“Death Note” é um filme americano produzido pela Netflix cuja adaptação se dá a partir de um renomado anime japonês escrito por Tsugumi Ohba e Takeshi Obata. Material original à parte (que eu desconheço), o filme cujo roteiro foi escrito pelo trio Jeremy Slater e os irmãos Charles e Vlas Parlapanides deixa de lado a suposta abordagem moral que serviria de pano de fundo para a narrativa para criar uma trama intrincada, irônica e debochada sobre o acaso e deixa a cargo do diretor Adam Wingard a construção de uma atmosfera que se assemelhe com a de um pesadelo para construir um suspense psicológico tenso e esteticamente atraente. Diante do promissor material que tinham em mãos, o tiro não chegou a sair pela culatra, mas entre altos e baixos, o resultado final acaba sendo bastante irregular.
Light Turner (Nat Wolff) é um adolescente inteligente, introspectivo e imaturo que ganha de presente do destino o “Death Note”, o tal “Caderno da Morte” que lhe dá o poder de escolher quem deve morrer desde que ele escreva o nome das suas vítimas em suas páginas. Através da interferência de Ryuk (voz de Willem Dafoe), uma espécie de Anjo da Morte, Light se deixa influenciar, agindo como uma espécie de Justiceiro ao lado de Mia (Margaret Qualley), sua paixão platônica, porém ele sentirá na pele que ter o poder sobre a vida das pessoas não é uma tarefa das mais simples assim. A premissa é estabelecida de maneira absurda desde o primeiro momento já que o livro literalmente cai do céu para as mãos de Light, sendo que o roteiro do trio parece ter ciência disso já que apresenta Ryuk como um demônio dotado de um divertido senso de humor negro, que devora maçãs, jogando-as em qualquer lugar e que faz questão de debochar das próprias regras que estão escritas no caderno, como se ele mesmo não as levasse a sério, embora leve já que soa ameaçador quando necessário.
A partir do momento que o roteiro estabelece a dinâmica entre o que Light escreve no caderno e o “modus operandi” de Ryuk, a comparação com a proposta de filmes como “Brainscan – Jogo Mortal” ou a série “Premonição” é inevitável. Aqui, o estabelecimento da premissa, no entanto, ocorre de maneira acelerada já que a execução da primeira vítima não demora, através de uma série de coincidências que culminam em uma decapitação, assim como a passagem de tempo que mostra a ascensão de Light ao posto de Justiceiro, sob a alcunha de Kira, e até mesmo a introdução de L (Lakeith Stanfield), uma espécie de agente especial que se encarrega de descobrir o verdadeiro responsável por essas mortes em série. Embora seja uma introdução ilustrada de forma dinâmica, a sensação que se tem é que o roteiro perdeu a oportunidade de se aprofundar um pouco mais no que havia de mais intrigante e complexo em sua abordagem a partir dos questionamentos morais, dos anseios e das dúvidas de Light e Mia, por exemplo.
Se inicialmente L é mal introduzido como uma figura misteriosa e extravagante dentro do realista contexto policial (ele adora comer doces e parece não dormir devido o alto nível de açúcar presente no sangue), a partir do momento que a disputa entre ele e Light se transforma em um jogo de gato e rato, mesmo que entre dois jovens instáveis, os resultados são melhores pela condução das reviravoltas por parte do roteiro já que um precisa estar à frente do outro e também em termos de direção já que Adam Wingard tem a oportunidade de criar sequências de tensão, como as que envolvem os agentes do FBI ou o destino do secretário oriental de L, e até mesmo outras mais energéticas no que se refere à ação, como em uma sequência de perseguição a pé ou no bom clímax que se passa em uma montanha-russa. O diretor de fotografia David Tattersal sabe explorar diferentes variações de cores nas sequências diurnas e noturnas, especialmente aquelas cuja locação simula o Japão ou durante um bom duelo de diálogos entre Light e L que se passa dentro de uma lanchonete, porém a qualidade do trabalho se torna mais discutível mesmo durante as aparições de Ryuk. Se por um lado, ele e Wingard acertam em revelar o mínimo possível da sua natureza física, o que faz com que os ambientes sejam tomados pela falta de luz, refletindo apenas a claridade dos seus olhos malignos, sempre que a câmera busca um close da entidade é como se esforço se tornasse em vão, pois chama mais a atenção para o nível fraco dos efeitos especiais. Seria mais inteligente se o espectador mal visse quem era Ryuk e/ou se fosse possível apenas ouvir a sua voz até porque o trabalho de Willem Dafoe por si só já é assustador e horripilante, na medida certa, como somente ele é capaz de fazer (a voz já seria suficientemente marcante sem a necessidade de se materializar uma presença física).
Nat Wolff é um jovem ator bastante talentoso e aqui precisa se equilibrar entre as diferentes versões de Light, como um jovem perturbado por uma presença maligna desconhecida, vide a sequência que se depara com Ryuk pela primeira vez e reage com autenticidade e escandalosamente assustado. Ou quando se deixa afetar pelo poder que tem em mãos, mas por acreditar que age de maneira correta, porta-se como alguém justo, racional e idealista, mostrando segurança, especialmente nos embates com Mia e Ryuk. Porém, ao chegar nos momentos em que se mostra mais obcecado e transtornado pelos efeitos colaterais da influência do caderno é justamente quando sua atuação se torna mais caricata e irregular, especialmente no final do segundo ato quando Wolff emula uma versão jovem e cartunesca de um Nicolas Cage em fase ruim. Essa mesma oscilação atinge os outros nomes do jovem elenco. Margaret Qualley se mostra uma jovem atriz promissora, mas a sua personagem parece agir de acordo com a necessidade do roteiro, logo as suas mudanças de postura e comportamento acabam favorecendo a atriz quando precisa evocar ingenuidade, fragilidade e/ou sensualidade, mas quando Mia apresenta uma postura mais agressiva, a jovem atriz já não confere a credibilidade necessária para a personagem naquele momento. Já Lakeith Stanfield parece se sair melhor quando L mantém parte do seu rosto coberto já que precisa explorar o tom da voz e a expressividade dos olhos. Quando o personagem perde esse tom de mistério, ele acaba se tornando uma caricatura de si mesmo e a atuação de Stanfield acaba deteriorando, mesmo que a sequência na lanchonete ofereça um bom duelo de atuações entre ele e Wolff.
Contando com um terceiro ato que explora o melhor que a premissa do filme tem a oferecer e contando com dois saborosos momentos envolvendo músicas românticas da década de 80, “Death Note” é um filme irregular e incompleto que mesmo desperdiçando parcialmente o seu potencial ainda assim é capaz de manter o interesse até o final. Não deixa de ser igualmente irônico e debochado que a sensação que se tem é de que o filme é uma verdadeira montanha-russa de emoções, qualidades e defeitos, algo que certamente faria com que Ryuk risse debochadamente da nossa cara.
“Onde Está Segunda?” é uma ficção científica que traz em seu pano de fundo um futuro distópico em que a lei do filho único alcançou uma escala global como uma forma de controlar a superpopulação no mundo que vive também uma crise de alimentos, logo uma família com irmãos não é permitida em função da política de alocação estabelecida por Nicolette Cayman (Glenn Close) que promete que os filhos excedentes serão mantidos em criogenia até que a ordem natural do mundo se restabeleça. Dentro dessa realidade, Terrence Settman (Willem Dafoe) se vê na obrigação de esconder suas setes netas, após a morte da sua filha durante o parto, com o objetivo de ensiná-las técnicas de sobrevivência para que não sejam descobertas e dando a cada uma delas o nome de um dia da semana como uma forma delas se organizarem dentro de uma rotina.
Após 30 anos de sigilo, as sete irmãs (vividas por Noomi Rapace) se veem dentro de um impasse a partir do momento que Segunda desaparece sem deixar vestígios, fazendo com que o segredo delas seja ameaçado, inserindo-as dentro de uma conspiração que vai se revelando cada vez mais íntima no decorrer da narrativa. O roteiro escrito pela dupla Max Botkin e Kerry Williamson estabelece o contexto, mas não tem a pretensão de fazer com que a história seja um manifesto a respeito do tema da superpopulação. A falta de problematização sobre o assunto não impede que o filme seja apreciado, o que permite que o diretor Tommy Wirkola faça com que “Onde Está Segunda?” seja um thriller de ficção-científica extremamente dinâmico e eficiente em que se destacam especialmente uma crua sequência de luta que se passa dentro do apartamento das irmãs e outra que envolve uma longa e entrecortada perseguição a pé. Aliado a uma fotografia fria e impessoal e um trabalho de direção de arte sutil e sofisticada, a trama possui três atos muito bem definidos pelo roteiro e a direção só peca pelo exagero na estereotipização dos vilões e seus capangas, quase sempre filmados em pose e em câmera lenta.
Estabelecendo a interação das sete protagonistas de maneira competente, salvo alguns momentos em que os efeitos especiais se tornam mais chamativos e distrativos, Wirkola conduz as sequências de luta com a crueza necessária, respeitando a personalidade de cada uma das personagens, e as sequências de ação conseguem mesclar a tensão com uma montagem vibrante, sem soar esquizofrênica, até mesmo quando a trilha sonora não consegue ser tão imponente quanto se pretendia. A atriz Noomi Rapace tem a sua disposição um palco para explorar as mais diferentes facetas de cada uma das personagens, explorando as mais diversas nuances, sem deixar de transparecer a delicadeza, a melancolia e/ou a força emocional de cada uma delas. A jornada do filme funciona muito através da jornada dramática das personagens, o que recai muito sobre a qualidade do trabalho e da entrega de Noomi Rapace seja em sua dedicação física assim como na carga emocional que ela deposita em suas composições, logo ela realiza um show à parte.
A evolução da narrativa não está isenta de falhas e furos haja vista que a própria premissa possui a sua dose de conveniências, seja ao estabelecer o parto de sétuplos que assumem o nome de uma mãe que em vida já possuía um registro ou até mesmo a ideia dos nomes pelos dias da semana (o teste começa pela Quinta e a trama gira em torno da Segunda, ou seja, que diferença faz?). A ideia de inserir as personagens como uma bancária também não faz jus à promessa de ser uma profissão que atenderia as principais características das sete irmãs já que não se confirma, mas serve apenas para cumprir a necessidade do roteiro de introduzir uma conspiração financeira dentro da narrativa. As motivações dos vilões variam conforme a necessidade imediata do roteiro, sendo assim em um primeiro momento eles optam por dar sobrevida às irmãs para enganá-las e não chamar a atenção, porém logo em seguida eles não hesitam em disparar tiros, provocar explosões e realizar perseguições para “silenciá-las”, apesar de promover o caos por consequência. Ainda assim, o impacto dos momentos dramáticos provocados por cada catarse envolvendo as personagens não chega a ser totalmente prejudicado por essas escolhas controversas.
Funcionando como um ótimo filme de ação, “Onde Está Segunda?” possui a sua dose de problemas e não faz muita questão de escondê-los, porém como filme de gênero cumpre muito bem a sua missão e ainda conta com performances inspiradas de Noomi Rapace para fazer com que a produção se destaque, tenha personalidade própria e coloque-se acima da média. Se o filme perde na abordagem pela falta de profundidade temática, ganha pontos ao fazer muito bem aquilo que se propõe e traz de melhor já que em termos de energia e ação, “Onde Está Segunda?” não deixa nada a desejar. Além disso é sempre bom ver uma boa ficção científica que por mais futurista que seja ainda assim consegue se sustentar com base em valores e emoções humanas e universais que independem do tempo em que se passa a história.
Depois de duas ótimas temporadas de “Demolidor”, duas gratas e razoáveis surpresas com “Jessica Jones” e “Luke Cage” e uma decepção com a fraca temporada de estreia de “Punho de Ferro”, os heróis do universo Marvel construído na plataforma Netflix se reúnem para combater uma nova ameaça em Nova Iorque na série “Os Defensores”. Encarregando-se de reapresentar os personagens mesmo no meio de suas jornadas pessoais (até para não espantar o espectador que não conseguiu acompanhar as séries próprias de cada um em sua totalidade), essa primeira temporada caminha em uma jornada tão eficiente quanto genérica, tão competente quanto conservadora, apostando muito mais na interação forçada entre estes quatro improváveis heróis do que propriamente na construção de uma temática arrojada ou que vá além do foi oferecido até aqui. Não chega a ter um resultado ruim, em seus momentos mais fracos flerta com um nível de frustração apenas moderado, mas dentro de um quadro geral os oito episódios mantém um bom e aceitável nível de qualidade.
O roteiro de “Os Defensores” insere os planos da nova vilã Alexandra (Sigouney Weaver), vulgo Tentáculo, e tem a preocupação de inicialmente fazer com que personagens secundários de cada uma das séries surjam de maneira bastante orgânica em núcleos diferentes do que estávamos acostumados e à medida que a trama avança, a trajetória dos quatro protagonistas vai se aproximando, inicialmente em pares até que eles finalmente se encontram. O estilo da direção, o tom da fotografia e da montagem adotados em cada um dos núcleos respeita a linguagem adotada em cada uma das séries, o que facilita a identificação visual e da personalidade de cada um dos personagens. Embora algumas transições de núcleo sugiram falta de acabamento por parte do roteiro, a estrutura macro utilizada para promover essa reunião se mostra bem desenhada, afinal tudo funciona no seu devido lugar, cumpre a sua missão e ainda culmina com um clímax muito bem encenado e ensaiado que resulta em uma sequência de luta bastante dinâmica, apostando em cortes falsos e movimentos circulares de câmera para simular um plano-sequência, algo que se repete e funciona muito bem também em outros momentos, inclusive no clímax da temporada.
A dinâmica entre Matt Murdock (Charlie Cox), Jessica Jones (Krysten Ritter), Luke Cage (Mike Colter) e Danny Randon (Finn Jones) funciona desde o primeiro encontro, especialmente para estabelecer as diferentes personalidades (o receio de Matt, o deboche de Jessica, o pavio curto de Luke, a ingenuidade de Danny), quase sempre apostando no bom humor (Matt usa o cachecol de Jessica Jones para cobrir seu rosto e os demais reconhecem o quão ridículo isso é; o título de “Punho de Ferro Imoral” soa tão ridículo como de fato é, embora o próprio não se dê conta). Ainda que Jessica ressinta a falta de um estilo característico de luta nas sequências em que todos estão em cena, haja vista que ela não é uma lutadora (embora seu estilo funcione melhor no clímax da temporada), os demais dão conta do recado e cada um mostra o seu valor, a sua técnica, a sua identidade no campo da ação. De maneira geral, a montagem não seja a comprometer, valorizando a agilidade e a velocidade dos golpes desferidos, ainda que em alguns momentos atrapalhe com certos cortes mais bruscos, como na sequência em que ocorre em um estacionamento subterrâneo com seis personagens em ação. Naturalmente, os heróis acabam sendo liderados por Stick (Scott Glenn) até porque o final da segunda temporada de “Demolidor” o colocava no centro da conspiração mitológica que serve de base para a narrativa dessa temporada de “Os Defensores”, o que torna fácil a associação com o núcleo de Danny que por sua vez acaba sendo o fio condutor da narrativa (para o bem ou para o mal). A aproximação de Jessica Jones se dá em função da sua atuação como detetive para investigar o sumiço de um arquiteto a pedido de uma esposa e filha desesperadas enquanto que a de Luke Cage se dá por causa do seu apelo com a comunidade do Harlem através da figura de um garoto aliciado para o crime, ou seja, a ligação de ambos ocorre mais através de eventos secundários.
A evolução natural dos eventos não impede que existam alguns furos, afinal se Stick era o último soldado do exército que protegia Punho de Ferro por que ele não se encarregou de fazê-lo diretamente ao invés de se aproximar inicialmente de Matt? O mesmo vale para a própria motivação em torno do Punho de Ferro que muda de acordo com a necessidade imediata do roteiro, ora agindo como aliado, ora como chave, ora como uma arma que não pode cair em mãos erradas, fazendo com que a trama se torne redundante e prisioneira desse mérito eventual ao passo que em diferentes momentos repete-se a mesma situação de refém da situação, inclusive envolvendo as pessoas mais próximas dos heróis. Apesar da boa presença de cena da ótima Sigouney Weaver como Alexandra (e a sua participação não vai muito além disso), o time de vilões reunidos em “Os Defensores” não faz jus as maiores virtudes da série. Madame Gao (Wai Ching Ho), por exemplo, surgiu de maneira misteriosa e impiedosa em “Demolidor”, tornou-se uma vilã genérica, uma mera caricatura do que já foi um dia em “Punho de Ferro” e aqui se apresenta apenas como uma capanga qualquer, sem apelo algum. Qualquer traço de complexidade dramática de Elektra, seja como “Céu Negro” ou como potencial romântico de Matt, fica prejudicado pela interpretação monocromática da limitada Elodie Young ao passo que dois novos vilões, Sowande (Babs Olusanmokum), conhecido como “Chapéu Branco“, e Murakami (Yutaka Takeuchi), um antagonista que só fala em japonês, embora seja compreendido pelos demais, são mal introduzidos e se apresentam como adições inexpressivas e infrutíferas. Bakuto (Ramon Rodriguez) que já havia dado o ar da graça em “Punho de Ferro”, mas sem dizer ao que veio, mantém o mesmo fraco apelo.
Em termos de diálogos, os questionamentos e a interação entre os heróis ocorrem de maneira coerente com a personalidade de cada um, apesar de algumas redundâncias e da quantidade reduzida de diálogos expositivos. Outros diálogos possuem qualidade mais discutível, especialmente pelas incontáveis vezes em que expressões genéricas como “nós estamos do mesmo lado” ou “quanto menos você souber, melhor será” são utilizadas para tentar explicar o que está acontecendo de maneira genérica, pelo caminho mais fácil. A trilha sonora é composta por melodias que remetem a outras já ouvidas nas séries anteriores, logo a sensação de dèja vu é inevitável, ainda assim a música-tema que serve de abertura não deixa de ter o seu apelo misterioso e grandioso assim como merece destaque um momento em que Matt Murdock inicia uma melodia em um piano até ser interrompido e a trilha sonora assume essa mesma continuidade melódica. Em contrapartida, o uso de um rap em um momento-chave do clímax da ação em um dos últimos episódios da temporada soa totalmente deslocado e inapropriado. O fato da trama da temporada girar parcialmente em torno da importância de Punho de Ferro não deixa de ser o calcanhar de Aquiles de “Os Defensores”, afinal mesmo que Danny tenha seu potencial cômico alavancado, especialmente com a sua boa interação com Luke Cage, não chega a ser bom o suficiente para fazer com que o personagem se torne mais simpático e/ou empático. A falta de carisma e talento de Finn Jones não contribui a favor da narrativa ainda que não comprometa o apelo da série como um todo e nem prejudique a mitologia dos outros personagens. Mike Colter é um poço de carisma mesmo que Luke Cage seja eventualmente alçado a condição de coadjuvante dentro da série com um campo de atuação bastante reduzido. Krysten Ritter continua sendo uma Jessica Jones irresistível com o seu estilo de humor debochado e politicamente incorreto, funcionando muito bem na parceria com Matt Murdock, sendo responsável pelas melhores tiradas, enquanto que cabe a Charlie Cox e o seu Demolidor servirem como o centro emocional da narrativa. A sua preocupação com o impacto das ações de heroísmo do seu personagem com relação às pessoas ao seu redor são extremamente legítimas, inclusive na sua relação com Elektra que funciona muito mais pelos esforços de Cox do que em função do apelo sustentado por Young, como já comentado.
O desfecho de “Os Defensores” tem um problema central que vai de encontro com aquela máxima de solucionar problemas de uma trama sobrenatural e/ou espiritual e/ou filosófica através da utilização de tiros, socos, lutas e explosões, o que não deixa de ser uma tremenda contradição, porém o investimento da série na dinâmica dos personagens mostra que funcionou pelo senso de preocupação coletiva e de camaradagem entre seus membros que foi construída até alcançar o seu clímax, ainda que haja indícios que eles voltarão a seguir em carreiras solo antes de uma nova reunião. Eficiente e moderadamente competente, mesmo que não se destaque em comparação às outras (com exceção da fraca primeira temporada de “Punho de Ferro”), a sensação que se tem é que a primeira temporada de “Os Defensores” é apenas o primeiro “round” de uma luta pela qual vale a pena brigar.
O diretor e roteirista Christopher Nolan tem um filmografia competente e respeitável, embora esteja muito longe de ser uma unanimidade, porém ele coloca mais uma vez sua inteligência, criatividade e ambição artística à prova com este drama de guerra que narra os eventos que se passaram durante um cerco a 400 mil soldados europeus durante a 2ª Guerra Mundial na praia de Dunkirk e que precisaram resistir aos ataques alemães feitos por terra e pelo ar com a esperança de sobreviverem até a chegada de tropas aliadas. Sem construir nenhum vínculo emocional com os personagens, a tarefa de Nolan parece se resumir à ambientação de um cenário de guerra onde impera o medo e a tensão já que o filme se revela meramente o “meio” de um filme que tinha um potencial muito maior, mas que simplesmente não disse ao que veio.
Sem se preocupar em questionar o propósito da guerra, a narrativa de “Dunkirk” já se encarrega de colocar os personagens em meio ao conflito, logo não existe nenhum período de preparação ou apresentação que ofereça ao espectador um apelo maior ou mais sofisticado que o básico instinto de sobrevivência dos soldados, logo o filme acaba se tornando uma experiência muito mais sensorial do que emocional. Tecnicamente, Christopher Nolan se cerca de uma equipe extremamente competente, sendo que neste filme os efeitos sonoros são aqueles que mais se destacam já que o processo de imersão do espectador na história funciona muito através da força e do impacto dos sons que cercam os soldados já que a maior parte das ameaças é percebida pelo barulho dos tiros, bombas ou das manobras aéreas dos aviões inimigos, ou seja, daquilo que está ao redor e/ou não se vê totalmente. Essa construção orgânica de um ambiente de caos e de terror torna até secundária e/ou aceitável a decisão de Nolan pela falta de sangue para favorecer uma classificação etária menor para o filme, afinal o poder da sugestão pode ser perfeitamente equiparável ou até mesmo mais eficiente do que a exposição sumária (em suma, não é algo que prejudica a experiência de imersão). A trilha sonora de Hans Zimmer também possui notas que remetem a essa inquietação constante com acordes pouco convencionais e através de composições nervosas e inquietantes que tornam a atmosfera ainda mais angustiante. A belíssima fotografia acinzentada, mas que também explora o medo e o isolamento nas sequências noturnas, é muito bem realçada pelo competente trabalho de Hoyte Van Hoytena.
O roteiro escrito por Christopher Nolan tem a difícil missão de se equilibrar através de três linhas narrativa que possuem tempos de duração distintos, mas que são contados paralelamente, o que muitas vezes causa uma dinâmica atemporal saudável, já em outros momentos se torna confusa, especialmente quando alterna sequências de dia e à noite e/ou envolvendo ações do passado com as do presente de determinados personagens. Isso faz com que a montagem de Lee Smith seja bastante comprometida já que os cortes entre um núcleo de ação e outro nem sempre encontram um paralelo à altura ao que estava sendo visto, logo a tensão que em determinado momento torna-se urgente, como durante uma sequência dentro de um barco ou uma ação de interceptação aérea, acaba sendo comprometida por um corte abrupto até ser devidamente retomadas instantes depois. Em contrapartida é admirável a opção de Nolan em evitar a espetacularização da tragédia já que ao optar por colocar a câmera no mesmo nível dos soldados quando acompanhamos o naufrágio de um navio ou a explosão do mesmo, não há nada de cinematográfico e/ou excitante já que o evento é acompanhado de maneira melancólica, sem um pingo de adrenalina e o que se ouve são apenas os gritos e as lamentações dos soldados em que se destaca a sequência em que um determinado personagem luta pela vida, resistindo a um afogamento, enquanto o mar é preenchido por fogo em decorrência da contaminação deixada pelo óleo de um navio abatido.
Ainda assim, não existe em “Dunkirk” nenhum elemento marcante e/ou destacável que já não tenhamos visto em outros filmes de guerra e até mesmo sendo realizados com muito mais competência do que neste aqui. O apelo dramático entre os personagens é rasteiro, seja ao invocar o sentimento de camaradagem entre os soldados, de patriotismo entre as tropas ou até mesmo diante da aposta no dramalhão, como quando explora a trajetória de um jovem inseguro em busca de um sentido para sua vida. O elenco que conta com uma série de jovens atores pouco conhecidos e pouco carismáticos ao lado de nomes mais consagrados como Mark Rylance, Kenneth Branagh, Tom Hardy e Cilliam Murphy pouco tem a fazer com o pouco que tem em mãos. Logo, Christopher Nolan acaba realizando o seu filme mais medíocre e menos ambicioso, o que não deixa de ser uma tragédia já que é incapaz de fazer jus ao apelo da própria história que pretendeu retratar através do filme.
“Invasão Zumbi” é uma produção sul-coreana que traz frescor ao subgênero dos filmes de zumbi com uma mistura quase perfeita de terror, drama e comédia. O filme revitaliza a fórmula da narrativa clássica envolvendo os zumbis, explorando a tensão e o medo de situações-limites, e recicla os clichês sem ter medo de apostar em estereótipos quando foca na dinâmica entre os personagens e no melodrama rasgado e escancarado que jamais soa pedante ou piegas demais, além de ter um fôlego cômico muito bem dosado. Em suma, “Invasão Zumbi” não é um filme revolucionário, mas é dinâmico e extremamente competente no que se propõe a fazer.
Escrito pelo diretor Sang-ho Yeon ao lado do coroteirista Joo-Suk Park, o roteiro de “Invasão Zumbi” acompanha uma série de personagens lutando pela sobrevivência durante uma viagem de trem de Seul até a cidade de Busan em meio à escalada de uma contaminação sem precedentes que vem transformando pessoas em zumbis. Através de estereótipos muito bem definidos (seja para criar simpatia, asco ou torcida por uma redenção), a narrativa estabelece rapidamente a moral, a motivação e o caráter dos personagens, logo não fica difícil entender qual será a função básica que cada um desempenhará na trama. Isso permite que o roteiro vá estabelecendo a catarse do cerco zumbi ao trem de maneira tensa e crescente, oferecendo inicialmente pequenas pílulas dos ataques do lado de fora da composição até que o caos literalmente se instaura do lado de dentro, investindo na movimentação rápida e assustadora dos zumbis quando avistam sua vítima humana e a realização do seu ataque feroz quase sempre ilustrada de maneira direta e impactante, especialmente pelo choque, pelo apelo visual da maquiagem e pelos animalescos efeitos sonoros. Os efeitos especiais não comprometem, mas respondem pelo aspecto técnico de qualidade mais limitada, especialmente quando pretende ilustrar vidros sendo quebrados e/ou explosões.
Sang-ho Yeon constrói um clima palpável de medo e tensão justamente ao investir em sequências que propõem a quebra de expectativa de uma situação em que os personagens aparentemente estão sob o controle dela até que tudo muda subitamente, sendo tomado pelo terror, como quando precisam atravessar os corredores do trem às escuras durante a passagem por um túnel. O alívio provocado pelas incursões cômicas é eventual, porém serve para conferir certa leveza aos personagens e de certa forma torná-los ainda mais empáticos ao espectador já que quando aposta no drama quase sempre as escolhas do roteiro são voltadas a situações de forte potencial trágico, como quando um grupo é atacado dentro de um vagão sem a possibilidade de salvação que, por sua vez, provoca um irregular e rasteiro estudo de caso sociológico. Curiosamente, “Invasão Zumbi” acaba sendo um filme extremamente competente ao utilizar elementos dramáticos que poderiam tornar piegas a evolução da narrativa, porém o filme jamais se torna refém da armadilha, como quando utiliza o apelo de uma música cantada pela pequena Soo-an (Su-an Kim) em três momentos distintos de maneira bastante sensível e eficiente. Aliás, a dinâmica entre ela e o pai negligente (Yoo Gong) assim como a relação entre o casal Sang-kwa (Dong-seok Ma) e Seong-kyeong (Yu-mi Jung), à espera do primeiro filho, são responsáveis pelos momentos mais tocantes e emocionais do filme.
“Invasão Zumbi” ainda faz o bom uso dos figurantes já que nas sequências mais tensas de perseguição, o medo e a tensão tornam-se urgentes justamente por não se criar a falsa impressão de uma horda digital e ainda existe a preocupação, em pelo menos dois momentos distintos, em investir no processo de desumanização das vítimas, o que não deixa de funcionar como duas passagens de beleza filosófica e poética, mesmo em meio ao caos. Fazendo jus aos melhores filmes do subgênero, “Invasão Zumbi” é um suspense tenso e angustiante que sabe explorar o potencial da premissa e ainda oferece drama e humor na medida certa para balancear o seu excelente resultado final.
