense com toques dramáticos. As cenas de canibalismo não causam medo e sim nojo. Toda a sujeira causada pelo sangue, pela carne crua e pelo excremento dos animais são mostrados de forma gráfica e poucas vezes há a ocultação ou mesmo o desvio das câmeras. Isso mostra coragem e fidelidade para o tipo de história que se quer contar. Outro mérito é a excelente maquiagem, que faz com que acreditemos em cada ferida ou pedaço de corpo que é mostrado. Um ato falho é a falta de consequências para muito do que se vê em tela. Há brigas com amputações, humilhações e todos os tipos de bizarrices sem que a polícia ou mesmo a direção da escola sejam alertados, o que tira um pouco do impacto por sua inverossimilhança.
A trama avança apoiada nas descobertas sexuais e carnívoras de Justine, fazendo um claro paralelo à fase de transição da vida adulta para adolescência. Ela descobre seu corpo e seus desejos, luta para suprimir os mais explícitos, mas se entrega à vida com a ajuda da irmã, que também possui os mesmos impulsos. A interação entre as irmãs é interessante porque proporciona ainda mais peso na trama, fazendo o espectador se perguntar se a condição delas se trata ou não de um fator genético. O porte físico frágil de Garance Marillier a transforma no filhote que ainda não descobriu todos os prazeres e mesmo as formas de sobreviver, precisando de uma irmã mais velha e desenvolvida para ajuda-la. Talvez o pior momento seja no final do terceiro ato, quando os roteiristas tentam chocar com informações que já são obvias desde o inicio para os espectadores mais habituados com as reviravoltas desse tipo de trama, mas nada que atrapalhe a experiência no total.
No final se trata de mais uma boa produção vinda da França e se você tem estômago forte e preza pela boa execução de um filme, “Grave” é uma boa pedida, mesmo porque é preciso que o cinema respire bem com novas temáticas, nem que elas sejam, neste caso, nojentas.
A Liberdade é Azul
4.1 650 Assista AgoraO mítico diretor polonês Krzysztof Kieślowski é conhecido por seu cinema poético, onde a essência transborda em narrativas que fogem do habitual. Boa parte de suas obras são pautadas em personagens femininos fortes, que são o centro das suas tramas. Um de seus trabalhos mais conhecidos é a trilogia baseada nas cores da bandeira francesa e seus significados. Usou o lema liberdade, igualdade e fraternidade para contar a história de três mulheres francesas. O primeiro filme se chama, em seu título original, “Trois couleurs: Bleu” que no Brasil ficou “A Liberdade é Azul”, o que, convenhamos, soa bem mais poético.
“A Liberdade é Azul”, tem início com um acidente de carro em que morre um famoso compositor e sua filha pequena. No carro também estava a sua esposa Julie, que sobrevive. Depois de recuperada, Julie tenta se livrar da vida passada, afim de esquecer seus entes queridos mortos. Coloca à venda a mansão em que viveram juntos e literalmente queima todos os seus pertences pessoais. Tenta destruir uma partitura inacabada que o compositor trabalhava (que era sobre a unificação europeia) e aluga um apartamento em uma área pouco valorizada de Paris.
São nos momentos onde Julie “destrói” sua vida passada que o cineasta imprimi toda a sua genialidade como autor e esteta da sétima arte. Claro que a sua direção já constrói a personagem desde o momento em que ela se encontra no hospital. Todos os planos são de extremo sufoco; planos hiper fechados que a encaixotam. Quase uma prisão de dentro para fora da tela. Ainda no hospital ela passa a ser acossada pela cor azul do título. Seu rosto é inundado por uma luz azulada misteriosa que a acorda em certo momento e que, pela montagem proposta, a faz lembrar da tal composição musical incompleta. A partir daí, em vários momentos a música toma conta e o faz quando o azul está presente, como em objetos ou mesmo na iluminação.
Mesmo se estabelecendo na nova vida e tentando esquecer do passado, parece haver uma força que a leva de volta, essa força é caracterizada por situações que deixam o filme inquietante e são trabalhadas de forma genial pela construção do roteiro. Uma das cenas em questão é quando Julie é enquadrada boiando em uma piscina em posição fetal, tentando “afogar” a música que surge em sua cabeça e que nós expectadores também ouvimos. Quando ela mergulha, a música cessa. Tudo é feito em uma piscina, evidentemente, azul em sua extensão. A câmera também é um personagem, ela se move entre cômodos e confere instabilidade à trama enquadrando Julie sempre nos cantos. Há um plano sequência primoroso mostrando-a andando enquadrada do tronco para cima. A câmera não se mexe e sim Julie, que joga o corpo de uma extremidade a outra da tela, deixando o espectador atordoado. Todo o potencial narrativo e técnico do filme não seria suficiente se Krzysztof Kieślowski não contasse com o talento de uma jovem Juliete Binoche, que é extremamente competente em construir uma personagem confusa com os acontecimentos e, paradoxalmente, determinada em esquecê-los.