“Os 13 Porquês” é uma sensível e irregular série norte-americana que tem os adolescentes como público-alvo principal, mas que possui um alcance que atinge muitas outras gerações de espectadores, inclusive pais e professores, ainda mais envolto de tanta polêmica por causa da premissa que parte do plano realizado pela personagem central que envolve suicídio e vingança. Hannah (Katherine Langford) é uma jovem de dezessete anos que resolve dar um fim em sua vida, mas sem antes gravar treze fitas que são remetidas a membros do seu círculo social que foram responsáveis, direta ou indiretamente, pela sua trágica, imatura e precipitada decisão.
A estrutura narrativa da série é bastante problemática porque ela parte de um jogo de vingança em que a personagem brinca e manipula seus algozes para justificar seu suicídio, porém ela e a própria série parecem não reconhecer a insensatez e a fragilidade impostas por esse contexto. Cada episódio se encarrega de escolher um alvo e, através da narração de Hannah em fitas cassetes, ela descreve a sua história de vida que é apresentada em marcantes “flashbacks”, sendo que o seu atual ouvinte é o também adolescente Clay (Dylan Minnette), seu amigo e uma espécie de admirador platônico. Enquanto ouve as fitas, ele se envolve no drama de Hannah e nos dilemas morais e éticos dos seus colegas de Ensino Médio que provocaram os gatilhos que a levaram a cometer tal medida extrema contra sua própria vida. Essa postura de justiceira espiritual faz com que em alguns momentos Hannah se coloque como uma falsa heroína, acima do bem ou do mal, como se ela jamais assumisse a responsabilidade pelas suas próprias ações.
Essa postura faz com que a série seja tomada por um ar de mistério repleto de altos e baixos, dependendo muito do nível e da qualidade da abordagem dos dramas de cada um dos personagens, logo se em um determinado episódio há uma legítima complexidade dramática envolvendo um jovem atleta de família disfuncional ou de uma adolescente traumatizada que enfrenta problemas com drogas e alcoolismo, o mesmo já não se pode dizer quando o centro da narrativa é um garoto impulsivo e de inteligência limitada ou de outro que não sabe lidar com a rejeição do sexo alheio pela sua própria arrogância e prepotência. Ainda assim, o episódio mais fraco é o que se sustenta pelo peso da culpa por causa de um acidente de trânsito que soa totalmente deslocada do eixo central da trama pelo seu excesso de coincidências e conveniências. E até mesmo os episódios finais que contam com os eventos mais chocantes e pesados assim como suas implicações emocionais decepcionam por serem eclipsados em comparação aos elementos misteriosos e investigativos da trama, ainda que cada personagem tenha resoluções diversificadas e independentes. Essas oscilações fazem com que o pretexto da série de prolongar a experiência de ouvinte de Clay se torne menos ou mais arrastada justamente pelas convenções que o roteiro precisa abraçar para justificar ou não essa estrutura. Em alguns momentos, a série parece brincar com o ritmo de audição de Clay já que enquanto ele parece reservar um dia e/ou uma semana para cada lado da fita (o que representa um episódio da série), outros chegam a dizer que ouviram todas as fitas em uma única noite (e duas vezes cada) ou sequer ouvi-las por completo (ainda assim não deixa de ser estranho que Clay pareça confuso com a sua influência no destino de Hannah como se ele mesmo não soubesse o que viveu ao lado da amiga). Ao mesmo tempo é inconcebível a falta de curiosidade do Clay em não avançar no processo de audição em alguns momentos assim como em outros se torna compreensível o seu abandono diante do inconformismo de algo que acabara de escutar e que precisa ser tratado de imediato.
Problemas e conveniências à parte, a série é muito delicada, sensível e corajosa ao abordar dilemas adolescentes e do universo do Ensino Médio com naturalidade e sem nenhum pudor já que, além da depressão e do suicídio, temas como “bullyng”, estupro, homossexualidade, alcoolismo, depressão, entre outros, são muito bem estabelecidos, mesmo quando retratados em segundo plano ou como pano de fundo do episódio. Além dessa proposta, “Os 13 Porquês” não deixa de ser uma série que dialoga fortemente com as experiências emocionais da adolescência, como os diferentes tipos de amizades e de tribos existentes dentro do ambiente escolar, o primeiro beijo, a primeira decepção amorosa, a primeira relação sexual, a alegria e a felicidade provocadas pelo sentimento de pertencimento ou as angústias e os medos enfrentados pela não aceitação dentro de um grupo social. Estes conflitos fazem parte do universo de Hannah e, em maior ou menor grau, servem para que a série explore uma infinidade de questões que vão muito além do suicídio da personagem e que possuem igual importância e relevância narrativa, logo excetuando os excessos cometidos pela manutenção do mistério em torno das fitas, o tom adotado pela série a respeito dos conflitos entre os jovens é muito mais assertivo do que meramente um pretexto para soar gratuito e/ou polêmico. Existem alguns diálogos muito bem ilustrados entre os próprios adolescentes assim como entre eles e seus pais que realçam o apelo positivo e propositivo da série, porém um aspecto que “Os 13 Porquês” reforça é o perigoso distanciamento que jovens e pais se impõem até de maneira inconsciente seja pela necessidade de preservação da intimidade adolescente e/ou pela imposição da autoridade materna e paterna.
Essa vasta abordagem faz com que Hannah seja submetida a uma série de situações constrangedoras que em certos momentos chegam até a soarem forçados e exagerados (em determinado momento ela chega a ser perseguida por um “stalker” ao mesmo tempo em que vive uma experiência íntima ao lado de uma amiga, logo após ser alvo de um boato que manchou a sua reputação, por exemplo), o que acaba potencializando o drama da personagem que vive todas essas experiências de maneira silenciosa, praticamente solitária e com uma completa alienação dos pais que são retratados com vítimas impotentes e colaterais da tragédia que vitimiza a filha. A jovem Katherine Langford realiza um ótimo trabalho, trazendo um carisma irresistível e uma intensidade dramática admirável para uma personagem que é responsável por decisões irritantes e questionáveis que muitas vezes faz com que Hannah se distancie do espectador, porém o talento e o potencial artístico demonstrado por Langford reforça muito mais o sentimento de empatia e de solidariedade que se tornam fundamentais para a compreensão dos conflitos internos de Hannah, ainda que não legitime todas as suas atitudes, vale sempre a pena reforçar. O jovem Dylan Minnette também realiza um ótimo e sensível trabalho porque Clay serve como uma espécie de agente catalisador dos dramas vivenciados por todos os personagens, inclusive deixando de lado até mesmo os seus próprios porquês em função da postura tímida e introspectiva do seu personagem, mas sem jamais deixar de se apresentar como um garoto franco, íntegro e honesto. De maneira geral, o elenco jovem é muito talentoso e eficiente, além de realçar a representatividade de raças e gêneros que é uma decisão cada vez mais digna e relevante dentro da indústria cultural mundial ainda que não represente a resolução de todos os problemas.
Explorando sentimentos nostálgicos através da trilha sonora e de alguns elementos da narrativa, como as próprias fitas cassetes, ainda que de maneira irregular, ou mesmo negligenciando algumas subtramas, como as que envolvem a influência das grandes corporações na economia local ou os conflitos de interesses no processo jurídico dos pais de Hannah contra a escola, “Os 13 Porquês”, no entanto, traz uma série de diretores talentosos, sóbrios e criativos que apostam em um estilo de direção realista com reduzidos maneirismos estéticos (talvez apenas um excesso de câmera lenta aqui e ali), além de contar com um trabalho de fotografia sofisticado e apurado e efeitos de transição dinâmicos e orgânicos em que ambos servem para estabelecer as duas linhas temporais da narrativa (as mudanças físicas dos personagens também são críveis mesmo que não o tempo todo, como o machucado na testa de Clay, por exemplo). Dessa forma, “Os 13 Porquês” se apresenta como uma série imperfeita, mas de extrema relevância que merece ser vista e discutida, apesar de qualquer polêmica e/ou distorção que a série tenha provocado. É uma série que merece fazer parte de bate-papos entre pais e filhos, de discussões e trabalhos promovidos por professores e alunos assim como da comunidade de maneira geral, inclusive do Estado, afinal a depressão e o suicídio são temas de saúde pública que merecem ser debatidos através de políticas assistenciais. Essa aproximação do tema com o público em geral, apesar de algumas distorções delicadas, é fundamental para que a postura de Hannah jamais seja vista como uma saída natural e/ou corajosa e/ou que deve ser copiada e imitada. Logo, por mais que a série cometa seus próprios pecados, a experiência jamais deve ser vista como algo em vão assim como é a vida que ganhamos de presente a cada dia.
“This Is Us” é uma série emocional e emocionante, sensível e tocante, agridoce e delicada que acompanha personagens em diferentes épocas e que estão intimamente conectados. O primeiro episódio se encarrega de apresentá-los com uma condução leve no humor e sóbria no drama, surpreendendo no final com a conexão temática entre os personagens que vai muito além do simples fato de comemorarem seus aniversários na mesma data. E esse mesmo tom acompanha a série durante toda a temporada, porém as nuances dos seus elos merecem ser experimentadas paulatinamente, gradativamente, logo seria um crime entrar em maiores detalhes a respeito. A partir dessa apresentação, cada episódio se encarrega de oferecer mais elementos que permitem a construção de uma espécie de memória emocional de cada um dos personagens e que gradativamente vai tornando-os mais íntimos e mais complexos. A montagem também realiza um trabalho de fundamental importância e relevância narrativa, pois muitas vezes em um mesmo episódio, em diferentes períodos de tempo, apresenta os mesmos personagens vivendo situações e dilemas semelhantes e/ou que estão ligados direta ou indiretamente com belíssimas e inspiradas transições de cena, o que amplia ainda mais a percepção emocional dos conflitos. Sob a direção geral do criador Dan Fogelman (roteirista de “Carros”, “Enrolados”, “Amor à Toda Prova”) e da dupla Glen Ficarra e John Requa (“O Golpista do Ano” e “Golpe Duplo”), “This Is Us” é provavelmente a série lançada nesses últimos anos que mais faz jus ao termo “a vida como ela é”.
“This Is Us” é uma série que explora a generosidade e a emoção à flor da pele do ser humano, o que há de melhor na humanidade, o que torna esses personagens tão carismáticos e cativantes, mas igualmente falhos e frágeis através de uma simplicidade e de um alcance narrativo tão genuíno que fica difícil não mergulhar muitas vezes os olhos em lágrimas, embora elas façam com que a percepção desse universo se torne mais límpida e cristalina. Jack (Milo Ventimiglia, ótimo) e Rebecca Pearson (Mandy Moore, ótimo) formam um jovem casal que como qualquer outro possui suas diferenças e dúvidas com relação ao futuro da relação, mas quando decidem pelo casamento, eles estabelecem uma parceria tão sólida que permite que superem qualquer adversidade e aceitem com devoção os desígnios da vida, como a inesperada e nada convencional chegada de trigêmeos. Kevin (Justin Hartley, ótimo) é um ator galante e mulherengo, mas de talento limitado que surta durante uma das gravações de uma série de humor rasteiro em ele que é o protagonista, sem saber muito bem o quer da vida, mas redescobrindo pelo caminho o que é um amor de verdade, além de aperfeiçoar a sua vocação artística. Kate (Chrissy Metz, ótimo) é uma mulher que sofre de obesidade mórbida e que já está incrédula quanto a sua capacidade de perder peso e/ou de que o mundo de alguma forma vai lhe compensar pelo que fato dela estar acima do peso, mas ao ser notada por Toby (Chris Sullivan, ótimo), outro obeso que sofre de disfunções alimentares, ela descobre a oportunidade de aceitar-se como é de verdade. Randall (Sterling K. Brown, ótimo) é um negro bem-sucedido que tem um emprego prestigiado e uma família sólida e feliz, mas que vai ao encontro do pai biológico para acalmar a sua inquietação emocional e entender as suas raízes e ao conhecer William (Ron Cephas Jones, ótimo), um artista de rua decadente que está em vias de morrer, ele se dá conta de que tem muito que aprender com aquele homem que ele tanto renegou ao longo da vida.
“This Is Us” é uma série sobre a formação de caráter e personalidade de um grupo de pessoas que através de uma melodia narrativa dramática e orgânica jamais cai no melodrama, na pieguice ou no clichê maniqueísta e vazio. É um conjunto de dramas e traumas que faz com que o painel de personagens visto na série se torne sensível aos olhos e muito próximo do coração. A fotografia consegue ser belíssima e sofisticada nos dois tempos da narrativa, apostando em tons mais opacos quando a narrativa está no passado e em uma paleta mais colorida nas histórias do presente, o que dá a série uma roupagem estética muito agradável, atraente e que combinam perfeitamente bem, ainda mais quando faz o bom uso da luminosidade e/ou de “flashes” de luz. A direção dos episódios é muito elegante e bastante sóbria, sem jamais apelar para o sentimentalismo barato, afinal os dramas e os conflitos são naturalmente fortes e fluem com extrema naturalidade, especialmente quando ligados a assuntos delicados como alcoolismo, traição, homossexualidade, obesidade, luto e divórcio. Os diálogos ao longo da temporada são tão sensíveis, maduros e complexos em toda a sua extensão dramática que transformam os personagens em figuras humanas complexas, cativantes e autênticas, logo absolutamente reconhecíveis. As metáforas e as analogias presentes entre os diferentes tempos da narrativa são sensíveis e orgânicas e até mesmo aquelas que não surgem da maneira tão sutil ainda assim são sensíveis e tocantes, pois são sustentadas por um elenco talentoso e homogêneo que transbordam uma química irradiante. E se a segunda metade da temporada resolve ampliar a abordagem da narrativa dando destaque a personagens secundários e/ou inserindo novos personagens dentro de cada núcleo, ainda assim a série não perde o seu apelo emocional. Em sua, trata-se de um maravilhoso conjunto de atuações de um elenco impecável!
“This Is Us” é uma série empática que promove uma viagem intensa e emocional na história dos seus personagens, sendo capaz de tocar tão profundamente que honra até mesmo os clichês mais batidos do gênero, mas com um poder de argumentação plenamente justificável e satisfatório, por menos recomendado que isso parecesse. É uma série que tem em seu DNA todos os ingredientes que poderia torná-la chata e enfadonha, piegas e rasteira, mas ainda assim acerta em cheio em praticamente tudo que se propõe a fazer, pois é sofisticada e autêntica em sua simplicidade de explorar temas universais e complexos, sem deixa der dramática, mas sem esconder também um otimismo contagiante. Impossível não simpatizar, impossível não se emocionar, impossível não se maravilhar com todos os acertos estéticos e narrativos que a série possui, além de contar com uma gama de personagens pelos quais vale a pena torcer e se importar. Eles são nós! Eles são maravilhosos, imperfeitos e complexos assim como nós! Eles “somos” nós!!
A segunda temporada de “Love” começa exatamente no instante em que termina a temporada anterior, ou seja, enquanto Mickey (Gillian Jacobs) discursa na frente de Gus (Paul Rust) sobre o seu vício em drogas, álcool, sexo, amor e ele a silencia com um beijo. Porém, esse seu gesto não fará com que ela mude de opinião quanto ao desejo de se afastar dele por um ano embora o destino pareça convergir para que eles fiquem cada vez mais juntos quanto mais eles parecem concordar que o melhor é que eles fiquem separados. Entretanto, Gus e Mickey não formam um casal convencional, logo essa problematização da relação entre os dois parece muito mais uma necessidade e um artifício em negar o quanto eles são especiais um para o outro e qualquer tentativa deles de impor regras ao relacionamento cai por terra já que não demora muito para que se deem conta que elas não servem para eles. E ao mostrar que os dois simplesmente não resistem a eles mesmos, cada um de acordo com seu devido motivo, ao ponto de transarem dentro do carro no estacionamento de um restaurante coreano, a série reforça mais uma vez que não está minimamente interessada em um tom politicamente correto. O que justamente faz de “Love” uma série acima da média.
Essa temporada parece ser mais um tratado de liberdade para Gus e Mickey sobre se deixarem levar pelo que sentem um pelo outro, permitindo ser felizes, como se nada pudesse estragar esse momento tão especial entre os dois (e, ironicamente, ao longo da temporada por diversas vezes isso parece acontecer em maior ou menor grau de relevância). O romantismo não está descartado na relação entre eles, mas não é à toa que eles chegam até mesmo a duvidar que algo ruim não possa acontecer para acabar com a sintonia fina entre os dois, pois antes de se conhecerem eles estavam acostumados a arruinar seus relacionamentos (e, de certa forma, eles continuam fazendo isso, embora lidem um pouco melhor, especialmente com os defeitos de cada um). Nessa temporada é também a primeira vez que ouvimos Gus e Mickey falando mais detalhadamente sobre suas famílias e dando pistas sobre a dinâmica determinante na criação dos dois, inclusive com a participação do pai dela em um dos episódios, um incorrigível trambiqueiro e mulherengo, o que serve para explicar muito do comportamento e das frustrações que ela carrega consigo. O maior ponto de conflito entre os dois parece ser mesmo a distância provocada por uma viagem a trabalho de Gus e a maneira com que eles lidam com a distância, o que acaba distanciando-os emocionalmente. A queda no final da temporada, no entanto, se dá muito mais pela necessidade de vilanizar Mickey do que propriamente ao construir mais um conflito para colocar em xeque a relação entre os dois e, infelizmente, os episódios finais levam a isso.
Paul Rust e Gillian Jacobs continuam segurando a série com muito carisma. Ele é dono de um estilo de humor que caracteriza Gus como um típico sujeito desajustado em que todas as vezes que tenta ser mais descolado acaba se dando mal. Paul Rust é carismático ao ponto de fazer uma piada sem graça envolvendo a série “Friends” e/ou o filme “Duro de Matar” e ainda assim torná-la divertida; ou legitimar a pureza de Gus ao ilustrar a sua alegria genuína ao compor uma canção para o filme “Enquanto Você Dormia” ou quando está desconfortável diante de conflitos familiares, oferecendo pequenas amostras do apelo e do alcance de um personagem que não se restringe em ser um mero “nerd” apaixonado. Já ela é uma atriz intensa que sempre traz um olhar triste e melancólico que sustenta emocionalmente uma mulher que parece andar sob uma corda bamba já que as instabilidades de Mickey são constantes, mas Gillian Jacobs também traz uma vitalidade à personagem que nos torna cúmplices da jornada de redenção que a personagem realiza ao evitar qualquer tipo de gatilho que a leve novamente para o caminho do vício, sendo que em nenhum momento duvidamos das suas boas intenções ou do quanto Mickey realmente gosta e precisa de Gus ao seu lado, sem descansar um do outro. E vice-versa.
Assim como na primeira temporada, “Love” não é uma série somente sobre Gus e Mickey, embora seja muito melhor quando foca apenas na atípica relação amorosa entre os dois. A temporada reserva espaço para investir ocasionalmente em outros personagens, como os divertidos Bertie (Claudia O’Doherty), companheira de casa de Mickey, e Randy (Mike Mitchell), um dos melhores amigos de Gus, que também vivem um relacionamento pouco convencional; ou Truman (Bobby Lee), colega de trabalho de Mickey, que se revela um tremendo carente emocional, mas em termos gerais, ambos funcionam como eventuais alívios-cômicos. A temporada também não esquece dos núcleos profissionais de Mickey e Gus, mas dessa vez a abordagem é mais reduzida, o que permite que explorem melhor as piadas, especialmente as que envolvem os clichês cinematográficos, especialmente a presença da divertida modelo e atriz Heidi (Briga Heelan) que praticamente dá o ar da sua graça em um único episódio ou as situações vividas pela precoce atriz mirim Arya (Iris Apatow), inclusive durante as gravações de um filme de ação e diante das novas aspirações profissionais de Gus. O mesmo não acontece com relação ao trabalho de Mickey, especialmente com relação à participação do terapeuta Greg Colter (Brett Gelman) que embora chame a atenção pela sua canastrice e canalhice, além da sua total incapacidade emocional de exercer a profissão, parece um tanto quanto deslocado do universo da personagem, mas felizmente a própria série se encarrega de não dar muito crédito aos conflitos que ele gera dentro da relação entre Gus e Mickey.
Apesar de não evitar os altos e baixos em seus doze episódios (dois a mais que na temporada anterior), “Love” em sua segunda temporada continua sendo uma série de comédia romântica que traz frescor a um gênero carregado de clichês e carente de originalidade, especialmente pelo charme, carisma e simpatia dos seus personagens centrais politicamente incorretos e muito bem defendidos por Paul Rust e Gillian Jacobs, dois atores talentosos e bastante generosos em cena. Se o amor não é perfeito, Gus e Mickey também estão muito longe da perfeição e justamente por isso é que se tornam personagens tão amáveis e acessíveis, afinal fazem questão de nos mostrar que embora não seja possível o “felizes para sempre”, eles fazem muito por merecer a união já que estranhamente foram feitos um para o outro.
“Logan” não é um filme sobre heróis. “Logan” é um filme sobre homens. “Logan” é um drama humano sobre sentimentos universais que se sobressaem aos superpoderes mutantes, mas que jamais deixa de ser brutal e selvagem quando necessário, fazendo jus à essência de Wolverine e ao talento e a dedicação de Hugh Jackman que encerra a sua trajetória com o personagem que alavancou a sua carreira há 17 anos. O diretor James Mangold realiza um respeitável faroeste moderno com a velha guarda mutante através de um filme emocionalmente intenso e categórico na forma como ilustra a herança de dor e de violência do seu personagem central. “Logan” é um filme ferrenho, duro e implacável como o ferro, mas que se coloca de peito aberto e escancara as feridas e as cicatrizes de Wolverine.
Ambientado em 2029, a trama de “Logan” se inicia em um período em que se acredita que há mais de 25 anos não nasce nenhum novo mutante na Terra, logo foram extintos. Dessa forma, Logan (Jackman) vive como um velho e bêbado motorista de limusine ao lado de um senil Charles Xavier (Patrick Stewart) e do moribundo Caliban (Stephen Merchant) no prédio abandonado de uma antiga companhia falida. Embora isolados do mundo, um sangrento desentendimento de Logan com um bando de ladrões de carro chama a atenção de Gabriela (Elizabeth Rodriguez), mãe de Laura (Dafne Keen), acreditando que ele é o único capaz de ajudar e compreender a natureza especial de sua filha, porém essa aproximação também desperta o interesse de Pierce (Boyd Holbrook), um mercenário contratado pelo Dr. Rice (Richard E. Grant) que acredita que assim como Laura, outras crianças ainda possuem o DNA mutante. Em “Logan”, embora o filme projete um futuro opressor para os mutantes, a jornada é muito mais intimista e o diretor James Mangold conduz o filme através de pílulas de esperança, pequenos momentos de saudosismo e/ou de reflexão, como se os personagens se aliviassem emocionalmente, mas eles quase sempre são exterminados com alguma sequência de ação e/ou violência que chega logo em seguida e sem avisar, quebrando ossos e expectativas pelo caminho.
Oferecendo o mínimo de informações e contextualizações sobre o universo em que os personagens estão inseridos, o roteiro coescrito por Mangold, a partir da sua estória, ao lado de Scott Frank e Michael Green investe pesadamente na exploração da flagelação física dos personagens mutantes, muito longe da virilidade, da inteligência ou da sagacidade vista em filmes anteriores. Eles já não são mais nem a sombra dos mutantes que já foram algum dia, como se estivessem vivendo à espera do fim de suas vidas, ironicamente, vivendo sob as sombras. Essa degradação física e emocional, especialmente de Logan e Xavier, humaniza ainda mais os personagens já que eles foram marginalizados pela sociedade e exteriorizam um dom que nesse momento mais se parece com um fardo. A ambientação proposta pelo diretor James Mangold é eficiente já que existe um clima pesado e melancólico que oprime os personagens, como se fossem sucatas revestidas de uma fotografia de tons escuros e opacos e acompanhadas de uma trilha sonora triste e sombria, além da ótima caracterização dos sofridos e envelhecidos personagens (a barba de Wolverine é carregada e já não é mais tão estilizada como antes assim como a careca de Xavier já traz alguns fios espalhados pela cabeça em um claro sinal de desleixo e da perda da sua própria identidade).
A chegada de Laura no convívio entre Logan e Xavier reacende o instinto de proteção e sobrevivência da dupla, fazendo com que em um primeiro momento “Logan” se transforme em uma espécie de “road movie” que permite uma revisitação da relação entre esses dois velhos amigos a partir desse novo olhar. Sem conseguir controlar seu poder, ainda que ele seja capaz de salvá-los em um determinado momento, mas à base de muito sofrimento, Xavier está à beira da loucura, vivendo a base de remédios, porém se antes ele se colocou na vida de Logan como uma figura paterna, agora é o seu “filho” que se sente na obrigação de cuidar do “pai”. Patrick Stewart realiza uma atuação formidável, expressando as fraquezas e as fragilidades de Xavier com um olhar sempre vazio e a voz vacilante e trêmula, logo não deixa de ser comovente que o único momento em que ele exponha um leve sorriso no rosto seja um breve instante em que ele controla a mente de alguns cavalos selvagens que escaparam no meio de uma rodovia. Após esse trabalho tão sensível e delicado já sou capaz de ficar em dúvida se ele será imortalizado por este personagem ou aquele outro da saga “Jornada nas Estrelas” que ele já fez durante tanto tempo, tamanha a sua dedicação neste aqui.
Ainda assim, Hugh Jackman é quem realiza o trabalho mais contundente neste filme. Escolhido para ser o Wolverine como segunda opção, após um acidente nas gravações de “Missão: Impossível II” que impossibilitaram que o sumido Dougray Scott assumisse as garras de Adamantium, Jackman nunca deixou dúvidas que nasceu para o papel. E essa sua vocação pode ser comprovada em todos os filmes da série “X-Men”, assumindo muitas vezes o protagonismo mesmo tratando-se de um filme de grupo de super-heróis, por menores que fossem suas aparições ou até mesmo em seus dois limitados filmes-solo anteriores. Aqui, a garra e a fibra de Wolverine ganham contornos fortes e sombrios através de uma atuação devotada e vigorosa de um ator que faz questão de reagir monstruosamente a qualquer ato de violência praticado ou golpe sofrido. Sempre com a mesma intensidade, muitas vezes transformando gritos em grunhidos, como se estivesse interpretando um animal selvagem insano e ferido, Jackman tem um trabalho marcante de entrega e faz de Wolverine uma figura brutal, mas que sempre traz uma sensibilidade comovente em seu rosto e em seus olhos toda vez que os traços da sua humanidade lutam com seu lado selvagem para fazer o bem e/ou proteger alguém. Em “Logan”, Wolverine faz isso com Xavier, com Laura, com uma família de fazendeiros que os recebem de braços abertos em sua casa e também com um grupo de crianças mutantes que estão escondidas na fronteira americana com o México e que pretende ser o destino final dos personagens.
As sequências de ação e de luta conduzidas por James Mangold são autênticas e viscerais, captando essencialmente as movimentações e os golpes dos personagens, que no caso de Wolverine já não são mais tão ágeis assim, como fica evidente já desde a sua primeira briga. O diretor faz com que as sequências se tornem fortes, brutais e ainda assim dinâmicas e compreensíveis, sem economizar na carnificina e no uso do sangue, especialmente no momento em que Logan confronta o seu clone X-23 contando com a ajuda de uma explosiva Laura, detentora de agilidade e ferocidade impressionantes. Aliás, Dafne Keen é uma gratíssima surpresa já que é uma atriz que traz consigo uma carga emocional e uma capacidade expressiva que são maravilhosas ainda mais que a sua personagem se mantém calada na maior parte do tempo, porém em nenhum momento deixamos de entender o que Laura realmente está sentindo. Extremamente convincente durante as batalhas como uma versão feminina e mirim do velho Wolverine, ela é uma figura emocional que estabelece uma importante relação com Logan que os aproximam como pai e filha de maneira orgânica, sem jamais soar piegas ou maniqueísta (quando ela o chama de pai já é em um momento de catarse absoluta). O limitado Boyd Holbrook realiza um bom trabalho como um vilão genérico que acaba se transformando mais em um mero capanga no decorrer do filme e Richard E. Grant não traz muita imponência ou periculosidade na pele do cientista encarregado de estragar os planos de aposentadoria de Logan.
Contando com um clímax violento e brutal, apesar de alguns diálogos excessivamente expositivos, “Logan” encerra o arco dramático de Wolverine, uma espécie de pistoleiro solitário que sempre esteve em um ambiente cercado de violência e que acabou se transformando em uma figura trágica, fruto desse meio, mas que nem por isso deixou de cativar. Sem jamais perder a sua humanidade, a fera incontrolável finalmente encontrou a redenção, um filme a sua altura e um desfecho sensível e simbólico como Logan/Wolverine/Hugh Jackman sempre mereceram.
“Eu, Tu e Ela” é uma série levemente divertida e politicamente incorreta sobre Jack (Greg Poehler) e Emma (Rachel Blanchard), um casal que está mais próximo dos 40 anos do que gostariam e que vive uma crise em seu casamento enquanto pensam na possibilidade de ter o primeiro filho assim como a maioria dos seus amigos e vizinhos. No entanto, a vida sexual deles está em baixa, logo Jack aceita a dica de um amigo de contratar o serviço de uma acompanhante, a envolvente Izzy (Priscila Faia), uma jovem estudante de Psicologia, porém logo se arrepende, mas sem antes despertar a curiosidade de Emma que também se encanta pela garota e acaba sugerindo que ela passe a realizar seus serviços para o casal, possibilitando um inusitado relacionamento a três.
Apesar do tema delicado e polêmico, a dinâmica entre o trio é bastante leve e divertida, logo em nenhum momento o interesse do casal pela acompanhante não se mostra palpável já que com seu bom humor ela tira Jack da sua rotina rígida e repleta de compromissos, além de trazer uma sensibilidade e uma energia sexual para a vida de Emma que até então estava escondida. Criada por John Scott Sheperd, a série nos faz acreditar que uma relação a três seria sustentável e que é a melhor saída para o marasmo do casamento de Jack e Emma, logo ela avança ao longo dos episódios por todos os estágios, iniciando pelo nervosismo e pela excitação dos programas individuais, pelo súbito e posterior interesse do casal pelo sexo a três e passando até pela improvável possibilidade de que a relação seja mantida por muito mais tempo na vida do casal e da acompanhante já que sentimentos foram divididos e compartilhados em um nível que vai muito além do mero compromisso profissional. O fato de Izzy ser uma estudante de Psicologia, assim como Nina (Melanie Papaia), sua melhor amiga e colega de profissão, permite que a série forneça alguns conceitos da área ou conselhos meramente terapêuticos sobre relacionamentos amorosos, mas que se tornam muito mais elementos cômicos já que não possuem o propósito de oferecer complexidade à narrativa, como o fato dela só se interessar por Andy (Jarod Joseph), um amigo da faculdade, apenas quando ele não lhe dá a mínima atenção.
Esse luxurioso apelo da série reside muito pelo carisma do seu trio de protagonistas a começar pela intensa e delicada atuação de Rachel Blanchard que interpreta uma mulher sensível e careta que expressa física e emocionalmente o interesse de Emma por aquela garota que não tem pudores em expressar o seu desejo sexual. É quase um retorno à sua adolescência repleta de experiências e sensações, porém Emma jamais deixa de demonstrar o seu amor, a sua lealdade e o seu carinho pelo marido, logo Blanchard se mostra bastante versátil e se equilibra muito bem entre esses dois aspectos emocionais de uma mesma mulher assim como legitima a fragilidade e confusão da personagem diante dos conflitos que se estabelecem. Priscila Faia não é uma atriz das mais talentosas, mas ainda assim funciona muito bem como Izzy, tornando-se uma grata surpresa, pois ela interpreta com personalidade uma jovem instável, repleta de altos e baixos com surtos de insegurança e autoestima, mas que legitima o interesse e a excitação do casal pelo desprendimento e pela inteligência de Izzy e mesmo assim revela traços que lhe humanizam e demonstram que ela não é tão bem resolvida como gosta de sugerir aos seus clientes. O elo fraco do trio é Greg Poehler que é um comediante simpático que traz uma feição de sujeito comum a Jack, porém embora a sua química em cena funcione ao lado das duas atrizes, ele parece ter um “timming” diferente do restante do tom da série ao evocar o jeito bobalhão do personagem, mas que só evidencia as suas próprias limitações já que ele não é um ator cômico dos mais talentosos e/ou versáteis.
O moralismo da série está presente através dos personagens que circundam a vida do trio, inclusive na figura de Nina que lida com muito mais frieza e praticidade com os dilemas do seu cargo, porém as críticas acabam se sustentando muito mais pelos erros e falhas do trio de manter o sigilo da relação e pelas atitudes dos fiscais da moral e dos bons costumes do bairro onde Jack e Emma moram, inclusive amigos mais próximos. A relativa falta de inteligência e esperteza do trio acaba sendo estimulada para que se crie o maior número de situações que o aproximem do constrangimento que geram momentos cômicos apenas razoáveis, como a vigilância de uma vizinha que desconfia da intimidade do trio, inclusive envolvendo chantagens, ou até mesmo a própria sustentação do casal ao apresentar Izzy como sobrinha dele, o que é de uma fragilidade narrativa absurda. E, considerando o fato de Jack e Emma tem nomes a zelar, seja por ele se candidatar a novo reitor do colégio particular em que trabalha ou por ela ter projetos de trabalho de sua responsabilidade que podem lhe garantir uma promoção, o choque entre a vida pública e particular dos dois torna-se cada vez mais inevitável (curioso que em nenhum momento se discute o dilema ético dela ter um projeto profissional na escola em que ele trabalha), fazendo com que os próprios se tornem moralistas e tornando a série mais aborrecida e burocrática, especialmente nos episódios finais dessa primeira temporada.
“Eu, Tu e Ela” é uma série sobre Jack, Emma e Izzy e sobre a ambiguidade de se buscar uma relação saudável através de um relacionamento a três, afinal tratam-se de adultos que sentem-se conectados íntima e emocionalmente, embora seja uma prática que não é aceita pela sociedade e que os próprios também possuem dificuldades em saber como lidar. Ainda assim é uma série que tem potencial a ser desenvolvido através dos dilemas específicos destes personagens, estejam eles juntos ou não, porém nessa primeira temporada todas as vezes que a série se distanciou desse consentido triângulo amoroso, ela perdeu sua principal força. Esse é o dilema dos seus personagens e da própria série, afinal quão longe eles pretendem ir nessa história sem vacilar e/ou correr riscos e/ou colocar tudo a perder.
“Animais Noturnos” é um drama com toques de suspense, tenso e angustiante que traz uma narrativa repleta de camadas com personagens soturnos e melancólicos através de uma estética refinada e apurada. Escrito e dirigido por Tom Ford, a partir do livro de Austin Wright, o filme se apresenta como um estudo psicológico de personagens a partir da perspectiva da artista Susan Morrow (Amy Adams) que vive uma existência infeliz, fútil e vazia ao lado de um marido indiferente (Armie Hammer) e uma filha distante (India Menuez). Após a noite de lançamento da sua mais nova exposição que discursa sobre os valores estéticos da nossa sociedade moderna, Susan recebe um manuscrito do livro escrito pelo seu primeiro marido, Edward Sheffield (Jake Gyllenhaal), e à medida que ela mergulha na leitura, algumas lembranças do passado vêm à tona.
Inicialmente, o que chama a atenção do filme é a fotografia pesadíssima pontuada por cores fortes, predominantemente escuras e vermelhas, o que dá um tom amargo e sufocante ao universo estéril em que a narrativa está inserida, o que combina perfeitamente com o estado emocional de Susan e que também se reflete no seu figurino, na sua maquiagem e até mesmo no seu cabelo. A partir do momento que ela passa a ler o livro, a história assume a perspectiva dos personagens do livro, o que provoca um intenso envolvimento dela com a história assim como uma alteração nos tons que se tornam mais claros e quentes. Tony Hastings (Gyllenhaal) é o personagem central do livro e o dilema dele reside no seu desespero diante da abordagem e da tortura psicológica que um grupo de arruaceiros faz com ele e sua família no meio de uma estrada deserta em plena madrugada em uma sequência tensa e de tirar fôlego. Algumas pistas são sugeridas, como o fato de que a mulher (Isla Fisher) e a filha (Ellie Bamber) de Tony são ruivas assim como Susan e sua filha, porém Tom Ford é inteligente o bastante para não oferecer as respostas facilmente, além de promover uma estilização estética tão quente e atraente quanto fria e repulsiva.
O comportamento e a reação de Tony diante do ocorrido chamam a atenção e à medida que narrativa do livro avança a montagem do quebra-cabeça torna-se ainda mais fascinante já que não se mostra tão previsível assim. Intercalando passagens do livro com as do tempo presente de Susan, alguns “flashbacks” do passado real acabam se misturando também, especialmente sobre a relação dela com Edward, revelando indicadores sobre a personalidade dos dois e os rumos distintos que suas vidas tomaram, o que diz muito sobre a jornada de solidão enfrentada por ela e o que motivou ele a escrever um livro tão triste, pesado e melancólico e dedicá-lo à Susan. Dentro do universo do livro, outro personagem fascinante é o do investigador Bobby Andes (Michael Shannon) que possui um excêntrico fascínio pelos detalhes sórdidos do caso, sugerindo inclusive que o próprio Tony comente repetidamente o que aconteceu, sem perceber a indelicadeza e a falta de sensibilidade que está cometendo. A sua obstinação em solucionar o caso, no entanto, acaba sendo crucial para legitimar a narrativa que se sustenta dentro de um intervalo de tempo superior a um ano e essas transições confusas entre passado e presente, dentro e fora do livro, nem sempre são bem conduzidas pelo roteiro e pela montadora Joan Sobel (em determinado momento o visual de Jake chega a ser o mesmo nas duas linhas narrativas, o que gera uma breve confusão).
Essas variações narrativas e as camadas que vão sendo formadas ao longo da história permitem que Amy Adams e, especialmente, Jake Gyllenhaal ofereçam atuações seguras e maduras. Ela constrói uma personagem forte e enigmática sempre trazendo uma tristeza e uma melancolia no olhar, além de um tom de voz contido, como se escolhesse friamente as palavras a serem ditas em função de todo o ressentimento e o peso da dor que carrega dentro de si. Já Jake Gyllenhaal tem a oportunidade de interpretar dois personagens através de composições distintas, seja Edward através de um perfil mais sensível e romântico que aparece por pouco tempo, mas principalmente como Tony que possui uma postura muito mais dramática e trágica. A maneira física e emocional com que Tony responde às descrições oferecidas pelo investigador ou quando confronta os criminosos e a si mesmo diante da tragédia vivida é muito bem ilustrado pelo ator que oferece uma atuação arrepiante e comovente. Michael Shannon está muito à vontade na pele de um sujeito excêntrico e exótico enquanto Aaron Taylor-Johnson não compromete e cumpre o seu papel com uma atuação convincente na pele de um bandido imaturo, irresponsável, frio e covarde.
“Animais Noturnos” acaba se revelando um drama sobre vingança, uma trágica história de amor e a jornada de duas pessoas na tentativa de superar os traumas do passado, mas que deixaram marcas tão profundas que não foram cicatrizadas totalmente, embora direcionados a alguma forma de arte (o livro para Edward e a estética das obras de Susan são representações da sua intimidade) e que convergem a uma sequência final épica, emblemática e incômoda já que a esperança e a felicidade nem sempre podem esperar, afinal nem tudo merece perdão ou uma segunda chance.
Dirigido pelo escocês David Mackenzie, “A Qualquer Custo” retrata uma região do Texas em que a maioria das pessoas luta para sobreviver diante de um cenário em crise já que as empresas de petróleo e de gás já não empregam mais como antes e os habitantes precisam lidar com incêndios provocados pela seca que desvalorizam as propriedades e dizimam parte da criação, além de dívidas hipotecárias e bancárias que estrangulam suas finanças. É um cenário sufocante e desolador resumido melancolicamente por uma pichação vista na parede de um banco logo no começo do filme: “Três guerras no Iraque e não podem renegociar nossas dívidas.” Esse colapso social também pode ser ilustrado pelos irmãos Toby (Chris Pine) e Tanner Howard (Ben Foster) que, após a morte da matriarca e com uma fazenda para cuidar, decidem praticar pequenos assaltos a banco como uma forma de sobrevida. Enquanto eles fazer planos para levantar dinheiro suficiente para honrar suas dívidas e recomeçar suas vidas (entenda-se apostar tudo em um cassino e roubar mais bancos para fazer mais dinheiro), eles são seguidos de perto pelo veterano xerife Marcus Hamilton (Jeff Bridges) que está em vias de se aposentar, mas quer se antecipar aos próximos passos da dupla para finalmente pegá-los e encerrar dignamente sua carreira.
Amparado pela belíssima e melancólica fotografia de Giles Nuttgens que retrata a aridez e a tristeza do oeste americano, “A Qualquer Custo” tem um latente clima de tragédia no ar, como se fosse apenas uma questão de tempo para que algo terrível acometesse os personagens da narrativa, uma sensação de tensão e nervosismo construída a partir do roteiro escrito por Taylor Sheridan (“Sicário – Terra de Ninguém”). A dinâmica entre Toby e Tanner é bem explorada, especialmente quando subverte as expectativas, afinal enquanto o primeiro ressente a falta dos filhos que não vê há quase um ano, o segundo já foi preso por assalto a mão armada e se mostra mais ardiloso e inconsequente. Ainda assim, Toby é quem acaba sendo responsável pelas principais decisões da dupla, sejam elas planejadas ou não, ainda que aja de maneira apenas um pouco mais racional que o irmão. Essa impulsividade mais eventual de Toby responde um pouco por algumas irregularidades da narrativa, mas Chris Pine realiza um bom trabalho, deixando de lado o heroísmo e/ou romantismo dos seus personagens costumeiros, mas sem deixar de ser politicamente correto, levadas as devidas proporções é claro, enquanto Ben Foster traz o mesmo vigor e a mesma energia que lhe são tão característicos e que ele já emprestara em filmes anteriores.
O destaque do elenco, no entanto, fica por conta mesmo de Jeff Bridges. Em um papel que cairia muito bem para Tommy Lee Jones também, o que não é nenhum demérito, apenas uma elogiosa observação, o veterano ator entrega uma performance segura e muito bem caracterizada do típico xerife do interior com sua voz arrastada, cadenciada e um sotaque carregado, sua linha de raciocínio simples e esperta, embora ocasionalmente ordinária, seu senso de humor politicamente incorreto e ofensivo, especialmente contra índios e mexicanos, além de um comportamento e uma serenidade sulistas que vem acompanhados de uma larga experiência profissional e de vida. A construção gradativa desse típico personagem texano é até mais importante para a narrativa do que as ações dele em si que se justificam mais para que se construa uma base emocional sólida que sirva de motivação para ele honrar os seus compromissos morais até mesmo depois da sua aposentadoria.
Contando com belas canções da música “country” norte-americana, “A Qualquer Custo” acaba sendo um filme que funciona muito mais pelo seu cenário desolador em que as pessoas perdem a sua identidade quando se veem dentro de uma realidade que não lhes oferece maiores perspectivas. Esse é o principal dilema dentro do drama provocado pela crise, seja ética, moral ou até mesmo financeira que, ironicamente, acaba sendo ligada, direta ou indiretamente, aos mesmos bancos que funcionam como agentes duplos, algozes da anomia e do caos, afinal financiam os sonhos das pessoas, mas são os primeiros a agirem de maneira impiedosa na hora de cobrar as dívidas. De certa forma, essa é a mesma jornada dúbia, moral e cruel imposta para os personagens em “A Qualquer Custo”.
“Florence, Quem é Essa Mulher?” é uma comédia dramática baseada em fatos reais, ambientada em meados da década de 40, sobre a atriz e cantora Florence Foster Jenkins. Mas afinal, quem é Florence Foster Jenkins? Esse filme dirigido pelo experiente Stephen Frears pretende responder essa pergunta, servindo como mais um veículo para o talento da veterana Meryl Streep que mais uma vez é indicada ao Oscar por uma atuação apenas moderadamente virtuosa. Florence (Streep) é uma socialite americana, herdeira de um banqueiro rico com qual foi casada, e que não tinha talento para atuar e cantar, mas que sonhava em se tornar uma cantora de ópera mesmo assim. Enfrentando as limitações provocadas pela idade e por uma doença venérea contraída na lua de mel, ela se dedica ao teatro na companhia comandada pelo seu atual marido, o britânico St. Clair Bayfield (Hugh Grant), porém trata-se de um jogo de cena mantido apenas por vaidade já que ninguém é capaz de contestá-la diante da sua falta de talento e da sua fragilidade de saúde, mas principalmente em função da influência da enorme quantia em dinheiro que ela tem a sua disposição.
O roteiro de Nicholas Martin realça a falsidade dos personagens ao redor de Florence para construir um universo potencialmente cômico, mas que acaba sendo redundante e repetitivo, afinal o que acompanhamos ao longo do filme nada mais é do que uma sucessão de sequências em que Florence esbanja falta de competência técnica e artística pra provocar o desconforto e o sentimento de vergonha alheia de St. Clair, do pianista Cosmé McMoon (Simon Helberg) ou de qualquer outra pessoa que esteja por perto. Enquanto St. Clair finge acreditar no talento da esposa como um gesto de motivação, carinho e devoação à amada (embora ele tenha uma vida dupla com outra mulher), o preparador de voz Carlo Edwards (David Haig), assim como outros, parecem se aproveitar da ingenuidade de Florence através de elogios falsos e vazios enquanto McMoon é o único que reage de maneira mais natural e espontânea diante do constrangimento do que vê e principalmente do que ouve, funcionando como uma espécie de representação do bom senso comum e do próprio espectador. Só que a graça construída a partir dessa proposta tem prazo de validade e não demora muito para que a tática se torne cansativa, ainda que parcialmente.
O diretor Stephen Frears realiza um filme de cartilha e às vezes parece soar ultrapassado até de maneira proposital, como se quisesse fazer uma comédia à moda antiga, como também dá a entender a evocativa montagem de Valerio Bonelli ou a dinâmica e divertida trilha sonora composta por Alexandre Desplat. Sem ser algo especialmente marcante ou esteticamente atraente, o filme, no entanto, não deixa a desejar em nenhum dos seus aspectos técnicos já que ajudam a legitimar o universo da narrativa e a construir os personagens física e emocionalmente (a direção de arte da casa de Florence assim como os seus figurinos extravagantes combinam com a sua personalidade e contrastam apropriadamente com os de St. Clair, por exemplo). E no caso de Florence, como o filme trata de um recorte da vida dela, o roteiro utiliza alguns diálogos para oferecer pistas e indicações sobre o seu passado e quase sempre são apresentados de maneira orgânica, sem soarem excessivamente expositivos, exceto quando ela se refere a terceiros.
E tratando-se de Florence Foster Jenkins, somente uma atriz do porte de uma Meryl Streep é capaz de encantar, divertir e emocionar através de uma interpretação sobre uma atriz fraca, limitada e ruim e ainda assim torná-la uma mulher doce, encantadora e admirável ao seu modo. Se Streep ainda é capaz de arrancar risos através dos solos vocais histriônicos de Florence, ela traz uma leveza e uma ingenuidade bastante dedicadas que podem ser percebidas pelo tom da sua voz, pelo seu rico gestual e até mesmo pelo olhar, como quando ela se sente levemente envergonhada ao contar que St. Clair escondeu dela as más críticas que ele recebeu como ator, revelando que ela não tem a mínima noção do quadro geral em que está inserida. Hugh Grant oferece uma atuação leve, delicada e carismática como um homem tão generoso quanto oportunista, tendo a oportunidade de encarnar o seu lado Colin Firth de maneira bastante segura e autêntica. Já o limitado Simon Helberg repete muito dos seus trejeitos já vistos na série “Big Bang Theory”, mas que aqui funciona perfeitamente bem, especialmente pela sensação que McMoon está segurando o riso a todo instante (e ele ganha o público justamente quando não se segura na primeira oportunidade que tem de rir em alto e bom som ao relembrar a atuação retumbante de Florence nos ensaios).
Tornando-se uma inesperada fonte de consolo e inspiração para uma parcela da sociedade americana em meio a um cenário de guerra através de uma abordagem simplista e rasteira, a trajetória de Florence Foster Jenkins acaba se tornando a de uma comédia involuntária e esse é o charme do filme assim como o seu calcanhar de Aquiles já que o apelo é bastante limitado, quase que sustentado inteiramente pelos esforços do seu elenco, especialmente Meryl Streep. “Florence, Quem é Essa Mulher” é um filme que parece discursar a favor daquela máxima de que a ignorância é uma benção, mas embora não consiga convencer a todos pelas suas próprias limitações, trata-se de um filme leve, de tom fabulesco e repleto de boas intenções que no fundo se eleva pela simplicidade de suas ideias até porque no fundo, no fundo, Florence era uma boa atriz e cantora. Bem lá no fundo.
Ben Cash (Viggo Mortensen) é o pai de seis filhos que resolveu criá-los e educá-los isolados no meio da natureza através de um senso de comunidade com inclinações “hippies”, budistas e naturalistas, ensinando-os técnicas de sobrevivência na floresta e estimulando a erudição através da leitura de obras renomadas e clássicas. Após o suicídio da matriarca que voltara à civilização para tratar de uma grave doença psicológica, os membros da família entram em conflito quanto à maneira de agir diante do ocorrido, mas logo decidem reivindicar o direito sobre o corpo da mãe para garantir que ela tenha uma cerimônia de cremação e de despedida coerentes com a ideologia que juntos eles sempre acreditaram e defenderam. “Capitão Fantástico” é uma história encantadora sobre um pai que abriu mão de uma vida normal para criar seus filhos através de valores que ele julgava serem os melhores, mais legítimos e adequados, mas também é um drama sensível e delicado sobre a individualidade e o processo de amadurecimento que nos definem.
O roteiro do diretor Matt Ross é muito rico e espirituoso em tratar com leveza e bom humor um tema tão sensível e delicado, afinal dentro dessa narrativa a influência da educação dos pais na vida dos seus filhos acaba sendo elevada a um grau altíssimo a partir do momento que estes tomaram uma decisão tão radical para cuidar dos seus. E não deixa de ser uma belíssima ilustração utilizada pelo roteiro que em determinando momento, quando uma das filhas de Ben faz um comentário sobre o livro “Lolita”, de Vladimir Nabokov, ela descreve o homem como um sujeito que odeia por considerá-lo um pedófilo, porém reconhece as artimanhas do autor em fazer com que nos sensibilizemos com sua história já que o livro é narrado através do seu ponto de vista de maneira bonita e romântica. De certa forma, o espectador de “Capitão Fantástico” experimenta dessa mesma experiência, afinal estamos diante de um homem essencialmente egoísta do qual nos encantamos, sem jamais deixar de lado a dubiedade do seu comportamento autoritário e da sua personalidade forte, embora contando com uma família formada por filhos inteligentes, generosos e harmoniosos.
Apoiado por um trabalho de montagem fluído, orgânico e dinâmico que muitas vezes equilibra no mínimo sete personagens em cena em uma mesma divisão e/ou sequência de planos, “Capitão Fantástico” ilustra esse estranhamento quanto ao estilo de vida de Ben e de sua família através do seu posicionamento anticapitalista, da valorização à filantropia e aos direitos humanos ao invés de práticas consumistas e/ou relacionadas à propriedade privada, mas principalmente pela interação nervosa e pontual que eles passam a ter com Dave (Steve Zahn), irmão de Ben, sua esposa Harper (Kathryn Hahn) e seus dois filhos adolescentes, afinal eles personificam a pressão da sociedade com um modelo de padrões universais de comportamento e de conduta que muitas vezes são seguidos por mera osmose, fazendo com que no processo as pessoas percam suas individualidades apenas para serem melhores aceitos no meio em que vivem. Ainda que sem a garantia de felicidade. O ponto de vista de Ben é muito bem defendido pelo mesmo, afinal ele se importa que seus filhos sejam seres pensantes e críticos, mas a explosão de raiva e frustração de Harper é perfeitamente compreensível também, afinal qualquer processo de ruptura é doloroso, logo exceção feita à discutível escolha de atores comediantes, como Zahn e Kahn, para defendê-los, ela e Dave não são pais piores do que Ben apenas por deixarem seus filhos consumirem Nike ou Adidas ou por não serem contra o sistema capitalista dominante. Ao mesmo tempo, a postura de Ben como pai é aceitável por educar seus filhos de uma forma a acreditar que o sistema não os corrompa e que eles mantenham a serenidade e a integridade em suas vidas de acordo com a educação que receberam, apesar das observações e preocupações igualmente fortes e eloquentes oferecidas pelo seu sogro (Frank Langella) que é o representante mais pragmático quanto à ideologia de Ben. Em sua totalidade, os personagens são frutos do meio em que vivem, sendo que algumas práticas tornam-se mais ou menos aceitáveis justamente pela dimensão do universo em que estão inseridos (o Papai Noel não deixa de ser um símbolo distorcido e com viés comercial do Natal, por exemplo, ao passo que a figura do filósofo Noam Chomsky pode merecer a mesma relevância, ainda que de forma irônica).
Matt Ross realiza um competente trabalho de direção técnica e de extremo bom gosto estético, emergindo intensamente no senso de amor e coletividade dos membros da família, mostrando-se bastante sensível e delicado na abordagem da narrativa já que valoriza a interação de Ben e seus filhos sem ter a necessidade de criar arroubos dramáticos para estabelecer conflitos dramáticos já que eles acontecem sutil e naturalmente entre os próprios integrantes da família por serem figuras inteligentes, destemidas e ainda tão próximas, logo essa intimidade é mais do que suficiente para se estabelecer algum tipo de catarse, sempre apresentando os personagens de maneira linear, independente de serem adultos ou crianças. A solução criada por ele para ilustrar as lindas visões de Ben com relação à esposa durante os sonhos também são muito inspiradas e poéticas assim com as escolhas leves e delicadas da trilha sonora de Alex Somers. A diretora de fotografia Stéphane Fontaine (“Ferrugem e Osso”, “O Profeta”, “Elle”) equilibra muito bem as paletas de cores mais fortes e quentes que fortalecem o espírito da narrativa repleto de calor humano, especialmente nas sequências noturnas, cujas cores se se assemelham muito com as que são vistas nos figurinos excêntricos e chamativos dos personagens, criados por Courtney Hoffman (“Os Oito Odiados”), que acabam se destacando especialmente nas sequências diurnas, construindo um belíssimo complemento do trabalho coletivo entre fotografia e figurino.
Assessorado por um jovem elenco altamente carismático, Viggo Mortensen realiza uma intensa e devotada atuação como um pai que parece se recusar a oferecer o caminho mais fácil para os seus filhos, porém é capaz de fazer qualquer coisa para garantir a felicidade deles, inclusive abrir mão do que ele tem de mais valioso e o ator dá credibilidade a um personagem que também sofre o peso das suas escolhas por maiores que sejam suas convicções. Contando com um clímax embalado por uma versão candidata a ser tornar “cult” do clássico “Sweet Child O´Mine”, do Guns N´Roses, e um desfecho que sugere uma solução alternativa encontrada pela família diante dos dilemas expostos já que deixa interpretações em aberto, até mesmo com certa ironia, sobre o destino dos seus personagens, “Capitão Fantástico” é um filme virtuoso em seus aspectos técnicos, mas é através da maneira leve e lúdica com que lida com um estilo de vida utópico e crítica os valores propagandeados pela nossa sociedade que o filme encontra de maneira definitiva o seu lugar no mundo, tornando-se uma inusitada celebração do conhecimento, do amadurecimento e da vida humana.
“Moonlight: Sob a Luz do Luar” é um filme representativo e afirmativo sobre as identidades de raça e de sexualidade a partir da saga de Chiron, um jovem negro da periferia, que desde criança enfrentou a negligência paterna de quem o abandonou e a materna de quem não soube lhe criar, além de ter que superar as constantes perseguições e “bullyngs” sofridos pelos colegas de escola e do bairro em que mora em função do seu “jeito diferente”. Dirigido por Barry Jenkins, o filme conta com um roteiro escrito pelo próprio, a partir da história de Tarell Alvin McCraney, sendo estruturado em capítulos em que cada um deles recebe um nome próprio e representa cada uma das identidades assumidas por Chiron ao longo da história de sua vida e que exploram distintas experiências que servirão como traços da formação de sua personalidade.
Assumindo uma natureza episódica, a narrativa explora diferentes momentos da vida de Chiron para oferecer um amplo painel para um ciclo de repressão emocional e ódio, preconceito e violência. Ainda criança, quando era conhecido apenas como “Little” (Alex R. Hibbert), Chiron se sente confuso e assustado diante das ofensas que recebe sem compreendê-las totalmente, afinal naquele momento a sexualidade ainda é um assunto desconhecido em função de sua natureza precoce. A sua única lembrança boa da infância vem da presença de Juan (Mahersala Ali), um carismático traficante local, que acaba se sensibilizando com ele e assumindo uma importante figura de influência masculina e paterna. Tornando-se um adolescente reprimido (Ashton Sanders) já que as ofensas quanto a sua sexualidade tornam-se cada vez mais explícitas e violentas, Chiron vive um momento tenso e delicado já que precisa lidar com sua mãe (Naomie Harris), cada vez mais afundada no seu vício em drogas, e se descobre apaixonado por um colega de classe. As marcas profundas, físicas e emocionais dessa fase o tornam um homem mais sombrio, sob o codinome Black (Trevante Rhodes), porém Chiron nunca deixou de ser Chiron e quando ele recebe a ligação de Kevin (André Holland), após anos de separação desde o último confronto entre os dois, ele tem uma possível chance de fazer as pazes com o seu passado, reencontrar-se diante do espelho e até ser feliz de verdade como ele só tinha sido uma única vez na vida em uma noite na praia sob a luz do luar.