A obra foi lançada em 1993, o ano em que houve a construção do bloco dos países europeus e trata sutilmente dessa questão com a citada partitura inacabada feita para celebrar essa união. A Europa deu uma lição em juntar seus países e demonstrou que a liberdade que deu a seus cidadãos é bem mais benéfico do que isola-los. O isolamento que Julie escolheu depois de uma tragédia é quebrado quando ela percebe que a memória de seu marido nunca será apagada e decide terminar a sinfonia da união. Ela se integra ao passado para enfim ganhar a liberdade. Por isso, saldemos a Europa e contemplemos Kieślowski.
Inseparáveis
3.1 24 Assista AgoraQuando “Intocáveis” estreou em 2011, o sucesso foi instantâneo. Todos ficaram comovidos pela história de um malandro de bom coração que passa a cuidar de um milionário tetraplégico. Baseados em fatos reais, o filme conta o desenvolvimento da amizade desses homens tão diferentes, mas que se completam e mudam a vida um do outro. Após o lançamento, já surgiram inúmeras noticias sobre um possível remake vindo de Hollywood. Os endinheirados americanos, neste caso, foram passados para trás, pois os argentinos o fizeram primeiro.
Em 2016 temos “Inseparáveis”, com Oscar Martínez (Relatos Selvagens) e Rodrigo de La Serna (Diários de Motocicleta) nos papeis principais. A palavra refilmagem foi tratada na forma literal, já que cada frame é vindo do original francês. Mesmo a barroca mansão do milionário parece ter sido reproduzida nos mínimos detalhes. Quase todas as situações que marcam o encontro dos dois também são repetidas, alterando-se alguns pequenos detalhes que não são importantes para o avanço do enredo. A fotografia, assim como em “Intocáveis” possui momentos soturnos e coloridos, variando de acordo com o estado emocional dos personagens. O tom melodramático impera em cenas de confissões e choro. Em se tratando de narrativa, não há nenhum elemento que se destaque ou que ultrapasse o acadêmico. Não deixa de ser uma pena, já que há situações que poderiam ser trabalhadas com outros pontos de vista, trazendo mais discussões nas entrelinhas. Sem muita complexidade, era possível traçar uma linha sobre a nossa mortalidade na figura do milionário; que até possui algumas falas que podem indicar esse caminho, mas que, de tão superficiais, ficam fora de contexto.
O elenco cumpre seu papel, principalmente com Rodrigo de La Serna encarnando um homem que, apesar de suas maneiras brutas, consegue ser apaixonante e sensível. O problema é que Omar Sy já havia interpretado esse mesmo personagem e com a mesma sensibilidade. O ator argentino só inclui traços de personalidade latinos, principalmente na cena da dança durante um aniversario. Oscar Martínez causa pena e tristeza com um homem amargurado, que teve a vida interrompida por um acidente, chegando a superar em alguns momentos a atuação do francês François Cluzet.
Para quem não viu o original, será uma boa oportunidade para ir ao cinema e acompanhar a história recontada por nossos vizinhos portenhos e, mesmo para quem já viu, será uma reprise agradável como passa tempo. Quando digo passa tempo, não é minha intenção rebaixar o filme, mas sim dizer que a missão de contar uma história de amizade leve em engraçada foi cumprida, mesmo com a grande e evidente sensação de déjà-vu.
Mais do que o filme em si, é válido discutir a necessidade da realização de refilmagens de produções tão recentes. O cinema possui uma linguagem universal, que, mesmo precisando de legenda ou dublagem, consegue atingir pessoas do mundo todo. “Intocáveis” surgiu e atingiu milhares, inclusive na Argentina, e é até curioso ver uma refilmagem vinda de lá, que é um país festejado por sua filmografia original e de estilo próprio, sendo reconhecida no mundo todo por sua excelência. Esse papel de reprodutor é muito associado aos EUA, que não possui muita aceitação do que vem de outros países. Será que essa falta de aceitação está atingindo outros lugares? Será que a globalização do cinema passará a ter barreiras representadas pela língua e pela cultura? Não quero acreditar que a forma de arte mais completa que existe seguirá o exemplo da política de alguns países e construirá muros em suas fronteiras, preferindo refazer com sua visão algo vindo de outro lugar não agradável aos seus olhos.