Uma das principais características de “Moonlight” é que ele possui três atos muito claros e bem definidos, sendo que Barry Jenkins não perde a perspectiva dramática, nem mesmo a identidade estética e visual do filme, em nenhum desses três núcleos, fazendo com que um filme marcado por eventos pontuais mantenha-se honesto, íntegro e homogêneo a sua proposta mesmo com os saltos no tempo da narrativa. Pecando apenas pelo excesso de câmeras lentas, inclusive na preparação de um jantar em que o “chef” coloca uma pitada de carinho, Jenkins faz o bom uso de distorções das imagens em algumas cenas para criar um eventual clima lúdico de devaneio assim como acerta quando permite que em um momento-chave haja um confronto do personagem com a câmera, como se intimidasse o espectador a tomar um posicionamento, o que é uma atitude bastante arrojada e corajosa diante da proposta defendida por Jenkins já que o filme muitas vezes se sustenta através do silêncio, da força invisível das emoções que estão represadas e subentendidas entre os personagens, mas que ocasionalmente pode encontrar uma sintonia e um momento perfeito através de uma bela canção escolhida em um “jukebox”.
O diretor Barry Jenkins também realiza uma ótima condução de atores, especialmente com os dois jovens Alex R. Hibbert e Ashton Sanders que interpretam Chiron nas duas primeiras etapas da narrativa. Já Trevante Rhodes tem a difícil missão de traduzir toda a construção emocional do seu personagem através de uma atuação monossilábica, onde os sentimentos mais profundos que lhe definem ainda estão reprimidos, sendo que ele não deixa a desejar em nenhum momento. André Holland oferece uma presença carismática essencial para tornar Kevin uma figura humana reconhecível e compatível com o parceiro de cena. Mahersala Ali entrega uma atuação bastante digna e sensível na pele de um sujeito que de certa forma busca alguma forma de redenção e/ou de reparação ainda que parcial dos seus erros através da projeção de uma boa educação para Chiron já que se sente indiretamente responsável pelo vício da mãe do garoto. Naomie Harris realiza um trabalho bastante competente, especialmente porque precisa sustentar de maneira explícita uma personagem que se modifica abruptamente em diferentes estágios do vício, logo sempre que ela aparece é em um único momento de uma nova fase de sua vida.
Com um ótimo trabalho de fotografia que aposta em tons repressivos e representativos e uma trilha sonora singela e honesta, “Moonlight: Sob a Luz do Luar” é um drama tocante, pungente, simples e direto que versa sobre a trajetória de um homem que foi forjado em uma longa trajetória de dores e decepções, mas que passou a vida inteira em silêncio buscando uma luz no fim do túnel e gritando pelo direito legítimo de ser quem ele é de verdade.
Com “Até o Último Homem”, Mel Gibson realiza um senhor filme de guerra, mas antes disso constrói um drama torturante, piegas e maniqueísta. Desmond Doss (Andrew Garfield) é um jovem idealista que sempre sonhou em ser médico, mas que nunca estudou tanto para isso, logo quando a 2ª Guerra Mundial bate a sua porta, ele decide fazer o mesmo que seu irmão Harold (Nathaniel Buzolic), alistar-se no Exército, mas como socorrista como uma forma de cuidar de seus compatriotas sem ter a necessidade de disparar um tiro sequer. Nesse primeiro ato, o roteiro escrito pela dupla Robert Schenkkan e Andrew Knight ilustra de maneira eficiente a maneira crescente com que o clima da guerra vai se instaurando na rotina da pequena cidade de Lynchburg, no estado da Vírgnia. Filho de um veterano da 1ª Grande Guerra (em uma ótima participação de Hugo Weaving cujo papel tinha tudo para se tornar caricato), Desmond vai para o conflito em um batalhão diferente do irmão, contra a vontade da família e deixando sua futura esposa Dorothy (Teresa Palmer) esperando pelo seu retorno. Considerando a maneira artificial com que a relação romântica entre os dois é construída, a separação do casal é um alívio para o espectador já que não possuem química e Palmer tem uma irritante muleta interpretativa de sorrir para tudo que está ao seu redor até mesmo quando chora. E ainda tem o tal do Andrew Garfield, mas prefiro deixá-lo para depois.
A narrativa não se priva de apresentar as genéricas sequências de treinamento da tropa, explorando o incômodo que a posição de Desmond de não pegar em armas desperta em seus superiores e que desencadeiam uma série de ataques de parte dos seus companheiros que não querem dividir o mesmo espaço que ele. A resiliência, a força de vontade e a fé de Desmond são testadas já que em nenhum momento ele questiona a natureza da guerra, mas segue determinado em ajudar da forma que pode. O tom do filme assume contornos cômicos já que Howard não parece levar a sério a postura enérgica e punitiva dos seus superiores, como se fosse um peixe fora d´água, mas a presença de Vince Vaughn como um sargento linha-dura, um Sam Worthington extremamente canastrão como capitão e até mesmo Richard Roxburgh na pele de um sargento médico incapaz de declarar que Howard tem problemas mentais apenas pela devoção a sua fé parecem conduzir o filme para uma auto paródia mesmo que involuntária. Com mais delongas que o necessário, esse segundo ato do filme ainda se permite a um julgamento militar que serve apenas para enaltecer o senso de justiça americano e legitimar o posicionamento humanista e cristão de Desmond assistido pelo mérito do objetor de consciência que segundo a Constituição o resguarda em função da sua crença. E ainda tem o tal do Andrew Garfield, mas prefiro deixá-lo para depois.
Pautado por um conceito latente de que não existe nada de nobre, épico e/ou heroico dentro de uma guerra, “Até o Último Homem” é um drama de guerra que choca pelo horror e sensibiliza pela fragilidade humana quando um bando de jovens é recrutado para tirar a vida de outro bando de jovens, aqui ilustrados apenas como descartáveis japoneses “kamikases”. A partir do momento que a narrativa avança pelo “front”, Mel Gibson dá uma aula de direção ao construir sequências impactantes, seja pela tensão e pela preocupação em evidenciar o avanço das tropas sobre os cadáveres dos soldados do antigo batalhão até pela construção estética das batalhas de guerra onde impera a carnificina e a brutalidade provocada pelo caos em que mortes ocorrem a esmo sem nenhum tipo de glorificação e quase sempre resultantes de uma imprevisibilidade qualquer, sem dar espaço para nenhum tipo de clímax. Por menor que seja o aparente impacto provocado pelas ações de Desmond, cada vida de companheiro que ele salva ou sopro de esperança que ele oferece faz toda a diferença e lá no meio do campo de batalha as motivações altruístas dele superam qualquer discurso potencialmente vazio ou politicamente correto, afinal ele está sendo prático, objetivo e cumprindo a sua missão com devoção e dedicação admiráveis. É claro que nesse momento de generosidade em meio a um cenário de guerra, a preparação anterior do roteiro serve de contraponto, afinal Desmond passa a servir como uma espécie de salvador daqueles que antes o agrediram, sem deixar ninguém para trás (ainda assim, a sua ação de caridade diante de inimigos feridos acaba sendo um ato de bondade e pieguice difícil de engolir). Os humilhados serão exaltados, brada Mel Gibson atrás das câmeras, fazendo o bom uso dos efeitos e da edição de som e sem jamais perder a dinâmica das sequências de ação. E ainda tem o tal do Andrew Garfield, mas prefiro deixá-lo para depois.
Mel Gibson se esbalda ao criar bons momentos de suspense e tensão e ao comandar um show de pirotecnia, mas sem jamais perder a dimensão humana do combate ou tornar-se um exercício gratuito de violência gratuita, apesar dos discutíveis usos de pesadelos e “flashbacks” para quebrar a narrativa, mas sabendo fazer o uso da eficiente trilha sonora sem parecer intrusiva. O trabalho de fotografia sofre da mesma oscilação presente na narrativa já que enquanto na primeira hora de filme utiliza cores fortes e quentes que denotam certa artificialidade, como no primeiro beijo ou na primeira noite de amor do casal, a partir do momento que mergulha no clima de guerra os tons mais acinzentados tomam conta das sequências, reforçando a crueza e a crueldade do ambiente, além de oferecer um óbvio contraponto com o vermelho dos tiros, das explosões, do sangue e dos restos mortais dos soldados. E ainda tem o tal do Andrew Garfield, mas prefiro deixá-lo para depois. Na verdade vai ter que ser agora mesmo. O jovem ator não realiza um trabalho de atuação seguro e homogêneo, especialmente na primeira hora, enfrentando sérias dificuldades para controlar caras e bocas na tentativa de humanizá-lo e/ou torná-lo simpático, provocando muito mais incômodo e irritação. Sem convencer como um jovem de natureza romântica, Garfield apenas cumpre tabela quando o roteiro investe na conturbada relação de Desmond com o pai, embora o ator contribua quando precisa demonstrar firmeza e serenidade na defesa da ideologia do seu personagem de não colocar as mãos em armas. A nobreza de caráter de Desmond, nem tanto pelas suas demonstrações de fé que pelo menos até o clímax são bastante tímidas e apenas simbólicas, ajuda a tornar a atuação de Garfield sensível e empática, além do fato de que o ator se entrega física e emocionalmente para ilustrar a força, a garra e a determinação do soldado diante dos amigos feridos. É um trabalho digno e esforçado, porém muito longe de ser infalível.
“Até o Último Homem” é um senhor filme de guerra e apresenta um clímax emocionante e edificante que não se apresenta de maneira piegas, embora tenha todos os elementos e ingredientes a favor disso, como quando Desmond pega uma arma na mão pela primeira vez ou quando Mel Gibson faz escolhas quanto ao uso do plano em primeira pessoa e até mesmo na utilização da câmera lenta, com exceção aos instantes finais de guerra que são irritantes em todos os seus sentidos técnicos e narrativos, como se pertencessem a outro filme e que dão a incômoda sensação de que Gibson não soube a hora de terminar (não agrega em nada reforçar a ideia de que os japoneses são “kamikases”). Essa sensação, de certa forma, compreende a experiência do filme como um todo, pois embora Mel Gibson saiba fazer muito bem o que de melhor ele sabe fazer, até chegar no seu auge, ele praticamente entrega uma primeira hora de filme burocrática, claudicante e sem um pingo de personalidade e inspiração. Depois, no entanto, ele praticamente faz valer a pena cada minuto. Assim como foi a história de vida e de guerra de Desmond Doss que salvou 75 feridos durante a guerra sem disparar um tiro sequer e faleceu de causas naturais em 2006 aos 77 anos de idade.
“Lion: Uma Jornada Para Casa” traz uma história tão incrível, extraordinária e repleta de infortúnios que se custa a acreditar que se trata de um filme baseado em fatos reais. Ambientado inicialmente na Índia, o roteiro escrito por Luke Davies, a partir do livro de Saroo Brierley, acompanha o pequeno Saroo (Sunny Pawar) que ao realizar um passeio noturno acaba se perdendo do irmão Guddu (Abhishek Bharate). Viajando milhares de quilômetros de casa por uma das inúmeras linhas de trem da ferrovia indiana, o garoto de 5 anos precisa literalmente se virar sozinho para sobreviver já que as ruas oferecem perigos a cada esquina e até mesmo as pessoas que se propõem a ajudá-lo, na verdade possuem más intenções. Ao chegar a Calcutá, ele é fichado como uma criança perdida e acaba sendo levado para uma espécie de instituição para órfãos, que mais se parece com uma prisão, até ser encaminhado para adoção e direcionado para um casal de australianos: John (David Wenham) e Sue (Nicole Kidman).
A história que serve de base para a narrativa do filme é muito poderosa e tem contornos épicos, como indica as principais melodias da trilha sonora nessa passagem, logo o seu apelo é universal e quase infalível, sendo que em seus melhores momentos o diretor Garth Davis até consegue realizar um filme singelo, honesto e cativante que funciona principalmente por estabelecer uma visão compatível com a idade, o grau de maturidade e o grau de noção que o pequeno Saroo tem do mundo. Em sua infância, por exemplo, a dimensão da solidão e da sua fragilidade é entendida pela proporção dos longos corredores dos vagões do trem ou pelo tamanho das poltronas do avião em que ele embarca assim como a presença de uma multidão de pessoas se torna uma imagem impressionante e impactante e as dificuldades de linguagem e do desconhecido se tornam ainda maiores e mais críticas uma vez que na Índia existem inúmeros dialetos diferentes. Sunny Pawar e Abhishek Bharate são atores mirins adoráveis, encantadores e carismáticos, o que favorece a empatia e a expectativa quanto a uma virada positiva em suas vidas assim como um potencial reencontro.
O processo de educação aos bons costumes e de adaptação do pequeno Saroo em seu novo lar no estado da Tasmânia, localizado na Austrália, assume um tom delicado através de contornos leves e lúdicos, mas que estabelecem uma perigosa relação de causa e consequência com a interferência dos ricos e a exploração da pobreza social, renegando a cultura, as raízes de Saroo e seu histórico familiar em troca de uma vida com melhores oportunidades, como se o que foi mostrado até então tivesse apenas uma importância relativa. Nesse ponto da narrativa, o carisma de John e Sue são essenciais para que o apelo da história se mantenha a partir do desejo do casal em construir uma família sólida, sendo que a trilha sonora e a fotografia ajudam na construção desse ambiente de calor humano, porém um salto no tempo prejudica parte do contexto, não apenas com relação a esta adoção, mas também a de uma segunda que envolve complicações das quais John e Sue não esperavam e que acompanhamos muito pouco, invalidando inclusive os eventuais conflitos posteriores entre os irmãos adotivos. É como se o filme praticasse uma autossabotagem ao negligenciar ao espectador uma parte importante e relevante da história que acompanhávamos tão fluida e naturalmente pelo menos até então, o que prejudica até mesmo a atuação de Nicole Kidman que até tem lá seus momentos, especialmente ao relembrar a sua relação com o pai, mas que jamais consegue imprimir de maneira concreta a personalidade forte de uma mulher que aprendeu a amar sua família incondicionalmente, mesmo diante de conflitos e imperfeições (e uma suposta “revelação” dela acaba não gerando impacto emocional nenhum).
Após esse salto no tempo de 20 anos, Saroo (Dev Patel) já está em uma fase adulta, iniciando um curso superior na área de Hotelaria em Melbourne, uma cidade moderna, arrojada e efervescente, e em meio a um grupo de estudantes de diferentes nacionalidades, ele acaba se apaixonando pela americana Lucy (Rooney Mara, desperdiçada), porém em meio a essa multiculturalidade, lembranças do seu passado na Índia são reacendidas. Nesse momento, Garth Davis começa a se perder em um número até excessivo de “flashbacks” e/ou de inserções de cenas da infância de Saroo para trabalhar com a confusão emocional do personagem, mas cujos méritos narrativos se tornam exaustivos pela repetição e pela estética pouco atraente. E a partir daí, o filme começa a perder força porque o roteiro não sabe criar uma linha narrativa suficientemente madura entre a adoção de Saroo e seu posterior sentimento de nostalgia, afinal em termos de tempo se passaram 20 anos, mas a narrativa nesses poucos minutos não se engaja para induzir o peso destes anos e o quanto a falta da sua identidade original lhe custava tão caro já que é algo que novamente acompanhamos de maneira apenas superficial. O surgimento da relação de Saroo com Lucy assim como as crises do relacionamento são quase instantâneos, logo mais uma vez há uma pressa narrativa que acelera a cadeia de eventos na tentativa de abraçar o maior número de catarses dramáticas possíveis, mas que se tornam apenas eventos isolados de apelo limitado. Dev Patel confere integridade ao seu personagem, mas ele parece em uma constante luta frente às mais variadas circunstâncias impostas pela narrativa, mas toda a sua entrega e a sua dedicação são muito bem recompensadas no comovente clímax onde o talentoso ator esbanja intensidade e sensibilidade.
“Lion: Uma Jornada Para Casa” é uma síntese do seu personagem central já que está tão preso ao passado que não consegue ter personalidade suficiente para seguir em frente na construção dessa busca angustiante para preencher seu vazio emocional e/ou para encontrar as respostas que tanto lhe afligem, algo que parece mais bem resolvido na trilha sonora que não nega a influência de melodias indianas. No entanto, o apelo da história da infância de Saroo é tão lindo, forte e intenso que o diretor Garth Davies e o roteirista Luke Davies parecem acreditar que não precisam fazer mais nada a favor do filme, limitando-se a eventos burocráticos, contando com a alta eficiência do Google Earth, e conflitos dramáticos que jamais alcançam o mesmo nível de complexidade inicial, um pouco mais sobre a mãe já que a relação com o pai inexiste, mas especialmente com relação ao irmão adotivo que simplesmente fica no meio do caminho. Dessa forma, o filme acaba perdido, sem rumo e sem sair do lugar, despertando uma curiosidade muito maior com relação ao seu material de origem, o que demonstra uma pequena dose de decepção e desapontamento.
Sob a direção do chileno Pablo Larrain, “Jackie” é um filme que lança um olhar humano sobre a reação e as impressões da primeira-dama Jacqueline Kennedy (Natalie Portman) após o atentado que tirou a vida do seu marido e então presidente americano John F. Kennedy (Caspar Phillipson). A dinâmica do filme se divide entre a entrevista concedida por Jackie, como era mais conhecida pelos íntimos, em sua casa a um jornalista (Billy Crudup) para oferecer a sua versão sobre a história, e os “flashbacks” que narram os eventos seguintes à tragédia. “Jackie” é também um típico filme que serve como um verdadeiro sonho para qualquer atriz, pois embora seja classificado como uma cinebiografia, ela tem uma condução quase teatral que funciona como uma espécie de palco para que Natalie Portman esbanje mais uma vez seu refinamento artístico.
Inicialmente, Jackie se mostra arredia e bastante intransigente com o jornalista evitando a qualquer custo que ele se aproprie da história e a transforme em uma peça que não faça jus a maneira como ela gostaria que o seu marido fosse lembrada. Essa interação, no entanto, acaba sendo importante do ponto de vista narrativo por oferecer diferentes perspectivas para determinadas situações que acabaram se tornando de domínio público, mas que foram pouco abordadas em um foro íntimo, como os direitos de propriedade e de posse de uma ex-primeira-dama ou a decisão de Jackie de optar por um cortejo fúnebre, inclusive expondo seus filhos de maneira desnecessária. Ainda assim, o roteiro de Noah Oppenheim parece um pouco confuso na sua tarefa de criar um panorama sobre Jackie e as pessoas ao seu redor a partir de um episódio específico já que força a existência de alguns diálogos expositivos, inclusive presentes na própria entrevista, ao mesmo tempo em que não oferece um pano de fundo satisfatório para dimensionar a natureza de outros personagens que são subaproveitados, como Bobby Kennedy (Peter Sarsgaard), assim como ao ilustrar aspectos da sua vida que são supostamente relevantes, mas que não repercutem com propriedade e/ou a complexidade devida, como a relação de Jackie com a religião que ao menos rende uma conversa de Jackie com um padre (John Hurt) com direito a uma parábola maniqueísta e outras reflexões pertinentes.
Alternando sequências de arquivo e/ou que simulam imagens de arquivo que realçam um eficiente e cuidadoso trabalho de fotografia, Pablo Larrain se revela um diretor bastante metódico e meticuloso já que exige que sua câmera seja posicionada frontalmente aos rostos dos atores quando aposta em uma sucessão de planos e contra planos durante a entrevista. Em dado momento, Jackie ensaia seu discurso e se maquia diante do espelho, porém Larrain opta por filmá-la de costas, captando apenas pequenas partes dela através do reflexo já que após a tragédia, ele a expõe, em um close, repleta de sangue pelo rosto enquanto tenta se recuperar do choque e da dor provocados pelo ocorrido, o que não deixa de oferecer uma rima visual importante e de impactante simbolismo. O mesmo vale para a insistência de Jackie de se manter com o figurino mesmo sujo de sangue, como se ela também estivesse sangrando, ou para a trilha sonora desconcertante, insinuante e incômoda que pretende, através dos seus acordes, traduzir o sentimento de dor e tristeza a partir de um registro melódico e estranho, quase que emulando a trilha de um filme de ficção científica, fazendo com que a experiência se torne excêntrica e apropriada. Há planos belíssimos construídos durante a procissão do funeral, como o que tenta captar o rosto de Jackie debaixo do véu preto do seu vestido fúnebre, sendo que Larrain é muito preciso no que decide mostrar ou não mostrar na reconstituição do atentado. A aposta em reconstituir um tour televisionado pela Casa Branca acaba se revelando muito mais uma decisão fetichista para conferir verossimilhança no processo de reconstituição do filme enquanto um momento de devaneio em que Jackie busca por estabelecer uma rotina comum enquanto desfruta do salão Oval não deixa de ser mais uma ótima ilustração do estado emocional da ex-primeira dama.
Natalie Portman oferece uma performance exuberante, pois ela tem a preocupação de captar o sotaque, os maneirismos e os gestuais de Jackie Kennedy, mantendo seus olhares sempre intensos e expressivos, porém a sua atuação ganha ainda mais autenticidade quando explora o turbilhão emocional vivenciado por Jackie, passando pelo registro do seu choque quando vê seu rosto manchado pelo sangue do marido, pela momentânea confusão mental ao tentar se portar de maneira racional em meio ao nervosismo enquanto se preocupa com detalhes da autopsia, do funeral, do enterro ou até mesmo sobre as condições financeiras da família após a morte de Kennedy. É sem dúvida um trabalho de atuação bastante metódico, detalhista e maduro que somente uma atriz segura de si e plenamente consciente do seu potencial artístico poderia oferecer e que revela Jacqueline Kennedy como uma mulher muito mais complexa do que uma mera primeira-dama vaidosa e mimada que vestia os terninhos da moda. Portman legitima a dor da heroína trágica assim como sustenta o cinismo de Jackie durante a entrevista diante da indiferença dada ao legado do seu marido assim com reforça a sua irritação em relação aos boatos e rumores que são atribuídos a ela.
Nos EUA, em termos de apelo popular, a família Kennedy foi a que mais se aproximou da aura que existe até hoje com relação à Coroa Britânica na Inglaterra. Eles eram lindos, jovens, sempre vestidos elegantemente, ela especialmente, portando-se de maneira impecável, apesar das polêmicas, e representavam um ideal de mundo para os americanos em que tudo era possível, o que naturalmente ascendeu inspiração e seguidores, mas também detratores e invejosos inimigos. Ignorando qualquer tipo de viés político, “Jackie” é um filme intimista que oferece uma perspectiva humana sobre uma mulher que o mundo conhecia apenas como a primeira-dama, a mulher que sempre estava ao lado do presidente americano, mas que aqui se mostra de maneira transparente, falível, contraditória e imperfeita, logo um pouco mais próxima dos relés mortais.
“Loving” será um dos filmes mais impactantes que você verá em 2017 e ele sequer foi indicado ao Oscar na categoria principal deste ano (o que também não quer dizer muita coisa). Essa frase de efeito é justa, mas o exagero contido nela não combina nem um pouco com a delicadeza e a sutileza conferidas pelo roteirista e diretor Jeff Nichols à história de Richard (Joel Edgerton), um homem branco, e Mildred Loving (Ruth Negga), uma mulher negra, em plena década de 50 quando os Estados Unidos da América era um país dividido pelo preconceito já que o casamento inter-racial ainda era proibido em alguns estados americanos. O filme aborda o tema do preconceito racial com tanta leveza e humanidade, mas sem esconder nenhum traço de maldade e crueldade, que não tem como evitar que a emoção fique à flor da pele já que os sentimentos são verdadeiros, embora sejam contidos.
À espera do primeiro filho, Richard e Mildred vão para Washington oficializar o casamento, mas quando retornam à cidade de Central Point, no estado Virginia, eles são surpreendidos com a uma ação da polícia que o levam à prisão, pois esse tipo de união é considerado crime pela lei local e as autoridades entendem que um relacionamento inter-racial é contra a vontade de Deus. Os pardais e os rouxinóis são pássaros diferentes e não se misturam, chega a poetizar um dos policiais, expondo a sua ignorância da maneira mais sublime, afinal desconhece que as duas raças de pássaros convivem em perfeita harmonia na natureza. Interessante notar também como mais de uma vez o roteiro ilustra uma espécie de inimigo invisível que parece torcer para que o casal não fique junto em decorrência das sucessivas denúncias que são feitas contra eles, o que pode estar ligado tanto aos brancos quanto aos negros que por ocasião da repressão ou da própria ignorância estimulada há anos também não admitem a mistura já que a própria integração de Richard dentro da comunidade negra está passível de críticas pelos seus integrantes.
O cinismo e a violência psicológica promovida pelos agentes da lei ao impedirem que duas pessoas que se amam não fiquem juntas por causa da cor da pele em um período histórico não tão distante do nosso presente é um atentado contra a humanidade, por isso é que custa tão caro para Richard ser impedido de dizer que não acha isso certo e uma separação por 25 anos, como é sugerido pelo primeiro advogado do casal, amigo do juiz, não é nem um pouco razoável, embora tenham que se declarar culpados pelo crime de união inter-racional para não serem presos novamente, sendo impedidos de viverem no estado da Virginia, ao mesmo tempo, como marido e mulher. Dessa forma, eles acabam vivendo juntos ao lado dos filhos em outro estado, mas longe da família materna e paterna, enquanto acompanham o crescimento do movimento pelos direitos civis, liderado por Martin Luther King, até que por iniciativa de Mildred, dois jovens advogados civilistas se interessam pela causa dela e de Richard ao ponto de levar o caso à Suprema Corte Americana em busca de um mínimo de dignidade humana.
Ruth Negga é uma atriz fantástica. A delicada mudança de olhar dela ao avistar uma mesma área, antes e depois de descobrir que seria o terreno da casa que Richard construirá para viver ao lado de Mildred já ganha o espectador logo de cara. Sempre adotando uma postura frágil, delicada, triste e melancólica, Negga realiza um trabalho sensível e delicado, externando a leveza e a pureza de coração de Mildred ao sempre postar sua voz de maneira baixa e submissa, ao se mostrar assustada dentro da prisão ou ainda nervosa e ofegante diante de um telefone importante, mas especialmente pela lealdade que tem pelo marido, muitas vezes representadas apenas pelo olhar, e pela sua determinação silenciosa de não se entregar facilmente às adversidades legais. Joel Edgerton tem a difícil missão de legitimar um personagem que é um trabalhador braçal, tem um grau de instrução baixo e que por isso acaba sendo um homem de poucas palavras, mas que possui um coração enorme, generoso e apaixonado. Sempre com expressões fechadas, pesadas e carrancudas, Edgerton não deixa que essa postura impeça que Richard ilustre suas emoções, como quando se coloca na frente dos policiais em vias de ser preso apenas pelo fato de participar do parto do seu primeiro filho ao lado de Mildred ou quando afirma a Mildred que cuidará dela de maneira emocionante, mas principalmente quando ele permanece calado em uma perceptível batalha interna. São dois trabalhos de atuação complexos pela simplicidade dos personagens que evocam expressões limitadas, mas que mesmo assim não deixam de ser relevantes ou bastante emocionais. A praticidade e a simplicidade emocional do casal são comoventes até mesmo quando eles se comportam de maneira conformista diante da ação da lei local que os impedem de ficar juntos, mas sem jamais desistir de reverter o quadro a seu favor, o que não significa necessariamente entregar-se a discursos inflamados ou momentos de explosão, raiva e revolta. Tudo é muito sensível e contido.
A passagem de tempo em “Loving” ocorre de maneira fluida e natural, apesar de alguns eventos repetitivos e/ou redundantes com viagens e idas e vindas, entretanto não são necessárias muitas informações para compreendermos a evolução temporal da narrativa, seja pelas mudanças de estação ou pelo aumento da família e/ou crescimento dos filhos. Essa suavidade no tom pode ser percebida pelo estilo de direção de Jeff Nichols que jamais se torna refém do melodrama já que os personagens sofrem, lidam com esse sofrimento e/ou enfrentam as consequências dos seus atos com absoluta resiliência. A aparente frieza da narrativa associada a uma trilha sonora triste e discreta e uma fotografia quente e calorosa é o que tornam o conjunto da obra tão especial, afinal apoiado em duas ótimas atuações, o filme mostra que para lutar por uma causa não são necessárias raiva, revolta, vandalismo ou qualquer outro tipo de atitude violenta, afinal como é uma história em que o amor move os personagens é o amor que romperá com as barreiras do preconceito e que fará justiça no coração e na lei dos homens.
Em 2016, o Oscar esteve envolto em uma polêmica já que nenhum negro esteve indicado em nenhuma das categorias, nem mesmo nas técnicas, e muito se discutiu sobre a representatividade dos negros dentro da indústria cinematográfica norte-americana e pouco se falou sobre méritos. Nenhum negro foi indicado ao Oscar por que não havia nenhum negro a ser indicado ou nenhum trabalho realizado por um negro foi bom o bastante para ser lembrado? Talvez, as duas coisas. Essa situação delicada fez com que a Academia fizesse mudanças drásticas na composição dos seus membros, dando mais espaço para a diversidade e para as minorias (que já não são tão minorias assim, é bem verdade), projetando reflexos a médio e longo prazo nesse cenário. Porém, já em 2017, houve um número recorde de indicações de atores, atrizes e profissionais negros na premiação, porém as duas perguntas feitas inicialmente ainda cabem, ajustadas diante desse novo painel. Os negros mereceram a indicação ou foram lembrados apenas para compensar a ausência do ano anterior? No caso do filme “Estrelas Além do Tempo”, protagonizado por três atrizes negras e indicado ao Oscar de Melhor Filme, é evidente que houve uma baita boa vontade dos integrantes da Academia para que o indicasse, revelando-se uma piada de mau gosto assim como as inúmeras que os negros estão cansados de ouvir ao longo da História por maior e mais digno que seja o apelo da história real. Dito isto, “Estrelas Além do Tempo” é um filme simpático, agradável e nada mais.
Contando com o maior número possível de diálogos expositivos por minuto, o roteiro escrito pelo diretor Theodore Melfi ao lado de Allison Schroeder, baseado no livro de Margot Lee Shetterly, explora duas vertentes confortáveis e desgastantes que são os clichês e os estereótipos, variando entre escolhas que funcionam com outras que incomodam. No auge da Guerra Fria, Katherine Goble (Taraji P. Henson) é uma exímia matemática que trabalha em um setor responsável por cálculos na NASA, dedicado apenas a mulheres negras, ao lado de suas melhores amigas Dorothy Vaughan (Octavia Spencer), que anseia por uma promoção para o cargo de supervisora, e Mary Jackson (Janelle Monáe), que pretende concorrer a uma vaga de engenheira. Quando Katherine é recrutada por Vivian Mitchell (Kirsten Dunst) para trabalhar na equipe do experiente Al Harrison (Kevin Costner), ela descobre a equação necessária para garantir a segurança da missão americana que pretende lançar pela primeira vez um homem ao espaço (e antes dos russos, de preferência), mas sem antes passar por inúmeras situações de preconceito e discriminação racial com algumas pitadas de humor e certa dose de sentimentalismo maniqueísta.
Uma das atitudes constrangedoras recorrentes do filme é o fato de existir um banheiro só para pessoas de cor assim como a conduta discriminatória que ocorre até mesmo na separação da garrafa de café que os colegas de trabalho de Katherine se recusam a dividir com ela e que servirão de estopim para a explosão emocional da personagem em determinado momento. Oferecendo um pano de fundo familiar e bastante simplista para ilustrar o perfil de mulher viúva e independente, mãe de três filhas, mas que ainda assim é uma excelente profissional, Katherine demonstra extrema segurança para debater tecnicamente qualquer elemento das suas análises matemáticas enquanto o roteiro trata os termos técnicos de forma genérica, mas que assume um tom positivo em termos de dinâmica narrativa já que funciona na maior parte do tempo (uma determinada sequência de palestra de Katherine soa artificial). Ainda assim um contraponto interessante que se torna um apelo cômico involuntário é ver os personagens brancos encarnando estereótipos, como Vivian na pele da mulher fria, racional e rabugenta e até mesmo a presença de Jim Parsons, da série “The Big Bang Theory”, como um engenheiro bobalhão, que basicamente funciona para enaltecer a estupidez deles, os brancos, com relação às personagens negras. Não é preciso nem dizer quem é que costuma interpretar esse tipo de personagem raso na maioria das produções cinematográficas, mas mesmo assim é importante lembrar: os negros.
Seguindo a cartilha dos dramas piegas e edificantes, o diretor Theodore Melfi faz um trabalho extremamente convencional ainda mais que o arco dramático das personagens é previsível, tornando ainda maior a antecipação de qualquer clímax dramático, como o uso da chuva como elemento catártico ou da trilha sonora de folhetim, já que a sensação que se tem é que o filme foi preparado apenas para orquestrar o momento da redenção de cada uma delas. Desde o início já é possível prever que cada uma delas terá espaço para um momento de discurso que pretende ser utilizado no clipe do Oscar, ou seja, tudo é friamente calculado para despertar a emoção. A ótima fotografia favorece o tom da narrativa mais determinante para cada momento, inclusive reforçando o artificialismo em alguns momentos enquanto que nas sequências que simulam imagens televisivas se apresenta de maneira bem sucedida. Em linhas gerais, o elenco do filme é muito eficiente e carismático a começar por Taraji P. Henson que confere credibilidade, energia e intensidade a uma personagem que se recusa a fazer papel de vítima, embora sofra com as constantes humilhações enfrentadas. Octavia Spencer e Janelle Monáe oferecem atuações honestas e corretas, cada qual com o seu momento, mas sem o mesmo brilho e a mesma entrega que a colega de cena, embora a camaradagem entre as três salte aos olhos. Kevin Costner está muito à vontade na pele do líder da equipe que é tão patriótico quanto pragmático, mas que gradativamente dá indícios de generosidade, e mesmo quando toma atitudes politicamente corretas não perde seu apelo até quando serve para o roteiro ilustrar o momento em que o homem branco salva o dia dos negros. Mahersala Ali tem carisma e uma boa presença em cena na pele do potencial romântico de Katherine, mesmo com pouquíssimo tempo de cena (a sequência do jantar é lindamente encenada).
Justiça seja feita, a narrativa de “Estrelas Além do Tempo” tem muita força e apelo, ainda mais inspirada em mulheres reais, pois é um filme afirmativo para a raça negra e ainda discursa fortemente sobre o empoderamento feminino. Diferentemente de Katherine, o espectador não precisa ler nas entrelinhas para perceber que “Estrelas Além do Tempo” tem uma excelente história para contar, porém o caminho escolhido aqui foi o mais fácil, o que nem sempre é o mais recompensador em termos de mérito e qualidade. E essa lição é atemporal, universal e indiscriminatória.
“Ave, César!” é uma comédia extremamente problemática escrita e dirigida pelos maravilhosos irmãos Joel e Ethan Coen que tenta funcionar como uma homenagem ao velho cinema hollywoodiano dos grandes estúdios do passado em uma espécie de paródia levemente inspirada em fatos reais, mas que parece ter deixado o bom humor e as melhores piadas do lado de fora do cinema. Eddie Mannix (Josh Brolin, monocromático) é um alto executivo do estúdio Capitol que se encarrega de garantir o bom funcionamento das produções e o bem-estar dos astros, mesmo que isso signifique servir como babá ou até mesmo conselheiro amoroso. Quando Baird Whitlock (George Clooney, repetindo-se na canastrice), maior estrela do cinema da época, é sequestrado durante as gravações da mais nova superprodução bíblica do estúdio, Eddie também precisa lidar com as insatisfações do diretor Laurence Laurentz (Joseph Fienes, em uma boa e pequena participação) com a escolha imposta pelo estúdio de Hobie Doyle (Alden Ehrenreich, fraco como deveria ser), um ator limitado e especializado em westerns, para outra grande produção, mas ambientada em um cenário da alta sociedade, enquanto recebe uma proposta praticamente irrecusável para abandonar o cinema e partir para trabalhar na televisão que promete ser a nova galinha dos ovos de ouro do entretenimento.
Apoiada por uma produção técnica eficiente, especialmente a direção de arte que se diverte com a diversidade de cenários, a narrativa do filme quer evocar através da nostalgia algum sentimento de identificação, especialmente para o público cinéfilo, porém o roteiro é muito burocrático na construção de sequências que buscam extrair algum tipo de humor até porque Eddie é uma figura aborrecida e o filme parece investir em um tom mais sério como o de uma investigação criminal dentro dos estúdios de gravação que até remete um pouco aos filmes “noir”, sendo os únicos momentos de raro desprendimento aquele em que Eddie pede aos representantes de diferentes religiões a aprovação quanto à versão de Jesus Cristo bancada pelo estúdio e o que se passa em uma sala de projeção envolvendo uma senhora e um lenço. Embora se justifique de maneira orgânica, o filme acaba amarrando os eventos dessa sua trama através de uma sucessão de esquetes que evocam atores e/ou filmes clássicos do cinema, com maior ou menor inspiração, como a atriz que interpreta personagens doces, mas que se comporta como uma megera atrás das câmeras, vivida por uma canastrona Scarlett Johansson ou o musical interpretado por um grupo de marinheiros, liderados por um inspirado Chaning Tatum.
Já no que se refere ao núcleo de Baird Whitlock, o seu sequestro acaba se tornando uma espécie de terapia coletiva dos autores, escritores e roteiristas que se sentem menosprezados diante do “status quo” estabelecido pelos estúdios que mimam suas estrelas e minam os responsáveis diretos pela criação das histórias que rendem milhões à indústria. Trata-se de um discurso válido, ainda mais vindo dos irmãos Coen, que sempre foram escritores talentosos, mas que penaram até se tornarem diretores reconhecidos, mas acaba sendo uma defesa de classe vazia e desperdiçada dentro de um filme fraco deles, o que não deixa de ser duplamente frustrante, mesmo sob uma conotação claramente cômica. O desconforto de Hobie Doyle em atuar em filmes que não figuram em sua zona de conforto rendem as melhores piadas do filme, mas elas são tão diluídas e de maneira tão irregular no decorrer do filme que a sensação que se tem é que cada um dos núcleos do filme mais se parecem com ideias inacabadas dos irmãos Coen que eles reuniram abruptamente em um mesmo filme na expectativa que funcionassem pelo conjunto da obra, o que não acontece.
Transformando astros do cinema em personagens reais de uma trama investigativa e misteriosa sobre a presença de comunistas na indústria cinematográfica, “Ave, César!” acaba sendo um filme pouco inspirado dos irmãos Joel e Ethan Coen mesmo que eles busquem dialogar através do humor negro que lhes é tão habitual e com um tema tão representativo em suas carreiras e que eles se sentem tão à vontade que é o de brincar de fazer cinema e ainda assim fazer bem feito, porém aqui não é o caso.
“Um Limite Entre Nós”, cujo título original é “Fences” que significa “cercas”, é um filme sobre conflitos. Troy Maxson (Denzel Washington) é um homem amargurado, ressentido, de maus hábitos, de modos indelicados, que trabalha como lixeiro e que entende que a vida está em dívida com ele. Frustrado por uma potencial carreira de jogador de golfe que fora interrompida abruptamente, ele vive ao lado da esposa Rose (Viola Davis), uma mulher amorosa, dedicada e que é capaz de abstrair a postura, as ofensas e até mesmo perdoar os piores defeitos do seu marido por amar o seu homem incondicionalmente. Dirigido pelo próprio Denzel Washington e ambientado na década de 50 do século XX na cidade de Pittsburgh, o filme não nega a sua natureza teatral, pois é um filme que possui uma variação mínima de cenários e conta com inúmeros e extensos monólogos e diálogos, sendo que em alguns momentos se tornam cansativos, mas que servem como um intenso exercício de eloquência e um riquíssimo estudo de personagens, além de contar com um elenco formidável e, em especial, duas performances centrais arrebatadoras.
Diante dessas características, o destaque óbvio de “Um Limite Entre Nós” são os atores Denzel Washington e Viola Davis. Eles são os donos de um filme que possui uma linguagem cinematográfica relativamente limitado por um trabalho de adaptação que se preocupou em não perder a qualidade do texto da obra teatral do dramaturgo August Wilson, também responsável pelo roteiro. Denzel Washigton atua com força e vigor para tornar Troy um homem arrogante e detestável, especialmente pelo seu jeito resmungão e seu linguajar ofensivo, inclusive direcionado para a mulher que ele tanto ama. A ferocidade com que o ator explora a verbalização do personagem é algo impressionante, pois por mais duro e cruel que ele possa parecer, ele está buscando uma forma de garantir um futuro melhor para a sua família, mesmo que seja a sua maneira. Só que essa postura agressiva esconde a hipocrisia e o egoísmo de uma vida dupla, afinal ele ressente o papel cheio de responsabilidade que precisa desempenhar dentro do seu lar e aquele que ele sufoca e esconde de todo mundo, mas que também faz parte de quem ele é de verdade. Já Viola Davis é elegante e sofisticada ao expressar uma série de emoções contraditórias que deixam evidentes os sacrifícios físicos e emocionais que Rose teve que superar para manter o casamento e um mínimo de harmonia e dignidade familiar. No papel de conciliadora, a atriz é uma força natureza, como um sopro de vento que chega para abrandar o fogo das palavras proferidas pelo companheiro de cena. E quando Rose é confrontada com uma dura verdade, Viola Davis se apresenta de maneira assombrosa, como uma tempestade furiosa carregada de tristeza e de dor, em uma sequência em ela atinge o ápice de uma maneira visceral e arrepiante.
A narrativa vai pontualmente inserindo personagens secundários que oferecem pistas sobre o pano de fundo sobre a dinâmica entre Troy e Rose, como Lyons (Russell Hornsby), o filho mais velho do casal, que se dedica à música a contragosto do pai que o considera um preguiçoso enquanto a mãe o apoia; ou Cory (Jovan Adepo), o filho mais novo, que enfrenta a resistência do pai em ser jogador de futebol americano para não sofrer o mesmo que ele no passado, apesar da mãe entender que é uma forma do filho agradá-lo; ou ainda Gabriel (Myklety Williamson), irmão deficiente mental de Troy, que revela certo distanciamento e ressentimento com ele, apesar do carinho e devoção para com ela. Até mesmo Jim (Stephen Henderson), colega de trabalho de Troy, já parece habituado com o comportamento do amigo e nem o leva mais a sério, nem mesmo quando ele procura constranger a esposa, além de entender que ela é a melhor coisa que poderia ter ocorrido na vida dele. Todos estes personagens oferecem pistas que ajudam a construir a personalidade dos personagens centrais e revelam as cercas emocionais que circundam a vida do casal à medida que conhecemos cada vez mais sobre o passado dos dois. A cerca que Troy passa o filme tentando construir, já existe entre os personagens há muito mais tempo.
Apesar do viés teatral, Denzel Washington realiza um trabalho de direção bastante sóbrio já que ele procura manter uma movimentação razoável de câmera para impedir que as sequências de diálogos se tornem cansativas, seja através de cortes rápidos de planos e contra-planos, seja através de eventuais planos-sequências ou pequenos movimentos de câmera laterais, da direita para a esquerda, ou vice-versa, ou até mesmo apostando em lentas aproximações de câmera até construir um plano fechado, ou seja, em nenhum momento Washington se acomoda e nem fica totalmente refém do roteiro durante a narrativa, inclusive quando a prepara para o seu ato final ao fazer com que Troy encare a câmera. Analisando friamente, o filme até pode não cumprir todos os requisitos técnicos da linguagem cinematográfica, mas não é uma produção negligente e o alcance dramático é legítimo e palpável, logo não há como desmerecê-lo por completo pela forma escolhida para narrar a história já que ela funciona quase que por completo. Washington também se apresenta como um ótimo diretor na condução do elenco já que os atores coadjuvantes realizam trabalhos consistentes, especialmente Myklety Williamson que constrói um personagem triste e melancólico, mas com pequenos lampejos de alegria e com muita intensidade, e o ótimo Jovan Adepo que interpreta o filho adolescente e rebelde que gradativamente vai tomando coragem para enfrentar o pai e no processo se tornando mais parecido com ele. A fotografia mergulhada em tons acinzentados realça o tom opressivo e melancólico do filme que registra algum sinal de cor apenas quando focaliza o pôr do sol ao longe assim como parece estar distante dos personagens (assim como ele vai se abrir de maneira próxima em um momento oportuno como uma espécie de redenção). O filme é concebido com tamanha inclinação para a encenação de uma peça que nas poucas tentativas que o filme faz para fugir dessa zona de conforto de maneira mais drástica, ele peca e se perde, especialmente em algumas transições de tempo ou quando permite momentos de reflexão dos personagens ao som de uma trilha sonora composta por jazz, mas que até então se apresentava de maneira discreta, quase em silêncio.
Pontuado por duas performances hipnotizantes e de tirar o fôlego, “Um Limite Entre Nós” não nega sua influência teatral, mas também não deixa de ser um filme contundente por causa e apesar disso. É um drama sufocante sobre uma vida de escolhas, decisões e decepções. É um drama pesado sobre vidas repletas de sentimentos reprimidos e palavras que são disparadas para ferir e machucar. É um drama humano sobre um homem e uma mulher que chegam ao limite da tolerância e da compreensão até alcançarem uma barreira intransponível. É um drama sobre uma família em busca da sua própria identidade. “Um Limite Entre Nós” é um drama cercado de significados e emoções à flor da pele. É um filme que não esconde suas raízes teatrais? Filmão!
Lee Chandler (Casey Affleck) é um zelador que atua em uma administradora de condomínios em Boston como uma espécie de faz-tudo e que precisa lidar diariamente com os mais diversos tipos problemas e de pessoas, nem sempre das melhores naturezas. Reservado e introspectivo, ele demonstra que na vida pessoal não é capaz de tomar as melhores escolhas, porém quando seu irmão mais velho (Kyle Chandler) morre em decorrência de um ataque cardíaco em Manchester, ele precisa retornar a sua cidade natal e atuar como um pai substituto para o seu sobrinho Patrick (Lucas Hedges), de acordo com a vontade do irmão que fora expressa em testamento, forçando-o a agir de maneira mais condizente com o seu mais novo papel de tutor, o que ainda lhe custa muito caro em função dos fantasmas de seu passado.
O roteirista e diretor Kenneth Lonaghan (do sensível “Conta Comigo”) conduz esse drama com um tom sóbrio, frio e impessoal que tem em seu DNA a personalidade de Lee já que ele oferece um trabalho sutil e discreto, mas de extremo bom gosto ao jamais deixar que o filme descambe para o melodrama gratuito. É como se estivéssemos acompanhando a jornada dos personagens ao vivo, em tempo real e nem mesmo assim, Lonaghan deixa de ser um diretor criativo e inquieto já que parece prolongar as sequências apostando em longos planos que fogem da obviedade técnica, mas que quase sempre vem acompanhado de cortes para outros planos pouco convencionais, como se quisesse captar um raro e genuíno momento dramático, como na sequência em que Lee recebe a notícia da morte do irmão pela primeira vez ou quando Patrick recebe a mesma notícia pelo tio acompanhado da solidariedade dos seus colegas de time. Nada que se compare à terrível e avassaladora sequência que serve de ponto de virada emocional para a percepção do contexto da narrativa conduzida de maneira sensível, angustiante e embalada por uma trilha sonora nervosa e cortante. Aliás, as composições de Lesley Barber só tornam a embalagem do drama ainda mais sufocante, mas sem jamais se tornar estridente ou apelativa, mesmo quando faz o uso de óperas em sequências de câmera lenta.
Com uma fotografia absurdamente linda que capta a letargia emocional e a melancolia do universo em que os personagens estão inseridos, “Manchester À Beira-Mar” possui um roteiro que capta as emoções dos personagens diante do luto de maneira bastante gradativa e que sutilmente vai dissecando dramas e traumas que estão sob a superfície aparente. Nesse ponto, os “flashbacks” envolvendo Lee e seu sobrinho, ainda quando criança, ajudam a construir uma base emocional bastante legítima quando o tio precisa encarar o jovem diante de uma notícia tão pesada, mas que revela um pequeno pedaço desse distanciamento atual. Esses “flashbacks” também ajudam a oferecer outras pistas sobre o passado de Lee, especialmente sobre a sua relação instável e delicada com sua ex-esposa Randi (Michelle Williams) e seus três filhos que no tempo presente já não fazem parte da sua rotina por motivos inicialmente obscuros. Muitas vezes inseridos de maneira abrupta, os “flashbacks” acabam servindo muito mais como lembranças de Lee que são trazidas à tona aleatoriamente do que propriamente elementos que servem propositadamente à estrutura narrativa, afinal não recebem um tratamento estético que os diferenciem do tempo presente e que revelam uma maturidade e um controle sobre as diversas camadas da narrativa que são bastante elogiáveis por parte de Kenneth Lonaghan.
Casey Affleck oferece mais um trabalho de atuação intenso e complexo já que ele parece ter nascido para esse tipo de personagem amargurado, ressentido e melancólico, logo a sua limitação técnica acaba sendo um recurso extremamente bem-vindo para o que se espera do personagem. Seja através da falta de traquejo social, a inexpressividade ou a falta de experiência em demonstrar sentimentos, como quando Lee é surpreendido por um abraço do sobrinho ou interrompe uma ligação por não saber como lidar com uma determinada notícia, Affleck tem uma presença de cena forte, sensível e admirável ainda que Lee se projete de maneira frágil emocionalmente até para dizer um simples “sim”. Lucas Hedges é um jovem ator talentoso e seguro que interpreta de maneira natural e correta um adolescente temperamental e de personalidade forte cujo traço de rebeldia esconde na verdade a sua tristeza em ter que lidar de maneira tão prematura com a morte do pai que tanto admirava e com o repentino convívio com o tio com o qual ele foi perdendo a conexão à medida que crescia. A dinâmica divertida e até ocasionalmente aborrecida entre Lee e Patrick, que acaba se estendendo além do necessário em alguns momentos, traz certa leveza à narrativa, mas que se torna importante para o restabelecimento da relação e da confiança entre os dois à medida que precisam de tratar de detalhes burocráticos e peculiares envolvendo o velório, o funeral e o testamento. Já a talentosa Michelle Williams que aparece em doses homeopáticas durante a narrativa oferece ao menos duas catarses dramáticas legítimas e contundentes, sendo a última delas em uma passagem irregular que revela uma inesperada mão pesada de Kenneth Lonaghan, apesar dos bons diálogos.
Há um ditado popular e cristão que diz que Deus não nos dá uma cruz maior do que podemos carregar. O clima melancólico é tão presente em “Manchester À Beira-Mar” que quando o filme assume um tom mais leve, a sensação de desconfiança é inevitável, como se Kenneth Lonaghan estivesse preparando uma armadilha e essa tensão presente na postura e no comportamento de Lee torna-se a nossa expressão de apreensão e expectativa. Dessa forma, nós também carregamos a cruz de Lee ao longo do filme. Essa empatia é fundamental para que o drama do fogo e do gelo da jornada de Lee seja sentido e compreendido em todas as suas complexas dimensões custe o tempo que custar.
Um dos crimes mais terríveis envolvendo uma celebridade do esporte e do cinema e que mais chamaram a atenção da sociedade e da mídia global foi o duplo homicídio atribuído ao ex-atleta de futebol americano OJ Simpson contra Nicole, sua ex-esposa, e Ronald, o namorado dela, na noite de 12 de junho de 1994. Astro renomado e idolatrado pelos americanos, OJ se arriscou como comentarista esportivo e ainda ingressava em sua carreira como ator de comédia, mais especificamente na franquia “Corra Que A Polícia Vem Aí“, quando ocorreram as mortes e as evidências levaram a suspeita de que ele cometera os crimes, iniciando um intenso processo de captura, acusação e consequente julgamento através de um árduo e turbulento trabalho liderado pela promotora Marcia Clark do lado da promotoria e da equipe de defesa liderada por Robert Shapiro. Sob a direção geral do experiente e irregular Ryan Murphy, de produções como “Nip/Tuck” e “American Horror History”, a série televisiva “O Povo Contra OJ Simpson” chega para dissecar os detalhes e apresentar outros personagens afetados por esse sórdido caso, destacando o instável e desequilibrado homem supostamente responsável pelo crime e a grande mulher que enfrentou o preconceito de gênero enquanto lutava para ser respeitada e fazer justiça.
Um dos aspectos mais controversos do caso envolveu a onda de crimes raciais cometidos pela polícia que tomou conta dos EUA, mais especificamente na cidade de Los Angeles, sendo que o caso de OJ Simpson foi inserido dentro desse contexto de maneira distorcida e oportunista. Apesar disso, a série empodera-se da discussão sobre a discriminação racial de maneira bastante competente, especialmente a partir da dinâmica estabelecida entre o advogado de defesa Johnnie Cochran (Courtney B. Vance) e o promotor assistente de acusação Christopher Darden (Sterling K. Brown), mas que se desenvolve ao longo da série com muitas outras vertentes, especialmente pela equipe de defesa de OJ interessada nessa repercussão, inclusive chamando a atenção para o comportamento e a ação dos policiais de LA contra a população negra. Enquanto o veterano Vance legitima a sua performance através da eloquência de seus discursos entusiasmados que mesclam as principais qualidades e defeitos de um advogado experiente com a de um pastor inescrupuloso (e vice-versa), Brown se mostra um dos atores mais completos, versáteis e interessantes da atualidade, vide o seu sensível trabalho nesta série e também em “This Is Us”.
A discussão sobre a sanidade mental de OJ que chegou a ser sugerida a favor dele quando decidiu não se entregar espontaneamente para a polícia e iniciou uma fuga cinematográfica que acabou sendo transmitida ao vivo por todas as emissoras do país sob a ameaça de uma arma apontada por ele contra sua própria cabeça acabou ficando até em segundo plano quando a “carta da raça” foi lançada no jogo jurídico. Outra grande sacada do roteiro ao apresentar esse vasto e amplo painel é que muitas informações e pistas são inseridas inicialmente, porém são contextualizadas à medida que o julgamento avança, normalmente em momentos cruciais, revelando um compromisso honesto dos roteiristas com o espectador que em nenhum momento é enganado por mais surpreendentes que sejam certas revelações e reviravoltas (o inverso também ocorre, mas em versões mais homeopáticas). Em contrapartida, o roteiro acerta quando oferece um relativo espaço para os membros do juri, mostrando-os como peças do tabuleiro do jogo orquestrado pelos advogados de defesa e pela promotoria, mas quando foca em seus dilemas pessoais, em seus momentos de crise e até mesmo no posicionamento que cada um tem com relação ao caso a abordagem torna-se mais superficial sem jamais corresponder totalmente à complexidade envolvida pelo papel dos jurados.
Ao longo da série, o diretor Ryan Murphy parece se sentir à vontade para arriscar com diversas soluções estéticas para criar uma dinâmica visual que seja atraente, sendo que em quase todos os episódios, inclusive aqueles que não são dirigidos diretamente por ele, há uma predileção por rondar os personagens com giros enquanto eles travam algum tipo de discussão entre si ou na utilização da câmera lenta para alavancar expectativas dramáticas. O trabalho de direção de arte é muito eficaz ao retratar o excesso de formalismo nos ambientes do tribunal e da promotoria, reforçando que se trata de uma produção de época através de pequenos detalhes, como nos aparelhos telefônicos e nos poucos eletrônicos que existiam na época, mas não deixa de explorar certa extravagância no quartel general da equipe de defesa, mas principalmente na mansão de OJ que ostenta seus prêmios, troféus e até mesmo uma estátua em tamanho real no jardim. Há ao longo da série algumas composições envolvendo os núcleos da defesa e da acusação que são assertivas, principalmente quando discussões entre os dois lados do caso são intercaladas para evidenciar a estratégia que será empregada em cada um deles com uma boa dinâmica estabelecida pela montagem. O que não se apaga em nenhum momento, no entanto, nem mesmo nos melhores momentos da equipe de defesa, como no interrogatório dos policiais ou no lance sobre as luvas, é a existência de um tom cômico e às vezes até jocoso ao ilustrar os movimentos e os personagens da equipe de defesa de OJ, apresentando as situações carregadas de um humor involuntário ou ocasional.