Esperemos e acreditemos que se trata de apenas mais uma tentativa de se produzir mais dinheiro em bilheteria.
Rei Arthur: A Lenda da Espada
3.2 623Desde o final de sucessos como “Senhor dos Anéis” e “Harry Potter” a Warner Bros vem procurando uma nova franquia que sustente o seu catálogo durante os anos. Conseguiu ótimo desempenho com “Animais Fantásticos e Onde Habitam”, mas, como uma andorinha não faz verão, aposta em produções como o novo “Rei Arthur: A Lenda da Espada”, esperando tirar daí mais um sucesso de bilheteria. Depois de várias adaptações da história dos cavaleiros da távola redonda, há a necessidade de atualizar o mito para a nova geração, tentando transforma-lo em mais um ícone pop. Alguns desses filmes predecessores tiveram lapsos dessa tentativa de atualização, mas esbarraram na falta de interesse do público. O exemplo mais recente é de 2004, com “Rei Arthur”, dirigido por Antoine Fuqua (Dia de Treinamento) e que conta com um elenco estrelar.
Quando se pensa em filmes pop, logo nos vem à mente a edição picotada, os diálogos espertos e engraçados e os personagens carismáticos, além, é claro, as indispensáveis cenas de ação. Todos esses fatores , quando ligados a um bom roteiro, geralmente agradam o público e, por que não, os exigentes críticos. Um dos nomes na indústria que pode entregar todos esses elementos em forma de filme é o talentoso diretor Guy Ritchie, que, a julgar pelos seus melhores trabalhos, não precisa de apresentação.
Em “Rei Arthur: A Lenda da Espada” Guy Ritchie até consegue imprimir seu estilo em algumas sequências, como na excelente introdução, onde conta a vida de nosso herói desde a infância até a fase adulta de forma acelerada e com cortes extremamente rápidos. As cenas de lutas, com sua famosa câmera lenta, também se fazem presentes, assim como os diálogos rápidos, onde um personagem completa a fala do outro e se tratam por apelidos que parecem saídos das ruas da Londres do século XXI. Uma versão de “Snatch – Porcos e Diamantes” e “Jogos, Trapaça e Dois Canos Fumegantes” da idade média.
Mas, mesmo com seu apuro técnico, o cineasta não consegue fugir de um roteiro genérico que, mesmo tentando subverter a clássica história de Rei Arthur, se mostra frágil em emular diversas ideias já vistas em outros filmes de fantasia. Por isso, quem pisou em uma sala de cinema durante os últimos dez anos, saberá exatamente como toda a história irá se desenvolver e como será seu desfecho. Para completar, há o elenco com Eric Banna e Jude Law no automático, um Charlie Hunnam unidimensional e toda uma gama de coadjuvantes como enfeites de cena.
Para quem se interessar eis a sinopse: Arthur (Charlie Hunnam) é um jovem das ruas que controla os becos de Londonium e desconhece sua predestinação até o momento em que entra em contato pela primeira vez com a espada Excalibur. A partir daí, ele precisará dominar os poderes da espada para derrotar o tirano Vortigern (Jude Law). Genérico não?
Claro que, por causa das peripécias de Guy Ritche e dos bons efeitos visuais, o longa se mantém em um patamar aceitável em seu desenrolar, contentando o público eventual que vai aos cinemas com a intenção de se divertir. A diversão poderá ser aproveitada por todas as idades já que o sangue é artigo raro durante a projeção, mesmo se tratando de uma história passada em um contexto extremamente violento. A trilha sonora também pode ser tratada como um ponto positivo e agradável. As músicas acompanham o ritmo do diretor em batidas rápidas e acordes empolgantes, trazendo mais ritmo em sequencias que, sem elas, talvez fossem comuns.
No geral, “Rei Arthur: A Lenda da Espada” é um filme que pode ser conferido sem medo se você está procurando alguma coisa para assistir no fim de semana. Provavelmente você vai sair do cinema satisfeito e com a sensação de que o dinheiro do ingresso valeu a pena, mas não espere lembrar-se de tudo o que passou na tela depois de algumas horas. Isso é certeza!
OBS: Evite a versão em 3D se você é daqueles que espera mais do que objetos lançados em seu rosto.