O trabalho da promotoria, por exemplo, é apresentado de maneira séria, competente e dotado de uma postura dramática e emocional reconhecíveis, embora não esteja isento de erros de julgamento, equívocos humanos e falhas processuais, afinal Márcia e Christopher são apresentados como advogados competentes, porém imperfeitos, longe de representarem o impecável estereótipo hollywoodiano. Já a defesa de OJ não deixa de ser apresentada também como uma equipe profissional formada por até cinco advogados de primeira linha, considerado como o “Time dos Sonhos” pela imprensa, mas parece que em alguns momentos o deboche e o sarcasmo tomam conta desse núcleo, quase sempre proposital, especialmente pela maneira como as suas manobras são ilustradas, além das já citadas, mas também na montagem e remontagem do júri, na redecoração da mansão de OJ e até mesmo pelos atores escolhidos para defendê-los. É como se a própria série não quisesse que o espectador os levasse a sério, uma postura que afeta a imparcialidade e enfraquece um pouco o apelo da série ainda que a narrativa permita que a defesa celebre pequenas vitórias em escala exponencial ao ponto de inflamar os americanos e a opinião pública com relação a fatos secundários e de importância relativa dentro do caso, mas que no final das contas acabam sendo cruciais e determinantes, especialmente para os jurados responsáveis por decidir o caso.
Cuba Godding Jr. realiza um bom trabalho de composição ao usar o seu limitado repertório de atuação para ilustrar a fragilidade emocional de um homem frio, calculista, fraco, perturbado, instável e covarde que se mostra imaturo e incapaz de lidar de maneira responsável e apropriada com a gravidade absurda do ato criminoso e violento em que está inserido. Para o bem ou para o mal, o OJ de Cuba Godding Jr. é dissimulado e um péssimo ator. A ótima Sarah Paulson já interpreta com vigor e delicadeza uma figura emocionalmente oposta já que é mãe de dois filhos, enfrentando um divórcio litigioso e que se mostra uma mulher firme, justa, corajosa, destemida e determinada, afinal ela acredita incondicionalmente que condenar OJ é a melhor forma de fazer justiça a favor das vítimas e suas famílias, inclusive a de Ronald que em meio à discussão acaba se tornando uma nota de rodapé em função da repercussão midiática sobre os personagens mais famosos envolvidos no crime. E ainda assim ela enfrenta com sensibilidade e coragem as artimanhas secundárias utilizadas para desestabilizá-la, inclusive as ações da imprensa sensacionalista e as impressões causadas pelo seu cabelo ou pelas roupas que usa, mas sem deixar de ser uma mulher forte ainda que ocasionalmente vulnerável.
Em uma atuação dramática relativamente convincente, David Scwimmer interpreta Robert Kardashian, amigo íntimo há mais de 20 anos de OJ, sendo apresentado como uma das pessoas que mais se abalaram com o envolvimento de alguém tão próximo a sua família em um crime tão bárbaro, mas que jamais deixou de apoiar o amigo, inclusive trabalhando ao lado da equipe de advogados da defesa, mesmo nos seus momentos de maior dúvida e que vão se tornando cada vez mais críticos, o que o torna uma figura humana bastante reconhecível aos olhos do espectador. Já John Travolta, que também é produtor da série, surge com um visual esticado e bizarro, atuando de maneira afetada e caricata na pele do vaidoso e orgulhoso Robert Shapiro, advogado de defesa de OJ, que até tem lá seu nível de excentricidade atraente e alguns bons momentos, mas o resultado é bastante irregular, sendo que a presença de Travolta acaba sendo mais distrativa do que útil. Nathan Lane se mostra muito mais à vontade na pele do advogado F. Lee Bailey que tenta ser uma espécie de conciliador entre os egos da equipe de defesa, embora ele mesmo também não veja a hora de ter o seu momento para aparecer e brilhar. Kenneth Choi é uma gratíssima surpresa como o juiz Lance Ito, afinal o seu personagem tem uma postura bastante racional e protocolar diante do que está acontecendo ao seu redor, mas ainda assim não deixa de mostrar bom senso e outras virtudes que revelam um pouco da sua conduta humana.
Em um universo onde mentiras e teorias conspiratórias podem ter o mesmo peso que provas e circunstâncias incontestáveis e que a vida pessoal de advogados, promotores, juízes e jurados pode se tornar uma importante parte da narrativa mesmo a contragosto, “O Povo Contra OJ Simpson” é uma série contundente sobre a manipulação da justiça, a influência da imprensa e a histeria coletiva em uma narrativa sobre manobras e distorções que parece se interessar apenas em reproduzir a história que mais convém para o discutível gosto da opinião pública em que a verdade e a justiça podem se tornar meros detalhes.
Death Note
1.8 1,5K Assista AgoraDEATH NOTE
“Death Note” é um filme americano produzido pela Netflix cuja adaptação se dá a partir de um renomado anime japonês escrito por Tsugumi Ohba e Takeshi Obata. Material original à parte (que eu desconheço), o filme cujo roteiro foi escrito pelo trio Jeremy Slater e os irmãos Charles e Vlas Parlapanides deixa de lado a suposta abordagem moral que serviria de pano de fundo para a narrativa para criar uma trama intrincada, irônica e debochada sobre o acaso e deixa a cargo do diretor Adam Wingard a construção de uma atmosfera que se assemelhe com a de um pesadelo para construir um suspense psicológico tenso e esteticamente atraente. Diante do promissor material que tinham em mãos, o tiro não chegou a sair pela culatra, mas entre altos e baixos, o resultado final acaba sendo bastante irregular.
Light Turner (Nat Wolff) é um adolescente inteligente, introspectivo e imaturo que ganha de presente do destino o “Death Note”, o tal “Caderno da Morte” que lhe dá o poder de escolher quem deve morrer desde que ele escreva o nome das suas vítimas em suas páginas. Através da interferência de Ryuk (voz de Willem Dafoe), uma espécie de Anjo da Morte, Light se deixa influenciar, agindo como uma espécie de Justiceiro ao lado de Mia (Margaret Qualley), sua paixão platônica, porém ele sentirá na pele que ter o poder sobre a vida das pessoas não é uma tarefa das mais simples assim. A premissa é estabelecida de maneira absurda desde o primeiro momento já que o livro literalmente cai do céu para as mãos de Light, sendo que o roteiro do trio parece ter ciência disso já que apresenta Ryuk como um demônio dotado de um divertido senso de humor negro, que devora maçãs, jogando-as em qualquer lugar e que faz questão de debochar das próprias regras que estão escritas no caderno, como se ele mesmo não as levasse a sério, embora leve já que soa ameaçador quando necessário.
A partir do momento que o roteiro estabelece a dinâmica entre o que Light escreve no caderno e o “modus operandi” de Ryuk, a comparação com a proposta de filmes como “Brainscan – Jogo Mortal” ou a série “Premonição” é inevitável. Aqui, o estabelecimento da premissa, no entanto, ocorre de maneira acelerada já que a execução da primeira vítima não demora, através de uma série de coincidências que culminam em uma decapitação, assim como a passagem de tempo que mostra a ascensão de Light ao posto de Justiceiro, sob a alcunha de Kira, e até mesmo a introdução de L (Lakeith Stanfield), uma espécie de agente especial que se encarrega de descobrir o verdadeiro responsável por essas mortes em série. Embora seja uma introdução ilustrada de forma dinâmica, a sensação que se tem é que o roteiro perdeu a oportunidade de se aprofundar um pouco mais no que havia de mais intrigante e complexo em sua abordagem a partir dos questionamentos morais, dos anseios e das dúvidas de Light e Mia, por exemplo.
Se inicialmente L é mal introduzido como uma figura misteriosa e extravagante dentro do realista contexto policial (ele adora comer doces e parece não dormir devido o alto nível de açúcar presente no sangue), a partir do momento que a disputa entre ele e Light se transforma em um jogo de gato e rato, mesmo que entre dois jovens instáveis, os resultados são melhores pela condução das reviravoltas por parte do roteiro já que um precisa estar à frente do outro e também em termos de direção já que Adam Wingard tem a oportunidade de criar sequências de tensão, como as que envolvem os agentes do FBI ou o destino do secretário oriental de L, e até mesmo outras mais energéticas no que se refere à ação, como em uma sequência de perseguição a pé ou no bom clímax que se passa em uma montanha-russa. O diretor de fotografia David Tattersal sabe explorar diferentes variações de cores nas sequências diurnas e noturnas, especialmente aquelas cuja locação simula o Japão ou durante um bom duelo de diálogos entre Light e L que se passa dentro de uma lanchonete, porém a qualidade do trabalho se torna mais discutível mesmo durante as aparições de Ryuk. Se por um lado, ele e Wingard acertam em revelar o mínimo possível da sua natureza física, o que faz com que os ambientes sejam tomados pela falta de luz, refletindo apenas a claridade dos seus olhos malignos, sempre que a câmera busca um close da entidade é como se esforço se tornasse em vão, pois chama mais a atenção para o nível fraco dos efeitos especiais. Seria mais inteligente se o espectador mal visse quem era Ryuk e/ou se fosse possível apenas ouvir a sua voz até porque o trabalho de Willem Dafoe por si só já é assustador e horripilante, na medida certa, como somente ele é capaz de fazer (a voz já seria suficientemente marcante sem a necessidade de se materializar uma presença física).
Nat Wolff é um jovem ator bastante talentoso e aqui precisa se equilibrar entre as diferentes versões de Light, como um jovem perturbado por uma presença maligna desconhecida, vide a sequência que se depara com Ryuk pela primeira vez e reage com autenticidade e escandalosamente assustado. Ou quando se deixa afetar pelo poder que tem em mãos, mas por acreditar que age de maneira correta, porta-se como alguém justo, racional e idealista, mostrando segurança, especialmente nos embates com Mia e Ryuk. Porém, ao chegar nos momentos em que se mostra mais obcecado e transtornado pelos efeitos colaterais da influência do caderno é justamente quando sua atuação se torna mais caricata e irregular, especialmente no final do segundo ato quando Wolff emula uma versão jovem e cartunesca de um Nicolas Cage em fase ruim. Essa mesma oscilação atinge os outros nomes do jovem elenco. Margaret Qualley se mostra uma jovem atriz promissora, mas a sua personagem parece agir de acordo com a necessidade do roteiro, logo as suas mudanças de postura e comportamento acabam favorecendo a atriz quando precisa evocar ingenuidade, fragilidade e/ou sensualidade, mas quando Mia apresenta uma postura mais agressiva, a jovem atriz já não confere a credibilidade necessária para a personagem naquele momento. Já Lakeith Stanfield parece se sair melhor quando L mantém parte do seu rosto coberto já que precisa explorar o tom da voz e a expressividade dos olhos. Quando o personagem perde esse tom de mistério, ele acaba se tornando uma caricatura de si mesmo e a atuação de Stanfield acaba deteriorando, mesmo que a sequência na lanchonete ofereça um bom duelo de atuações entre ele e Wolff.
Contando com um terceiro ato que explora o melhor que a premissa do filme tem a oferecer e contando com dois saborosos momentos envolvendo músicas românticas da década de 80, “Death Note” é um filme irregular e incompleto que mesmo desperdiçando parcialmente o seu potencial ainda assim é capaz de manter o interesse até o final. Não deixa de ser igualmente irônico e debochado que a sensação que se tem é de que o filme é uma verdadeira montanha-russa de emoções, qualidades e defeitos, algo que certamente faria com que Ryuk risse debochadamente da nossa cara.
6.0/10
Onde Está Segunda?
3.6 1,3K Assista AgoraONDE ESTÁ SEGUNDA?
“Onde Está Segunda?” é uma ficção científica que traz em seu pano de fundo um futuro distópico em que a lei do filho único alcançou uma escala global como uma forma de controlar a superpopulação no mundo que vive também uma crise de alimentos, logo uma família com irmãos não é permitida em função da política de alocação estabelecida por Nicolette Cayman (Glenn Close) que promete que os filhos excedentes serão mantidos em criogenia até que a ordem natural do mundo se restabeleça. Dentro dessa realidade, Terrence Settman (Willem Dafoe) se vê na obrigação de esconder suas setes netas, após a morte da sua filha durante o parto, com o objetivo de ensiná-las técnicas de sobrevivência para que não sejam descobertas e dando a cada uma delas o nome de um dia da semana como uma forma delas se organizarem dentro de uma rotina.
Após 30 anos de sigilo, as sete irmãs (vividas por Noomi Rapace) se veem dentro de um impasse a partir do momento que Segunda desaparece sem deixar vestígios, fazendo com que o segredo delas seja ameaçado, inserindo-as dentro de uma conspiração que vai se revelando cada vez mais íntima no decorrer da narrativa. O roteiro escrito pela dupla Max Botkin e Kerry Williamson estabelece o contexto, mas não tem a pretensão de fazer com que a história seja um manifesto a respeito do tema da superpopulação. A falta de problematização sobre o assunto não impede que o filme seja apreciado, o que permite que o diretor Tommy Wirkola faça com que “Onde Está Segunda?” seja um thriller de ficção-científica extremamente dinâmico e eficiente em que se destacam especialmente uma crua sequência de luta que se passa dentro do apartamento das irmãs e outra que envolve uma longa e entrecortada perseguição a pé. Aliado a uma fotografia fria e impessoal e um trabalho de direção de arte sutil e sofisticada, a trama possui três atos muito bem definidos pelo roteiro e a direção só peca pelo exagero na estereotipização dos vilões e seus capangas, quase sempre filmados em pose e em câmera lenta.
Estabelecendo a interação das sete protagonistas de maneira competente, salvo alguns momentos em que os efeitos especiais se tornam mais chamativos e distrativos, Wirkola conduz as sequências de luta com a crueza necessária, respeitando a personalidade de cada uma das personagens, e as sequências de ação conseguem mesclar a tensão com uma montagem vibrante, sem soar esquizofrênica, até mesmo quando a trilha sonora não consegue ser tão imponente quanto se pretendia. A atriz Noomi Rapace tem a sua disposição um palco para explorar as mais diferentes facetas de cada uma das personagens, explorando as mais diversas nuances, sem deixar de transparecer a delicadeza, a melancolia e/ou a força emocional de cada uma delas. A jornada do filme funciona muito através da jornada dramática das personagens, o que recai muito sobre a qualidade do trabalho e da entrega de Noomi Rapace seja em sua dedicação física assim como na carga emocional que ela deposita em suas composições, logo ela realiza um show à parte.
A evolução da narrativa não está isenta de falhas e furos haja vista que a própria premissa possui a sua dose de conveniências, seja ao estabelecer o parto de sétuplos que assumem o nome de uma mãe que em vida já possuía um registro ou até mesmo a ideia dos nomes pelos dias da semana (o teste começa pela Quinta e a trama gira em torno da Segunda, ou seja, que diferença faz?). A ideia de inserir as personagens como uma bancária também não faz jus à promessa de ser uma profissão que atenderia as principais características das sete irmãs já que não se confirma, mas serve apenas para cumprir a necessidade do roteiro de introduzir uma conspiração financeira dentro da narrativa. As motivações dos vilões variam conforme a necessidade imediata do roteiro, sendo assim em um primeiro momento eles optam por dar sobrevida às irmãs para enganá-las e não chamar a atenção, porém logo em seguida eles não hesitam em disparar tiros, provocar explosões e realizar perseguições para “silenciá-las”, apesar de promover o caos por consequência. Ainda assim, o impacto dos momentos dramáticos provocados por cada catarse envolvendo as personagens não chega a ser totalmente prejudicado por essas escolhas controversas.
Funcionando como um ótimo filme de ação, “Onde Está Segunda?” possui a sua dose de problemas e não faz muita questão de escondê-los, porém como filme de gênero cumpre muito bem a sua missão e ainda conta com performances inspiradas de Noomi Rapace para fazer com que a produção se destaque, tenha personalidade própria e coloque-se acima da média. Se o filme perde na abordagem pela falta de profundidade temática, ganha pontos ao fazer muito bem aquilo que se propõe e traz de melhor já que em termos de energia e ação, “Onde Está Segunda?” não deixa nada a desejar. Além disso é sempre bom ver uma boa ficção científica que por mais futurista que seja ainda assim consegue se sustentar com base em valores e emoções humanas e universais que independem do tempo em que se passa a história.
7.5/10
Os Defensores
3.5 501OS DEFENSORES – 1ª TEMPORADA
Depois de duas ótimas temporadas de “Demolidor”, duas gratas e razoáveis surpresas com “Jessica Jones” e “Luke Cage” e uma decepção com a fraca temporada de estreia de “Punho de Ferro”, os heróis do universo Marvel construído na plataforma Netflix se reúnem para combater uma nova ameaça em Nova Iorque na série “Os Defensores”. Encarregando-se de reapresentar os personagens mesmo no meio de suas jornadas pessoais (até para não espantar o espectador que não conseguiu acompanhar as séries próprias de cada um em sua totalidade), essa primeira temporada caminha em uma jornada tão eficiente quanto genérica, tão competente quanto conservadora, apostando muito mais na interação forçada entre estes quatro improváveis heróis do que propriamente na construção de uma temática arrojada ou que vá além do foi oferecido até aqui. Não chega a ter um resultado ruim, em seus momentos mais fracos flerta com um nível de frustração apenas moderado, mas dentro de um quadro geral os oito episódios mantém um bom e aceitável nível de qualidade.
O roteiro de “Os Defensores” insere os planos da nova vilã Alexandra (Sigouney Weaver), vulgo Tentáculo, e tem a preocupação de inicialmente fazer com que personagens secundários de cada uma das séries surjam de maneira bastante orgânica em núcleos diferentes do que estávamos acostumados e à medida que a trama avança, a trajetória dos quatro protagonistas vai se aproximando, inicialmente em pares até que eles finalmente se encontram. O estilo da direção, o tom da fotografia e da montagem adotados em cada um dos núcleos respeita a linguagem adotada em cada uma das séries, o que facilita a identificação visual e da personalidade de cada um dos personagens. Embora algumas transições de núcleo sugiram falta de acabamento por parte do roteiro, a estrutura macro utilizada para promover essa reunião se mostra bem desenhada, afinal tudo funciona no seu devido lugar, cumpre a sua missão e ainda culmina com um clímax muito bem encenado e ensaiado que resulta em uma sequência de luta bastante dinâmica, apostando em cortes falsos e movimentos circulares de câmera para simular um plano-sequência, algo que se repete e funciona muito bem também em outros momentos, inclusive no clímax da temporada.
A dinâmica entre Matt Murdock (Charlie Cox), Jessica Jones (Krysten Ritter), Luke Cage (Mike Colter) e Danny Randon (Finn Jones) funciona desde o primeiro encontro, especialmente para estabelecer as diferentes personalidades (o receio de Matt, o deboche de Jessica, o pavio curto de Luke, a ingenuidade de Danny), quase sempre apostando no bom humor (Matt usa o cachecol de Jessica Jones para cobrir seu rosto e os demais reconhecem o quão ridículo isso é; o título de “Punho de Ferro Imoral” soa tão ridículo como de fato é, embora o próprio não se dê conta). Ainda que Jessica ressinta a falta de um estilo característico de luta nas sequências em que todos estão em cena, haja vista que ela não é uma lutadora (embora seu estilo funcione melhor no clímax da temporada), os demais dão conta do recado e cada um mostra o seu valor, a sua técnica, a sua identidade no campo da ação. De maneira geral, a montagem não seja a comprometer, valorizando a agilidade e a velocidade dos golpes desferidos, ainda que em alguns momentos atrapalhe com certos cortes mais bruscos, como na sequência em que ocorre em um estacionamento subterrâneo com seis personagens em ação. Naturalmente, os heróis acabam sendo liderados por Stick (Scott Glenn) até porque o final da segunda temporada de “Demolidor” o colocava no centro da conspiração mitológica que serve de base para a narrativa dessa temporada de “Os Defensores”, o que torna fácil a associação com o núcleo de Danny que por sua vez acaba sendo o fio condutor da narrativa (para o bem ou para o mal). A aproximação de Jessica Jones se dá em função da sua atuação como detetive para investigar o sumiço de um arquiteto a pedido de uma esposa e filha desesperadas enquanto que a de Luke Cage se dá por causa do seu apelo com a comunidade do Harlem através da figura de um garoto aliciado para o crime, ou seja, a ligação de ambos ocorre mais através de eventos secundários.
A evolução natural dos eventos não impede que existam alguns furos, afinal se Stick era o último soldado do exército que protegia Punho de Ferro por que ele não se encarregou de fazê-lo diretamente ao invés de se aproximar inicialmente de Matt? O mesmo vale para a própria motivação em torno do Punho de Ferro que muda de acordo com a necessidade imediata do roteiro, ora agindo como aliado, ora como chave, ora como uma arma que não pode cair em mãos erradas, fazendo com que a trama se torne redundante e prisioneira desse mérito eventual ao passo que em diferentes momentos repete-se a mesma situação de refém da situação, inclusive envolvendo as pessoas mais próximas dos heróis. Apesar da boa presença de cena da ótima Sigouney Weaver como Alexandra (e a sua participação não vai muito além disso), o time de vilões reunidos em “Os Defensores” não faz jus as maiores virtudes da série. Madame Gao (Wai Ching Ho), por exemplo, surgiu de maneira misteriosa e impiedosa em “Demolidor”, tornou-se uma vilã genérica, uma mera caricatura do que já foi um dia em “Punho de Ferro” e aqui se apresenta apenas como uma capanga qualquer, sem apelo algum. Qualquer traço de complexidade dramática de Elektra, seja como “Céu Negro” ou como potencial romântico de Matt, fica prejudicado pela interpretação monocromática da limitada Elodie Young ao passo que dois novos vilões, Sowande (Babs Olusanmokum), conhecido como “Chapéu Branco“, e Murakami (Yutaka Takeuchi), um antagonista que só fala em japonês, embora seja compreendido pelos demais, são mal introduzidos e se apresentam como adições inexpressivas e infrutíferas. Bakuto (Ramon Rodriguez) que já havia dado o ar da graça em “Punho de Ferro”, mas sem dizer ao que veio, mantém o mesmo fraco apelo.
Em termos de diálogos, os questionamentos e a interação entre os heróis ocorrem de maneira coerente com a personalidade de cada um, apesar de algumas redundâncias e da quantidade reduzida de diálogos expositivos. Outros diálogos possuem qualidade mais discutível, especialmente pelas incontáveis vezes em que expressões genéricas como “nós estamos do mesmo lado” ou “quanto menos você souber, melhor será” são utilizadas para tentar explicar o que está acontecendo de maneira genérica, pelo caminho mais fácil. A trilha sonora é composta por melodias que remetem a outras já ouvidas nas séries anteriores, logo a sensação de dèja vu é inevitável, ainda assim a música-tema que serve de abertura não deixa de ter o seu apelo misterioso e grandioso assim como merece destaque um momento em que Matt Murdock inicia uma melodia em um piano até ser interrompido e a trilha sonora assume essa mesma continuidade melódica. Em contrapartida, o uso de um rap em um momento-chave do clímax da ação em um dos últimos episódios da temporada soa totalmente deslocado e inapropriado. O fato da trama da temporada girar parcialmente em torno da importância de Punho de Ferro não deixa de ser o calcanhar de Aquiles de “Os Defensores”, afinal mesmo que Danny tenha seu potencial cômico alavancado, especialmente com a sua boa interação com Luke Cage, não chega a ser bom o suficiente para fazer com que o personagem se torne mais simpático e/ou empático. A falta de carisma e talento de Finn Jones não contribui a favor da narrativa ainda que não comprometa o apelo da série como um todo e nem prejudique a mitologia dos outros personagens. Mike Colter é um poço de carisma mesmo que Luke Cage seja eventualmente alçado a condição de coadjuvante dentro da série com um campo de atuação bastante reduzido. Krysten Ritter continua sendo uma Jessica Jones irresistível com o seu estilo de humor debochado e politicamente incorreto, funcionando muito bem na parceria com Matt Murdock, sendo responsável pelas melhores tiradas, enquanto que cabe a Charlie Cox e o seu Demolidor servirem como o centro emocional da narrativa. A sua preocupação com o impacto das ações de heroísmo do seu personagem com relação às pessoas ao seu redor são extremamente legítimas, inclusive na sua relação com Elektra que funciona muito mais pelos esforços de Cox do que em função do apelo sustentado por Young, como já comentado.
O desfecho de “Os Defensores” tem um problema central que vai de encontro com aquela máxima de solucionar problemas de uma trama sobrenatural e/ou espiritual e/ou filosófica através da utilização de tiros, socos, lutas e explosões, o que não deixa de ser uma tremenda contradição, porém o investimento da série na dinâmica dos personagens mostra que funcionou pelo senso de preocupação coletiva e de camaradagem entre seus membros que foi construída até alcançar o seu clímax, ainda que haja indícios que eles voltarão a seguir em carreiras solo antes de uma nova reunião. Eficiente e moderadamente competente, mesmo que não se destaque em comparação às outras (com exceção da fraca primeira temporada de “Punho de Ferro”), a sensação que se tem é que a primeira temporada de “Os Defensores” é apenas o primeiro “round” de uma luta pela qual vale a pena brigar.
7.5/10
Dunkirk
3.8 2,0K Assista AgoraDUNKIRK
O diretor e roteirista Christopher Nolan tem um filmografia competente e respeitável, embora esteja muito longe de ser uma unanimidade, porém ele coloca mais uma vez sua inteligência, criatividade e ambição artística à prova com este drama de guerra que narra os eventos que se passaram durante um cerco a 400 mil soldados europeus durante a 2ª Guerra Mundial na praia de Dunkirk e que precisaram resistir aos ataques alemães feitos por terra e pelo ar com a esperança de sobreviverem até a chegada de tropas aliadas. Sem construir nenhum vínculo emocional com os personagens, a tarefa de Nolan parece se resumir à ambientação de um cenário de guerra onde impera o medo e a tensão já que o filme se revela meramente o “meio” de um filme que tinha um potencial muito maior, mas que simplesmente não disse ao que veio.
Sem se preocupar em questionar o propósito da guerra, a narrativa de “Dunkirk” já se encarrega de colocar os personagens em meio ao conflito, logo não existe nenhum período de preparação ou apresentação que ofereça ao espectador um apelo maior ou mais sofisticado que o básico instinto de sobrevivência dos soldados, logo o filme acaba se tornando uma experiência muito mais sensorial do que emocional. Tecnicamente, Christopher Nolan se cerca de uma equipe extremamente competente, sendo que neste filme os efeitos sonoros são aqueles que mais se destacam já que o processo de imersão do espectador na história funciona muito através da força e do impacto dos sons que cercam os soldados já que a maior parte das ameaças é percebida pelo barulho dos tiros, bombas ou das manobras aéreas dos aviões inimigos, ou seja, daquilo que está ao redor e/ou não se vê totalmente. Essa construção orgânica de um ambiente de caos e de terror torna até secundária e/ou aceitável a decisão de Nolan pela falta de sangue para favorecer uma classificação etária menor para o filme, afinal o poder da sugestão pode ser perfeitamente equiparável ou até mesmo mais eficiente do que a exposição sumária (em suma, não é algo que prejudica a experiência de imersão). A trilha sonora de Hans Zimmer também possui notas que remetem a essa inquietação constante com acordes pouco convencionais e através de composições nervosas e inquietantes que tornam a atmosfera ainda mais angustiante. A belíssima fotografia acinzentada, mas que também explora o medo e o isolamento nas sequências noturnas, é muito bem realçada pelo competente trabalho de Hoyte Van Hoytena.
O roteiro escrito por Christopher Nolan tem a difícil missão de se equilibrar através de três linhas narrativa que possuem tempos de duração distintos, mas que são contados paralelamente, o que muitas vezes causa uma dinâmica atemporal saudável, já em outros momentos se torna confusa, especialmente quando alterna sequências de dia e à noite e/ou envolvendo ações do passado com as do presente de determinados personagens. Isso faz com que a montagem de Lee Smith seja bastante comprometida já que os cortes entre um núcleo de ação e outro nem sempre encontram um paralelo à altura ao que estava sendo visto, logo a tensão que em determinado momento torna-se urgente, como durante uma sequência dentro de um barco ou uma ação de interceptação aérea, acaba sendo comprometida por um corte abrupto até ser devidamente retomadas instantes depois. Em contrapartida é admirável a opção de Nolan em evitar a espetacularização da tragédia já que ao optar por colocar a câmera no mesmo nível dos soldados quando acompanhamos o naufrágio de um navio ou a explosão do mesmo, não há nada de cinematográfico e/ou excitante já que o evento é acompanhado de maneira melancólica, sem um pingo de adrenalina e o que se ouve são apenas os gritos e as lamentações dos soldados em que se destaca a sequência em que um determinado personagem luta pela vida, resistindo a um afogamento, enquanto o mar é preenchido por fogo em decorrência da contaminação deixada pelo óleo de um navio abatido.
Ainda assim, não existe em “Dunkirk” nenhum elemento marcante e/ou destacável que já não tenhamos visto em outros filmes de guerra e até mesmo sendo realizados com muito mais competência do que neste aqui. O apelo dramático entre os personagens é rasteiro, seja ao invocar o sentimento de camaradagem entre os soldados, de patriotismo entre as tropas ou até mesmo diante da aposta no dramalhão, como quando explora a trajetória de um jovem inseguro em busca de um sentido para sua vida. O elenco que conta com uma série de jovens atores pouco conhecidos e pouco carismáticos ao lado de nomes mais consagrados como Mark Rylance, Kenneth Branagh, Tom Hardy e Cilliam Murphy pouco tem a fazer com o pouco que tem em mãos. Logo, Christopher Nolan acaba realizando o seu filme mais medíocre e menos ambicioso, o que não deixa de ser uma tragédia já que é incapaz de fazer jus ao apelo da própria história que pretendeu retratar através do filme.
6.0/10
Invasão Zumbi
4.0 2,1K Assista AgoraINVASÃO ZUMBI
“Invasão Zumbi” é uma produção sul-coreana que traz frescor ao subgênero dos filmes de zumbi com uma mistura quase perfeita de terror, drama e comédia. O filme revitaliza a fórmula da narrativa clássica envolvendo os zumbis, explorando a tensão e o medo de situações-limites, e recicla os clichês sem ter medo de apostar em estereótipos quando foca na dinâmica entre os personagens e no melodrama rasgado e escancarado que jamais soa pedante ou piegas demais, além de ter um fôlego cômico muito bem dosado. Em suma, “Invasão Zumbi” não é um filme revolucionário, mas é dinâmico e extremamente competente no que se propõe a fazer.
Escrito pelo diretor Sang-ho Yeon ao lado do coroteirista Joo-Suk Park, o roteiro de “Invasão Zumbi” acompanha uma série de personagens lutando pela sobrevivência durante uma viagem de trem de Seul até a cidade de Busan em meio à escalada de uma contaminação sem precedentes que vem transformando pessoas em zumbis. Através de estereótipos muito bem definidos (seja para criar simpatia, asco ou torcida por uma redenção), a narrativa estabelece rapidamente a moral, a motivação e o caráter dos personagens, logo não fica difícil entender qual será a função básica que cada um desempenhará na trama. Isso permite que o roteiro vá estabelecendo a catarse do cerco zumbi ao trem de maneira tensa e crescente, oferecendo inicialmente pequenas pílulas dos ataques do lado de fora da composição até que o caos literalmente se instaura do lado de dentro, investindo na movimentação rápida e assustadora dos zumbis quando avistam sua vítima humana e a realização do seu ataque feroz quase sempre ilustrada de maneira direta e impactante, especialmente pelo choque, pelo apelo visual da maquiagem e pelos animalescos efeitos sonoros. Os efeitos especiais não comprometem, mas respondem pelo aspecto técnico de qualidade mais limitada, especialmente quando pretende ilustrar vidros sendo quebrados e/ou explosões.
Sang-ho Yeon constrói um clima palpável de medo e tensão justamente ao investir em sequências que propõem a quebra de expectativa de uma situação em que os personagens aparentemente estão sob o controle dela até que tudo muda subitamente, sendo tomado pelo terror, como quando precisam atravessar os corredores do trem às escuras durante a passagem por um túnel. O alívio provocado pelas incursões cômicas é eventual, porém serve para conferir certa leveza aos personagens e de certa forma torná-los ainda mais empáticos ao espectador já que quando aposta no drama quase sempre as escolhas do roteiro são voltadas a situações de forte potencial trágico, como quando um grupo é atacado dentro de um vagão sem a possibilidade de salvação que, por sua vez, provoca um irregular e rasteiro estudo de caso sociológico. Curiosamente, “Invasão Zumbi” acaba sendo um filme extremamente competente ao utilizar elementos dramáticos que poderiam tornar piegas a evolução da narrativa, porém o filme jamais se torna refém da armadilha, como quando utiliza o apelo de uma música cantada pela pequena Soo-an (Su-an Kim) em três momentos distintos de maneira bastante sensível e eficiente. Aliás, a dinâmica entre ela e o pai negligente (Yoo Gong) assim como a relação entre o casal Sang-kwa (Dong-seok Ma) e Seong-kyeong (Yu-mi Jung), à espera do primeiro filho, são responsáveis pelos momentos mais tocantes e emocionais do filme.
“Invasão Zumbi” ainda faz o bom uso dos figurantes já que nas sequências mais tensas de perseguição, o medo e a tensão tornam-se urgentes justamente por não se criar a falsa impressão de uma horda digital e ainda existe a preocupação, em pelo menos dois momentos distintos, em investir no processo de desumanização das vítimas, o que não deixa de funcionar como duas passagens de beleza filosófica e poética, mesmo em meio ao caos. Fazendo jus aos melhores filmes do subgênero, “Invasão Zumbi” é um suspense tenso e angustiante que sabe explorar o potencial da premissa e ainda oferece drama e humor na medida certa para balancear o seu excelente resultado final.
9.0/10
13 Reasons Why (1ª Temporada)
3.8 1,5K Assista AgoraOS 13 PORQUÊS
“Os 13 Porquês” é uma sensível e irregular série norte-americana que tem os adolescentes como público-alvo principal, mas que possui um alcance que atinge muitas outras gerações de espectadores, inclusive pais e professores, ainda mais envolto de tanta polêmica por causa da premissa que parte do plano realizado pela personagem central que envolve suicídio e vingança. Hannah (Katherine Langford) é uma jovem de dezessete anos que resolve dar um fim em sua vida, mas sem antes gravar treze fitas que são remetidas a membros do seu círculo social que foram responsáveis, direta ou indiretamente, pela sua trágica, imatura e precipitada decisão.
A estrutura narrativa da série é bastante problemática porque ela parte de um jogo de vingança em que a personagem brinca e manipula seus algozes para justificar seu suicídio, porém ela e a própria série parecem não reconhecer a insensatez e a fragilidade impostas por esse contexto. Cada episódio se encarrega de escolher um alvo e, através da narração de Hannah em fitas cassetes, ela descreve a sua história de vida que é apresentada em marcantes “flashbacks”, sendo que o seu atual ouvinte é o também adolescente Clay (Dylan Minnette), seu amigo e uma espécie de admirador platônico. Enquanto ouve as fitas, ele se envolve no drama de Hannah e nos dilemas morais e éticos dos seus colegas de Ensino Médio que provocaram os gatilhos que a levaram a cometer tal medida extrema contra sua própria vida. Essa postura de justiceira espiritual faz com que em alguns momentos Hannah se coloque como uma falsa heroína, acima do bem ou do mal, como se ela jamais assumisse a responsabilidade pelas suas próprias ações.
Essa postura faz com que a série seja tomada por um ar de mistério repleto de altos e baixos, dependendo muito do nível e da qualidade da abordagem dos dramas de cada um dos personagens, logo se em um determinado episódio há uma legítima complexidade dramática envolvendo um jovem atleta de família disfuncional ou de uma adolescente traumatizada que enfrenta problemas com drogas e alcoolismo, o mesmo já não se pode dizer quando o centro da narrativa é um garoto impulsivo e de inteligência limitada ou de outro que não sabe lidar com a rejeição do sexo alheio pela sua própria arrogância e prepotência. Ainda assim, o episódio mais fraco é o que se sustenta pelo peso da culpa por causa de um acidente de trânsito que soa totalmente deslocada do eixo central da trama pelo seu excesso de coincidências e conveniências. E até mesmo os episódios finais que contam com os eventos mais chocantes e pesados assim como suas implicações emocionais decepcionam por serem eclipsados em comparação aos elementos misteriosos e investigativos da trama, ainda que cada personagem tenha resoluções diversificadas e independentes. Essas oscilações fazem com que o pretexto da série de prolongar a experiência de ouvinte de Clay se torne menos ou mais arrastada justamente pelas convenções que o roteiro precisa abraçar para justificar ou não essa estrutura. Em alguns momentos, a série parece brincar com o ritmo de audição de Clay já que enquanto ele parece reservar um dia e/ou uma semana para cada lado da fita (o que representa um episódio da série), outros chegam a dizer que ouviram todas as fitas em uma única noite (e duas vezes cada) ou sequer ouvi-las por completo (ainda assim não deixa de ser estranho que Clay pareça confuso com a sua influência no destino de Hannah como se ele mesmo não soubesse o que viveu ao lado da amiga). Ao mesmo tempo é inconcebível a falta de curiosidade do Clay em não avançar no processo de audição em alguns momentos assim como em outros se torna compreensível o seu abandono diante do inconformismo de algo que acabara de escutar e que precisa ser tratado de imediato.
Problemas e conveniências à parte, a série é muito delicada, sensível e corajosa ao abordar dilemas adolescentes e do universo do Ensino Médio com naturalidade e sem nenhum pudor já que, além da depressão e do suicídio, temas como “bullyng”, estupro, homossexualidade, alcoolismo, depressão, entre outros, são muito bem estabelecidos, mesmo quando retratados em segundo plano ou como pano de fundo do episódio. Além dessa proposta, “Os 13 Porquês” não deixa de ser uma série que dialoga fortemente com as experiências emocionais da adolescência, como os diferentes tipos de amizades e de tribos existentes dentro do ambiente escolar, o primeiro beijo, a primeira decepção amorosa, a primeira relação sexual, a alegria e a felicidade provocadas pelo sentimento de pertencimento ou as angústias e os medos enfrentados pela não aceitação dentro de um grupo social. Estes conflitos fazem parte do universo de Hannah e, em maior ou menor grau, servem para que a série explore uma infinidade de questões que vão muito além do suicídio da personagem e que possuem igual importância e relevância narrativa, logo excetuando os excessos cometidos pela manutenção do mistério em torno das fitas, o tom adotado pela série a respeito dos conflitos entre os jovens é muito mais assertivo do que meramente um pretexto para soar gratuito e/ou polêmico. Existem alguns diálogos muito bem ilustrados entre os próprios adolescentes assim como entre eles e seus pais que realçam o apelo positivo e propositivo da série, porém um aspecto que “Os 13 Porquês” reforça é o perigoso distanciamento que jovens e pais se impõem até de maneira inconsciente seja pela necessidade de preservação da intimidade adolescente e/ou pela imposição da autoridade materna e paterna.
Essa vasta abordagem faz com que Hannah seja submetida a uma série de situações constrangedoras que em certos momentos chegam até a soarem forçados e exagerados (em determinado momento ela chega a ser perseguida por um “stalker” ao mesmo tempo em que vive uma experiência íntima ao lado de uma amiga, logo após ser alvo de um boato que manchou a sua reputação, por exemplo), o que acaba potencializando o drama da personagem que vive todas essas experiências de maneira silenciosa, praticamente solitária e com uma completa alienação dos pais que são retratados com vítimas impotentes e colaterais da tragédia que vitimiza a filha. A jovem Katherine Langford realiza um ótimo trabalho, trazendo um carisma irresistível e uma intensidade dramática admirável para uma personagem que é responsável por decisões irritantes e questionáveis que muitas vezes faz com que Hannah se distancie do espectador, porém o talento e o potencial artístico demonstrado por Langford reforça muito mais o sentimento de empatia e de solidariedade que se tornam fundamentais para a compreensão dos conflitos internos de Hannah, ainda que não legitime todas as suas atitudes, vale sempre a pena reforçar. O jovem Dylan Minnette também realiza um ótimo e sensível trabalho porque Clay serve como uma espécie de agente catalisador dos dramas vivenciados por todos os personagens, inclusive deixando de lado até mesmo os seus próprios porquês em função da postura tímida e introspectiva do seu personagem, mas sem jamais deixar de se apresentar como um garoto franco, íntegro e honesto. De maneira geral, o elenco jovem é muito talentoso e eficiente, além de realçar a representatividade de raças e gêneros que é uma decisão cada vez mais digna e relevante dentro da indústria cultural mundial ainda que não represente a resolução de todos os problemas.
Explorando sentimentos nostálgicos através da trilha sonora e de alguns elementos da narrativa, como as próprias fitas cassetes, ainda que de maneira irregular, ou mesmo negligenciando algumas subtramas, como as que envolvem a influência das grandes corporações na economia local ou os conflitos de interesses no processo jurídico dos pais de Hannah contra a escola, “Os 13 Porquês”, no entanto, traz uma série de diretores talentosos, sóbrios e criativos que apostam em um estilo de direção realista com reduzidos maneirismos estéticos (talvez apenas um excesso de câmera lenta aqui e ali), além de contar com um trabalho de fotografia sofisticado e apurado e efeitos de transição dinâmicos e orgânicos em que ambos servem para estabelecer as duas linhas temporais da narrativa (as mudanças físicas dos personagens também são críveis mesmo que não o tempo todo, como o machucado na testa de Clay, por exemplo). Dessa forma, “Os 13 Porquês” se apresenta como uma série imperfeita, mas de extrema relevância que merece ser vista e discutida, apesar de qualquer polêmica e/ou distorção que a série tenha provocado. É uma série que merece fazer parte de bate-papos entre pais e filhos, de discussões e trabalhos promovidos por professores e alunos assim como da comunidade de maneira geral, inclusive do Estado, afinal a depressão e o suicídio são temas de saúde pública que merecem ser debatidos através de políticas assistenciais. Essa aproximação do tema com o público em geral, apesar de algumas distorções delicadas, é fundamental para que a postura de Hannah jamais seja vista como uma saída natural e/ou corajosa e/ou que deve ser copiada e imitada. Logo, por mais que a série cometa seus próprios pecados, a experiência jamais deve ser vista como algo em vão assim como é a vida que ganhamos de presente a cada dia.
7.0/10
This Is Us (1ª Temporada)
4.7 779 Assista AgoraTHIS IS US – 1ª TEMPORADA
“This Is Us” é uma série emocional e emocionante, sensível e tocante, agridoce e delicada que acompanha personagens em diferentes épocas e que estão intimamente conectados. O primeiro episódio se encarrega de apresentá-los com uma condução leve no humor e sóbria no drama, surpreendendo no final com a conexão temática entre os personagens que vai muito além do simples fato de comemorarem seus aniversários na mesma data. E esse mesmo tom acompanha a série durante toda a temporada, porém as nuances dos seus elos merecem ser experimentadas paulatinamente, gradativamente, logo seria um crime entrar em maiores detalhes a respeito. A partir dessa apresentação, cada episódio se encarrega de oferecer mais elementos que permitem a construção de uma espécie de memória emocional de cada um dos personagens e que gradativamente vai tornando-os mais íntimos e mais complexos. A montagem também realiza um trabalho de fundamental importância e relevância narrativa, pois muitas vezes em um mesmo episódio, em diferentes períodos de tempo, apresenta os mesmos personagens vivendo situações e dilemas semelhantes e/ou que estão ligados direta ou indiretamente com belíssimas e inspiradas transições de cena, o que amplia ainda mais a percepção emocional dos conflitos. Sob a direção geral do criador Dan Fogelman (roteirista de “Carros”, “Enrolados”, “Amor à Toda Prova”) e da dupla Glen Ficarra e John Requa (“O Golpista do Ano” e “Golpe Duplo”), “This Is Us” é provavelmente a série lançada nesses últimos anos que mais faz jus ao termo “a vida como ela é”.
“This Is Us” é uma série que explora a generosidade e a emoção à flor da pele do ser humano, o que há de melhor na humanidade, o que torna esses personagens tão carismáticos e cativantes, mas igualmente falhos e frágeis através de uma simplicidade e de um alcance narrativo tão genuíno que fica difícil não mergulhar muitas vezes os olhos em lágrimas, embora elas façam com que a percepção desse universo se torne mais límpida e cristalina. Jack (Milo Ventimiglia, ótimo) e Rebecca Pearson (Mandy Moore, ótimo) formam um jovem casal que como qualquer outro possui suas diferenças e dúvidas com relação ao futuro da relação, mas quando decidem pelo casamento, eles estabelecem uma parceria tão sólida que permite que superem qualquer adversidade e aceitem com devoção os desígnios da vida, como a inesperada e nada convencional chegada de trigêmeos. Kevin (Justin Hartley, ótimo) é um ator galante e mulherengo, mas de talento limitado que surta durante uma das gravações de uma série de humor rasteiro em ele que é o protagonista, sem saber muito bem o quer da vida, mas redescobrindo pelo caminho o que é um amor de verdade, além de aperfeiçoar a sua vocação artística. Kate (Chrissy Metz, ótimo) é uma mulher que sofre de obesidade mórbida e que já está incrédula quanto a sua capacidade de perder peso e/ou de que o mundo de alguma forma vai lhe compensar pelo que fato dela estar acima do peso, mas ao ser notada por Toby (Chris Sullivan, ótimo), outro obeso que sofre de disfunções alimentares, ela descobre a oportunidade de aceitar-se como é de verdade. Randall (Sterling K. Brown, ótimo) é um negro bem-sucedido que tem um emprego prestigiado e uma família sólida e feliz, mas que vai ao encontro do pai biológico para acalmar a sua inquietação emocional e entender as suas raízes e ao conhecer William (Ron Cephas Jones, ótimo), um artista de rua decadente que está em vias de morrer, ele se dá conta de que tem muito que aprender com aquele homem que ele tanto renegou ao longo da vida.
“This Is Us” é uma série sobre a formação de caráter e personalidade de um grupo de pessoas que através de uma melodia narrativa dramática e orgânica jamais cai no melodrama, na pieguice ou no clichê maniqueísta e vazio. É um conjunto de dramas e traumas que faz com que o painel de personagens visto na série se torne sensível aos olhos e muito próximo do coração. A fotografia consegue ser belíssima e sofisticada nos dois tempos da narrativa, apostando em tons mais opacos quando a narrativa está no passado e em uma paleta mais colorida nas histórias do presente, o que dá a série uma roupagem estética muito agradável, atraente e que combinam perfeitamente bem, ainda mais quando faz o bom uso da luminosidade e/ou de “flashes” de luz. A direção dos episódios é muito elegante e bastante sóbria, sem jamais apelar para o sentimentalismo barato, afinal os dramas e os conflitos são naturalmente fortes e fluem com extrema naturalidade, especialmente quando ligados a assuntos delicados como alcoolismo, traição, homossexualidade, obesidade, luto e divórcio. Os diálogos ao longo da temporada são tão sensíveis, maduros e complexos em toda a sua extensão dramática que transformam os personagens em figuras humanas complexas, cativantes e autênticas, logo absolutamente reconhecíveis. As metáforas e as analogias presentes entre os diferentes tempos da narrativa são sensíveis e orgânicas e até mesmo aquelas que não surgem da maneira tão sutil ainda assim são sensíveis e tocantes, pois são sustentadas por um elenco talentoso e homogêneo que transbordam uma química irradiante. E se a segunda metade da temporada resolve ampliar a abordagem da narrativa dando destaque a personagens secundários e/ou inserindo novos personagens dentro de cada núcleo, ainda assim a série não perde o seu apelo emocional. Em sua, trata-se de um maravilhoso conjunto de atuações de um elenco impecável!
“This Is Us” é uma série empática que promove uma viagem intensa e emocional na história dos seus personagens, sendo capaz de tocar tão profundamente que honra até mesmo os clichês mais batidos do gênero, mas com um poder de argumentação plenamente justificável e satisfatório, por menos recomendado que isso parecesse. É uma série que tem em seu DNA todos os ingredientes que poderia torná-la chata e enfadonha, piegas e rasteira, mas ainda assim acerta em cheio em praticamente tudo que se propõe a fazer, pois é sofisticada e autêntica em sua simplicidade de explorar temas universais e complexos, sem deixa der dramática, mas sem esconder também um otimismo contagiante. Impossível não simpatizar, impossível não se emocionar, impossível não se maravilhar com todos os acertos estéticos e narrativos que a série possui, além de contar com uma gama de personagens pelos quais vale a pena torcer e se importar. Eles são nós! Eles são maravilhosos, imperfeitos e complexos assim como nós! Eles “somos” nós!!
10/10
Love (2ª Temporada)
3.7 151 Assista AgoraLOVE – 2ª TEMPORADA
A segunda temporada de “Love” começa exatamente no instante em que termina a temporada anterior, ou seja, enquanto Mickey (Gillian Jacobs) discursa na frente de Gus (Paul Rust) sobre o seu vício em drogas, álcool, sexo, amor e ele a silencia com um beijo. Porém, esse seu gesto não fará com que ela mude de opinião quanto ao desejo de se afastar dele por um ano embora o destino pareça convergir para que eles fiquem cada vez mais juntos quanto mais eles parecem concordar que o melhor é que eles fiquem separados. Entretanto, Gus e Mickey não formam um casal convencional, logo essa problematização da relação entre os dois parece muito mais uma necessidade e um artifício em negar o quanto eles são especiais um para o outro e qualquer tentativa deles de impor regras ao relacionamento cai por terra já que não demora muito para que se deem conta que elas não servem para eles. E ao mostrar que os dois simplesmente não resistem a eles mesmos, cada um de acordo com seu devido motivo, ao ponto de transarem dentro do carro no estacionamento de um restaurante coreano, a série reforça mais uma vez que não está minimamente interessada em um tom politicamente correto. O que justamente faz de “Love” uma série acima da média.
Essa temporada parece ser mais um tratado de liberdade para Gus e Mickey sobre se deixarem levar pelo que sentem um pelo outro, permitindo ser felizes, como se nada pudesse estragar esse momento tão especial entre os dois (e, ironicamente, ao longo da temporada por diversas vezes isso parece acontecer em maior ou menor grau de relevância). O romantismo não está descartado na relação entre eles, mas não é à toa que eles chegam até mesmo a duvidar que algo ruim não possa acontecer para acabar com a sintonia fina entre os dois, pois antes de se conhecerem eles estavam acostumados a arruinar seus relacionamentos (e, de certa forma, eles continuam fazendo isso, embora lidem um pouco melhor, especialmente com os defeitos de cada um). Nessa temporada é também a primeira vez que ouvimos Gus e Mickey falando mais detalhadamente sobre suas famílias e dando pistas sobre a dinâmica determinante na criação dos dois, inclusive com a participação do pai dela em um dos episódios, um incorrigível trambiqueiro e mulherengo, o que serve para explicar muito do comportamento e das frustrações que ela carrega consigo. O maior ponto de conflito entre os dois parece ser mesmo a distância provocada por uma viagem a trabalho de Gus e a maneira com que eles lidam com a distância, o que acaba distanciando-os emocionalmente. A queda no final da temporada, no entanto, se dá muito mais pela necessidade de vilanizar Mickey do que propriamente ao construir mais um conflito para colocar em xeque a relação entre os dois e, infelizmente, os episódios finais levam a isso.
Paul Rust e Gillian Jacobs continuam segurando a série com muito carisma. Ele é dono de um estilo de humor que caracteriza Gus como um típico sujeito desajustado em que todas as vezes que tenta ser mais descolado acaba se dando mal. Paul Rust é carismático ao ponto de fazer uma piada sem graça envolvendo a série “Friends” e/ou o filme “Duro de Matar” e ainda assim torná-la divertida; ou legitimar a pureza de Gus ao ilustrar a sua alegria genuína ao compor uma canção para o filme “Enquanto Você Dormia” ou quando está desconfortável diante de conflitos familiares, oferecendo pequenas amostras do apelo e do alcance de um personagem que não se restringe em ser um mero “nerd” apaixonado. Já ela é uma atriz intensa que sempre traz um olhar triste e melancólico que sustenta emocionalmente uma mulher que parece andar sob uma corda bamba já que as instabilidades de Mickey são constantes, mas Gillian Jacobs também traz uma vitalidade à personagem que nos torna cúmplices da jornada de redenção que a personagem realiza ao evitar qualquer tipo de gatilho que a leve novamente para o caminho do vício, sendo que em nenhum momento duvidamos das suas boas intenções ou do quanto Mickey realmente gosta e precisa de Gus ao seu lado, sem descansar um do outro. E vice-versa.
Assim como na primeira temporada, “Love” não é uma série somente sobre Gus e Mickey, embora seja muito melhor quando foca apenas na atípica relação amorosa entre os dois. A temporada reserva espaço para investir ocasionalmente em outros personagens, como os divertidos Bertie (Claudia O’Doherty), companheira de casa de Mickey, e Randy (Mike Mitchell), um dos melhores amigos de Gus, que também vivem um relacionamento pouco convencional; ou Truman (Bobby Lee), colega de trabalho de Mickey, que se revela um tremendo carente emocional, mas em termos gerais, ambos funcionam como eventuais alívios-cômicos. A temporada também não esquece dos núcleos profissionais de Mickey e Gus, mas dessa vez a abordagem é mais reduzida, o que permite que explorem melhor as piadas, especialmente as que envolvem os clichês cinematográficos, especialmente a presença da divertida modelo e atriz Heidi (Briga Heelan) que praticamente dá o ar da sua graça em um único episódio ou as situações vividas pela precoce atriz mirim Arya (Iris Apatow), inclusive durante as gravações de um filme de ação e diante das novas aspirações profissionais de Gus. O mesmo não acontece com relação ao trabalho de Mickey, especialmente com relação à participação do terapeuta Greg Colter (Brett Gelman) que embora chame a atenção pela sua canastrice e canalhice, além da sua total incapacidade emocional de exercer a profissão, parece um tanto quanto deslocado do universo da personagem, mas felizmente a própria série se encarrega de não dar muito crédito aos conflitos que ele gera dentro da relação entre Gus e Mickey.
Apesar de não evitar os altos e baixos em seus doze episódios (dois a mais que na temporada anterior), “Love” em sua segunda temporada continua sendo uma série de comédia romântica que traz frescor a um gênero carregado de clichês e carente de originalidade, especialmente pelo charme, carisma e simpatia dos seus personagens centrais politicamente incorretos e muito bem defendidos por Paul Rust e Gillian Jacobs, dois atores talentosos e bastante generosos em cena. Se o amor não é perfeito, Gus e Mickey também estão muito longe da perfeição e justamente por isso é que se tornam personagens tão amáveis e acessíveis, afinal fazem questão de nos mostrar que embora não seja possível o “felizes para sempre”, eles fazem muito por merecer a união já que estranhamente foram feitos um para o outro.
7.5/10
ARGUMENTÁRIO - UM ESPAÇO DE IDEIAS E REFLEXÕES
Logan
4.3 2,6K Assista AgoraLOGAN
“Logan” não é um filme sobre heróis. “Logan” é um filme sobre homens. “Logan” é um drama humano sobre sentimentos universais que se sobressaem aos superpoderes mutantes, mas que jamais deixa de ser brutal e selvagem quando necessário, fazendo jus à essência de Wolverine e ao talento e a dedicação de Hugh Jackman que encerra a sua trajetória com o personagem que alavancou a sua carreira há 17 anos. O diretor James Mangold realiza um respeitável faroeste moderno com a velha guarda mutante através de um filme emocionalmente intenso e categórico na forma como ilustra a herança de dor e de violência do seu personagem central. “Logan” é um filme ferrenho, duro e implacável como o ferro, mas que se coloca de peito aberto e escancara as feridas e as cicatrizes de Wolverine.
Ambientado em 2029, a trama de “Logan” se inicia em um período em que se acredita que há mais de 25 anos não nasce nenhum novo mutante na Terra, logo foram extintos. Dessa forma, Logan (Jackman) vive como um velho e bêbado motorista de limusine ao lado de um senil Charles Xavier (Patrick Stewart) e do moribundo Caliban (Stephen Merchant) no prédio abandonado de uma antiga companhia falida. Embora isolados do mundo, um sangrento desentendimento de Logan com um bando de ladrões de carro chama a atenção de Gabriela (Elizabeth Rodriguez), mãe de Laura (Dafne Keen), acreditando que ele é o único capaz de ajudar e compreender a natureza especial de sua filha, porém essa aproximação também desperta o interesse de Pierce (Boyd Holbrook), um mercenário contratado pelo Dr. Rice (Richard E. Grant) que acredita que assim como Laura, outras crianças ainda possuem o DNA mutante. Em “Logan”, embora o filme projete um futuro opressor para os mutantes, a jornada é muito mais intimista e o diretor James Mangold conduz o filme através de pílulas de esperança, pequenos momentos de saudosismo e/ou de reflexão, como se os personagens se aliviassem emocionalmente, mas eles quase sempre são exterminados com alguma sequência de ação e/ou violência que chega logo em seguida e sem avisar, quebrando ossos e expectativas pelo caminho.
Oferecendo o mínimo de informações e contextualizações sobre o universo em que os personagens estão inseridos, o roteiro coescrito por Mangold, a partir da sua estória, ao lado de Scott Frank e Michael Green investe pesadamente na exploração da flagelação física dos personagens mutantes, muito longe da virilidade, da inteligência ou da sagacidade vista em filmes anteriores. Eles já não são mais nem a sombra dos mutantes que já foram algum dia, como se estivessem vivendo à espera do fim de suas vidas, ironicamente, vivendo sob as sombras. Essa degradação física e emocional, especialmente de Logan e Xavier, humaniza ainda mais os personagens já que eles foram marginalizados pela sociedade e exteriorizam um dom que nesse momento mais se parece com um fardo. A ambientação proposta pelo diretor James Mangold é eficiente já que existe um clima pesado e melancólico que oprime os personagens, como se fossem sucatas revestidas de uma fotografia de tons escuros e opacos e acompanhadas de uma trilha sonora triste e sombria, além da ótima caracterização dos sofridos e envelhecidos personagens (a barba de Wolverine é carregada e já não é mais tão estilizada como antes assim como a careca de Xavier já traz alguns fios espalhados pela cabeça em um claro sinal de desleixo e da perda da sua própria identidade).
A chegada de Laura no convívio entre Logan e Xavier reacende o instinto de proteção e sobrevivência da dupla, fazendo com que em um primeiro momento “Logan” se transforme em uma espécie de “road movie” que permite uma revisitação da relação entre esses dois velhos amigos a partir desse novo olhar. Sem conseguir controlar seu poder, ainda que ele seja capaz de salvá-los em um determinado momento, mas à base de muito sofrimento, Xavier está à beira da loucura, vivendo a base de remédios, porém se antes ele se colocou na vida de Logan como uma figura paterna, agora é o seu “filho” que se sente na obrigação de cuidar do “pai”. Patrick Stewart realiza uma atuação formidável, expressando as fraquezas e as fragilidades de Xavier com um olhar sempre vazio e a voz vacilante e trêmula, logo não deixa de ser comovente que o único momento em que ele exponha um leve sorriso no rosto seja um breve instante em que ele controla a mente de alguns cavalos selvagens que escaparam no meio de uma rodovia. Após esse trabalho tão sensível e delicado já sou capaz de ficar em dúvida se ele será imortalizado por este personagem ou aquele outro da saga “Jornada nas Estrelas” que ele já fez durante tanto tempo, tamanha a sua dedicação neste aqui.
Ainda assim, Hugh Jackman é quem realiza o trabalho mais contundente neste filme. Escolhido para ser o Wolverine como segunda opção, após um acidente nas gravações de “Missão: Impossível II” que impossibilitaram que o sumido Dougray Scott assumisse as garras de Adamantium, Jackman nunca deixou dúvidas que nasceu para o papel. E essa sua vocação pode ser comprovada em todos os filmes da série “X-Men”, assumindo muitas vezes o protagonismo mesmo tratando-se de um filme de grupo de super-heróis, por menores que fossem suas aparições ou até mesmo em seus dois limitados filmes-solo anteriores. Aqui, a garra e a fibra de Wolverine ganham contornos fortes e sombrios através de uma atuação devotada e vigorosa de um ator que faz questão de reagir monstruosamente a qualquer ato de violência praticado ou golpe sofrido. Sempre com a mesma intensidade, muitas vezes transformando gritos em grunhidos, como se estivesse interpretando um animal selvagem insano e ferido, Jackman tem um trabalho marcante de entrega e faz de Wolverine uma figura brutal, mas que sempre traz uma sensibilidade comovente em seu rosto e em seus olhos toda vez que os traços da sua humanidade lutam com seu lado selvagem para fazer o bem e/ou proteger alguém. Em “Logan”, Wolverine faz isso com Xavier, com Laura, com uma família de fazendeiros que os recebem de braços abertos em sua casa e também com um grupo de crianças mutantes que estão escondidas na fronteira americana com o México e que pretende ser o destino final dos personagens.
As sequências de ação e de luta conduzidas por James Mangold são autênticas e viscerais, captando essencialmente as movimentações e os golpes dos personagens, que no caso de Wolverine já não são mais tão ágeis assim, como fica evidente já desde a sua primeira briga. O diretor faz com que as sequências se tornem fortes, brutais e ainda assim dinâmicas e compreensíveis, sem economizar na carnificina e no uso do sangue, especialmente no momento em que Logan confronta o seu clone X-23 contando com a ajuda de uma explosiva Laura, detentora de agilidade e ferocidade impressionantes. Aliás, Dafne Keen é uma gratíssima surpresa já que é uma atriz que traz consigo uma carga emocional e uma capacidade expressiva que são maravilhosas ainda mais que a sua personagem se mantém calada na maior parte do tempo, porém em nenhum momento deixamos de entender o que Laura realmente está sentindo. Extremamente convincente durante as batalhas como uma versão feminina e mirim do velho Wolverine, ela é uma figura emocional que estabelece uma importante relação com Logan que os aproximam como pai e filha de maneira orgânica, sem jamais soar piegas ou maniqueísta (quando ela o chama de pai já é em um momento de catarse absoluta). O limitado Boyd Holbrook realiza um bom trabalho como um vilão genérico que acaba se transformando mais em um mero capanga no decorrer do filme e Richard E. Grant não traz muita imponência ou periculosidade na pele do cientista encarregado de estragar os planos de aposentadoria de Logan.
Contando com um clímax violento e brutal, apesar de alguns diálogos excessivamente expositivos, “Logan” encerra o arco dramático de Wolverine, uma espécie de pistoleiro solitário que sempre esteve em um ambiente cercado de violência e que acabou se transformando em uma figura trágica, fruto desse meio, mas que nem por isso deixou de cativar. Sem jamais perder a sua humanidade, a fera incontrolável finalmente encontrou a redenção, um filme a sua altura e um desfecho sensível e simbólico como Logan/Wolverine/Hugh Jackman sempre mereceram.
9.0/10
ARGUMENTÁRIO - UM ESPAÇO DE IDEIAS E REFLEXÕES
Eu, Tu e Ela (1ª Temporada)
3.6 131 Assista AgoraEU, TU E ELA
“Eu, Tu e Ela” é uma série levemente divertida e politicamente incorreta sobre Jack (Greg Poehler) e Emma (Rachel Blanchard), um casal que está mais próximo dos 40 anos do que gostariam e que vive uma crise em seu casamento enquanto pensam na possibilidade de ter o primeiro filho assim como a maioria dos seus amigos e vizinhos. No entanto, a vida sexual deles está em baixa, logo Jack aceita a dica de um amigo de contratar o serviço de uma acompanhante, a envolvente Izzy (Priscila Faia), uma jovem estudante de Psicologia, porém logo se arrepende, mas sem antes despertar a curiosidade de Emma que também se encanta pela garota e acaba sugerindo que ela passe a realizar seus serviços para o casal, possibilitando um inusitado relacionamento a três.
Apesar do tema delicado e polêmico, a dinâmica entre o trio é bastante leve e divertida, logo em nenhum momento o interesse do casal pela acompanhante não se mostra palpável já que com seu bom humor ela tira Jack da sua rotina rígida e repleta de compromissos, além de trazer uma sensibilidade e uma energia sexual para a vida de Emma que até então estava escondida. Criada por John Scott Sheperd, a série nos faz acreditar que uma relação a três seria sustentável e que é a melhor saída para o marasmo do casamento de Jack e Emma, logo ela avança ao longo dos episódios por todos os estágios, iniciando pelo nervosismo e pela excitação dos programas individuais, pelo súbito e posterior interesse do casal pelo sexo a três e passando até pela improvável possibilidade de que a relação seja mantida por muito mais tempo na vida do casal e da acompanhante já que sentimentos foram divididos e compartilhados em um nível que vai muito além do mero compromisso profissional. O fato de Izzy ser uma estudante de Psicologia, assim como Nina (Melanie Papaia), sua melhor amiga e colega de profissão, permite que a série forneça alguns conceitos da área ou conselhos meramente terapêuticos sobre relacionamentos amorosos, mas que se tornam muito mais elementos cômicos já que não possuem o propósito de oferecer complexidade à narrativa, como o fato dela só se interessar por Andy (Jarod Joseph), um amigo da faculdade, apenas quando ele não lhe dá a mínima atenção.
Esse luxurioso apelo da série reside muito pelo carisma do seu trio de protagonistas a começar pela intensa e delicada atuação de Rachel Blanchard que interpreta uma mulher sensível e careta que expressa física e emocionalmente o interesse de Emma por aquela garota que não tem pudores em expressar o seu desejo sexual. É quase um retorno à sua adolescência repleta de experiências e sensações, porém Emma jamais deixa de demonstrar o seu amor, a sua lealdade e o seu carinho pelo marido, logo Blanchard se mostra bastante versátil e se equilibra muito bem entre esses dois aspectos emocionais de uma mesma mulher assim como legitima a fragilidade e confusão da personagem diante dos conflitos que se estabelecem. Priscila Faia não é uma atriz das mais talentosas, mas ainda assim funciona muito bem como Izzy, tornando-se uma grata surpresa, pois ela interpreta com personalidade uma jovem instável, repleta de altos e baixos com surtos de insegurança e autoestima, mas que legitima o interesse e a excitação do casal pelo desprendimento e pela inteligência de Izzy e mesmo assim revela traços que lhe humanizam e demonstram que ela não é tão bem resolvida como gosta de sugerir aos seus clientes. O elo fraco do trio é Greg Poehler que é um comediante simpático que traz uma feição de sujeito comum a Jack, porém embora a sua química em cena funcione ao lado das duas atrizes, ele parece ter um “timming” diferente do restante do tom da série ao evocar o jeito bobalhão do personagem, mas que só evidencia as suas próprias limitações já que ele não é um ator cômico dos mais talentosos e/ou versáteis.
O moralismo da série está presente através dos personagens que circundam a vida do trio, inclusive na figura de Nina que lida com muito mais frieza e praticidade com os dilemas do seu cargo, porém as críticas acabam se sustentando muito mais pelos erros e falhas do trio de manter o sigilo da relação e pelas atitudes dos fiscais da moral e dos bons costumes do bairro onde Jack e Emma moram, inclusive amigos mais próximos. A relativa falta de inteligência e esperteza do trio acaba sendo estimulada para que se crie o maior número de situações que o aproximem do constrangimento que geram momentos cômicos apenas razoáveis, como a vigilância de uma vizinha que desconfia da intimidade do trio, inclusive envolvendo chantagens, ou até mesmo a própria sustentação do casal ao apresentar Izzy como sobrinha dele, o que é de uma fragilidade narrativa absurda. E, considerando o fato de Jack e Emma tem nomes a zelar, seja por ele se candidatar a novo reitor do colégio particular em que trabalha ou por ela ter projetos de trabalho de sua responsabilidade que podem lhe garantir uma promoção, o choque entre a vida pública e particular dos dois torna-se cada vez mais inevitável (curioso que em nenhum momento se discute o dilema ético dela ter um projeto profissional na escola em que ele trabalha), fazendo com que os próprios se tornem moralistas e tornando a série mais aborrecida e burocrática, especialmente nos episódios finais dessa primeira temporada.
“Eu, Tu e Ela” é uma série sobre Jack, Emma e Izzy e sobre a ambiguidade de se buscar uma relação saudável através de um relacionamento a três, afinal tratam-se de adultos que sentem-se conectados íntima e emocionalmente, embora seja uma prática que não é aceita pela sociedade e que os próprios também possuem dificuldades em saber como lidar. Ainda assim é uma série que tem potencial a ser desenvolvido através dos dilemas específicos destes personagens, estejam eles juntos ou não, porém nessa primeira temporada todas as vezes que a série se distanciou desse consentido triângulo amoroso, ela perdeu sua principal força. Esse é o dilema dos seus personagens e da própria série, afinal quão longe eles pretendem ir nessa história sem vacilar e/ou correr riscos e/ou colocar tudo a perder.
7.0/10
ARGUMENTÁRIO - UM ESPAÇO DE IDEIAS E REFLEXÕES
Animais Noturnos
4.0 2,2K Assista AgoraANIMAIS NOTURNOS
“Animais Noturnos” é um drama com toques de suspense, tenso e angustiante que traz uma narrativa repleta de camadas com personagens soturnos e melancólicos através de uma estética refinada e apurada. Escrito e dirigido por Tom Ford, a partir do livro de Austin Wright, o filme se apresenta como um estudo psicológico de personagens a partir da perspectiva da artista Susan Morrow (Amy Adams) que vive uma existência infeliz, fútil e vazia ao lado de um marido indiferente (Armie Hammer) e uma filha distante (India Menuez). Após a noite de lançamento da sua mais nova exposição que discursa sobre os valores estéticos da nossa sociedade moderna, Susan recebe um manuscrito do livro escrito pelo seu primeiro marido, Edward Sheffield (Jake Gyllenhaal), e à medida que ela mergulha na leitura, algumas lembranças do passado vêm à tona.
Inicialmente, o que chama a atenção do filme é a fotografia pesadíssima pontuada por cores fortes, predominantemente escuras e vermelhas, o que dá um tom amargo e sufocante ao universo estéril em que a narrativa está inserida, o que combina perfeitamente com o estado emocional de Susan e que também se reflete no seu figurino, na sua maquiagem e até mesmo no seu cabelo. A partir do momento que ela passa a ler o livro, a história assume a perspectiva dos personagens do livro, o que provoca um intenso envolvimento dela com a história assim como uma alteração nos tons que se tornam mais claros e quentes. Tony Hastings (Gyllenhaal) é o personagem central do livro e o dilema dele reside no seu desespero diante da abordagem e da tortura psicológica que um grupo de arruaceiros faz com ele e sua família no meio de uma estrada deserta em plena madrugada em uma sequência tensa e de tirar fôlego. Algumas pistas são sugeridas, como o fato de que a mulher (Isla Fisher) e a filha (Ellie Bamber) de Tony são ruivas assim como Susan e sua filha, porém Tom Ford é inteligente o bastante para não oferecer as respostas facilmente, além de promover uma estilização estética tão quente e atraente quanto fria e repulsiva.
O comportamento e a reação de Tony diante do ocorrido chamam a atenção e à medida que narrativa do livro avança a montagem do quebra-cabeça torna-se ainda mais fascinante já que não se mostra tão previsível assim. Intercalando passagens do livro com as do tempo presente de Susan, alguns “flashbacks” do passado real acabam se misturando também, especialmente sobre a relação dela com Edward, revelando indicadores sobre a personalidade dos dois e os rumos distintos que suas vidas tomaram, o que diz muito sobre a jornada de solidão enfrentada por ela e o que motivou ele a escrever um livro tão triste, pesado e melancólico e dedicá-lo à Susan. Dentro do universo do livro, outro personagem fascinante é o do investigador Bobby Andes (Michael Shannon) que possui um excêntrico fascínio pelos detalhes sórdidos do caso, sugerindo inclusive que o próprio Tony comente repetidamente o que aconteceu, sem perceber a indelicadeza e a falta de sensibilidade que está cometendo. A sua obstinação em solucionar o caso, no entanto, acaba sendo crucial para legitimar a narrativa que se sustenta dentro de um intervalo de tempo superior a um ano e essas transições confusas entre passado e presente, dentro e fora do livro, nem sempre são bem conduzidas pelo roteiro e pela montadora Joan Sobel (em determinado momento o visual de Jake chega a ser o mesmo nas duas linhas narrativas, o que gera uma breve confusão).
Essas variações narrativas e as camadas que vão sendo formadas ao longo da história permitem que Amy Adams e, especialmente, Jake Gyllenhaal ofereçam atuações seguras e maduras. Ela constrói uma personagem forte e enigmática sempre trazendo uma tristeza e uma melancolia no olhar, além de um tom de voz contido, como se escolhesse friamente as palavras a serem ditas em função de todo o ressentimento e o peso da dor que carrega dentro de si. Já Jake Gyllenhaal tem a oportunidade de interpretar dois personagens através de composições distintas, seja Edward através de um perfil mais sensível e romântico que aparece por pouco tempo, mas principalmente como Tony que possui uma postura muito mais dramática e trágica. A maneira física e emocional com que Tony responde às descrições oferecidas pelo investigador ou quando confronta os criminosos e a si mesmo diante da tragédia vivida é muito bem ilustrado pelo ator que oferece uma atuação arrepiante e comovente. Michael Shannon está muito à vontade na pele de um sujeito excêntrico e exótico enquanto Aaron Taylor-Johnson não compromete e cumpre o seu papel com uma atuação convincente na pele de um bandido imaturo, irresponsável, frio e covarde.
“Animais Noturnos” acaba se revelando um drama sobre vingança, uma trágica história de amor e a jornada de duas pessoas na tentativa de superar os traumas do passado, mas que deixaram marcas tão profundas que não foram cicatrizadas totalmente, embora direcionados a alguma forma de arte (o livro para Edward e a estética das obras de Susan são representações da sua intimidade) e que convergem a uma sequência final épica, emblemática e incômoda já que a esperança e a felicidade nem sempre podem esperar, afinal nem tudo merece perdão ou uma segunda chance.
9.0/10
ARGUMENTÁRIO - UM ESPAÇO DE IDEIAS E REFLEXÕES
A Qualquer Custo
3.8 803 Assista AgoraA QUALQUER CUSTO
Dirigido pelo escocês David Mackenzie, “A Qualquer Custo” retrata uma região do Texas em que a maioria das pessoas luta para sobreviver diante de um cenário em crise já que as empresas de petróleo e de gás já não empregam mais como antes e os habitantes precisam lidar com incêndios provocados pela seca que desvalorizam as propriedades e dizimam parte da criação, além de dívidas hipotecárias e bancárias que estrangulam suas finanças. É um cenário sufocante e desolador resumido melancolicamente por uma pichação vista na parede de um banco logo no começo do filme: “Três guerras no Iraque e não podem renegociar nossas dívidas.” Esse colapso social também pode ser ilustrado pelos irmãos Toby (Chris Pine) e Tanner Howard (Ben Foster) que, após a morte da matriarca e com uma fazenda para cuidar, decidem praticar pequenos assaltos a banco como uma forma de sobrevida. Enquanto eles fazer planos para levantar dinheiro suficiente para honrar suas dívidas e recomeçar suas vidas (entenda-se apostar tudo em um cassino e roubar mais bancos para fazer mais dinheiro), eles são seguidos de perto pelo veterano xerife Marcus Hamilton (Jeff Bridges) que está em vias de se aposentar, mas quer se antecipar aos próximos passos da dupla para finalmente pegá-los e encerrar dignamente sua carreira.
Amparado pela belíssima e melancólica fotografia de Giles Nuttgens que retrata a aridez e a tristeza do oeste americano, “A Qualquer Custo” tem um latente clima de tragédia no ar, como se fosse apenas uma questão de tempo para que algo terrível acometesse os personagens da narrativa, uma sensação de tensão e nervosismo construída a partir do roteiro escrito por Taylor Sheridan (“Sicário – Terra de Ninguém”). A dinâmica entre Toby e Tanner é bem explorada, especialmente quando subverte as expectativas, afinal enquanto o primeiro ressente a falta dos filhos que não vê há quase um ano, o segundo já foi preso por assalto a mão armada e se mostra mais ardiloso e inconsequente. Ainda assim, Toby é quem acaba sendo responsável pelas principais decisões da dupla, sejam elas planejadas ou não, ainda que aja de maneira apenas um pouco mais racional que o irmão. Essa impulsividade mais eventual de Toby responde um pouco por algumas irregularidades da narrativa, mas Chris Pine realiza um bom trabalho, deixando de lado o heroísmo e/ou romantismo dos seus personagens costumeiros, mas sem deixar de ser politicamente correto, levadas as devidas proporções é claro, enquanto Ben Foster traz o mesmo vigor e a mesma energia que lhe são tão característicos e que ele já emprestara em filmes anteriores.
O destaque do elenco, no entanto, fica por conta mesmo de Jeff Bridges. Em um papel que cairia muito bem para Tommy Lee Jones também, o que não é nenhum demérito, apenas uma elogiosa observação, o veterano ator entrega uma performance segura e muito bem caracterizada do típico xerife do interior com sua voz arrastada, cadenciada e um sotaque carregado, sua linha de raciocínio simples e esperta, embora ocasionalmente ordinária, seu senso de humor politicamente incorreto e ofensivo, especialmente contra índios e mexicanos, além de um comportamento e uma serenidade sulistas que vem acompanhados de uma larga experiência profissional e de vida. A construção gradativa desse típico personagem texano é até mais importante para a narrativa do que as ações dele em si que se justificam mais para que se construa uma base emocional sólida que sirva de motivação para ele honrar os seus compromissos morais até mesmo depois da sua aposentadoria.
Contando com belas canções da música “country” norte-americana, “A Qualquer Custo” acaba sendo um filme que funciona muito mais pelo seu cenário desolador em que as pessoas perdem a sua identidade quando se veem dentro de uma realidade que não lhes oferece maiores perspectivas. Esse é o principal dilema dentro do drama provocado pela crise, seja ética, moral ou até mesmo financeira que, ironicamente, acaba sendo ligada, direta ou indiretamente, aos mesmos bancos que funcionam como agentes duplos, algozes da anomia e do caos, afinal financiam os sonhos das pessoas, mas são os primeiros a agirem de maneira impiedosa na hora de cobrar as dívidas. De certa forma, essa é a mesma jornada dúbia, moral e cruel imposta para os personagens em “A Qualquer Custo”.
8.5/10
Florence: Quem é Essa Mulher?
3.5 351 Assista AgoraFLORENCE, QUEM É ESSA MULHER?
“Florence, Quem é Essa Mulher?” é uma comédia dramática baseada em fatos reais, ambientada em meados da década de 40, sobre a atriz e cantora Florence Foster Jenkins. Mas afinal, quem é Florence Foster Jenkins? Esse filme dirigido pelo experiente Stephen Frears pretende responder essa pergunta, servindo como mais um veículo para o talento da veterana Meryl Streep que mais uma vez é indicada ao Oscar por uma atuação apenas moderadamente virtuosa. Florence (Streep) é uma socialite americana, herdeira de um banqueiro rico com qual foi casada, e que não tinha talento para atuar e cantar, mas que sonhava em se tornar uma cantora de ópera mesmo assim. Enfrentando as limitações provocadas pela idade e por uma doença venérea contraída na lua de mel, ela se dedica ao teatro na companhia comandada pelo seu atual marido, o britânico St. Clair Bayfield (Hugh Grant), porém trata-se de um jogo de cena mantido apenas por vaidade já que ninguém é capaz de contestá-la diante da sua falta de talento e da sua fragilidade de saúde, mas principalmente em função da influência da enorme quantia em dinheiro que ela tem a sua disposição.
O roteiro de Nicholas Martin realça a falsidade dos personagens ao redor de Florence para construir um universo potencialmente cômico, mas que acaba sendo redundante e repetitivo, afinal o que acompanhamos ao longo do filme nada mais é do que uma sucessão de sequências em que Florence esbanja falta de competência técnica e artística pra provocar o desconforto e o sentimento de vergonha alheia de St. Clair, do pianista Cosmé McMoon (Simon Helberg) ou de qualquer outra pessoa que esteja por perto. Enquanto St. Clair finge acreditar no talento da esposa como um gesto de motivação, carinho e devoação à amada (embora ele tenha uma vida dupla com outra mulher), o preparador de voz Carlo Edwards (David Haig), assim como outros, parecem se aproveitar da ingenuidade de Florence através de elogios falsos e vazios enquanto McMoon é o único que reage de maneira mais natural e espontânea diante do constrangimento do que vê e principalmente do que ouve, funcionando como uma espécie de representação do bom senso comum e do próprio espectador. Só que a graça construída a partir dessa proposta tem prazo de validade e não demora muito para que a tática se torne cansativa, ainda que parcialmente.
O diretor Stephen Frears realiza um filme de cartilha e às vezes parece soar ultrapassado até de maneira proposital, como se quisesse fazer uma comédia à moda antiga, como também dá a entender a evocativa montagem de Valerio Bonelli ou a dinâmica e divertida trilha sonora composta por Alexandre Desplat. Sem ser algo especialmente marcante ou esteticamente atraente, o filme, no entanto, não deixa a desejar em nenhum dos seus aspectos técnicos já que ajudam a legitimar o universo da narrativa e a construir os personagens física e emocionalmente (a direção de arte da casa de Florence assim como os seus figurinos extravagantes combinam com a sua personalidade e contrastam apropriadamente com os de St. Clair, por exemplo). E no caso de Florence, como o filme trata de um recorte da vida dela, o roteiro utiliza alguns diálogos para oferecer pistas e indicações sobre o seu passado e quase sempre são apresentados de maneira orgânica, sem soarem excessivamente expositivos, exceto quando ela se refere a terceiros.
E tratando-se de Florence Foster Jenkins, somente uma atriz do porte de uma Meryl Streep é capaz de encantar, divertir e emocionar através de uma interpretação sobre uma atriz fraca, limitada e ruim e ainda assim torná-la uma mulher doce, encantadora e admirável ao seu modo. Se Streep ainda é capaz de arrancar risos através dos solos vocais histriônicos de Florence, ela traz uma leveza e uma ingenuidade bastante dedicadas que podem ser percebidas pelo tom da sua voz, pelo seu rico gestual e até mesmo pelo olhar, como quando ela se sente levemente envergonhada ao contar que St. Clair escondeu dela as más críticas que ele recebeu como ator, revelando que ela não tem a mínima noção do quadro geral em que está inserida. Hugh Grant oferece uma atuação leve, delicada e carismática como um homem tão generoso quanto oportunista, tendo a oportunidade de encarnar o seu lado Colin Firth de maneira bastante segura e autêntica. Já o limitado Simon Helberg repete muito dos seus trejeitos já vistos na série “Big Bang Theory”, mas que aqui funciona perfeitamente bem, especialmente pela sensação que McMoon está segurando o riso a todo instante (e ele ganha o público justamente quando não se segura na primeira oportunidade que tem de rir em alto e bom som ao relembrar a atuação retumbante de Florence nos ensaios).
Tornando-se uma inesperada fonte de consolo e inspiração para uma parcela da sociedade americana em meio a um cenário de guerra através de uma abordagem simplista e rasteira, a trajetória de Florence Foster Jenkins acaba se tornando a de uma comédia involuntária e esse é o charme do filme assim como o seu calcanhar de Aquiles já que o apelo é bastante limitado, quase que sustentado inteiramente pelos esforços do seu elenco, especialmente Meryl Streep. “Florence, Quem é Essa Mulher” é um filme que parece discursar a favor daquela máxima de que a ignorância é uma benção, mas embora não consiga convencer a todos pelas suas próprias limitações, trata-se de um filme leve, de tom fabulesco e repleto de boas intenções que no fundo se eleva pela simplicidade de suas ideias até porque no fundo, no fundo, Florence era uma boa atriz e cantora. Bem lá no fundo.
6.0/10
Capitão Fantástico
4.4 2,7K Assista AgoraCAPITÃO FANTÁSTICO
Ben Cash (Viggo Mortensen) é o pai de seis filhos que resolveu criá-los e educá-los isolados no meio da natureza através de um senso de comunidade com inclinações “hippies”, budistas e naturalistas, ensinando-os técnicas de sobrevivência na floresta e estimulando a erudição através da leitura de obras renomadas e clássicas. Após o suicídio da matriarca que voltara à civilização para tratar de uma grave doença psicológica, os membros da família entram em conflito quanto à maneira de agir diante do ocorrido, mas logo decidem reivindicar o direito sobre o corpo da mãe para garantir que ela tenha uma cerimônia de cremação e de despedida coerentes com a ideologia que juntos eles sempre acreditaram e defenderam. “Capitão Fantástico” é uma história encantadora sobre um pai que abriu mão de uma vida normal para criar seus filhos através de valores que ele julgava serem os melhores, mais legítimos e adequados, mas também é um drama sensível e delicado sobre a individualidade e o processo de amadurecimento que nos definem.
O roteiro do diretor Matt Ross é muito rico e espirituoso em tratar com leveza e bom humor um tema tão sensível e delicado, afinal dentro dessa narrativa a influência da educação dos pais na vida dos seus filhos acaba sendo elevada a um grau altíssimo a partir do momento que estes tomaram uma decisão tão radical para cuidar dos seus. E não deixa de ser uma belíssima ilustração utilizada pelo roteiro que em determinando momento, quando uma das filhas de Ben faz um comentário sobre o livro “Lolita”, de Vladimir Nabokov, ela descreve o homem como um sujeito que odeia por considerá-lo um pedófilo, porém reconhece as artimanhas do autor em fazer com que nos sensibilizemos com sua história já que o livro é narrado através do seu ponto de vista de maneira bonita e romântica. De certa forma, o espectador de “Capitão Fantástico” experimenta dessa mesma experiência, afinal estamos diante de um homem essencialmente egoísta do qual nos encantamos, sem jamais deixar de lado a dubiedade do seu comportamento autoritário e da sua personalidade forte, embora contando com uma família formada por filhos inteligentes, generosos e harmoniosos.
Apoiado por um trabalho de montagem fluído, orgânico e dinâmico que muitas vezes equilibra no mínimo sete personagens em cena em uma mesma divisão e/ou sequência de planos, “Capitão Fantástico” ilustra esse estranhamento quanto ao estilo de vida de Ben e de sua família através do seu posicionamento anticapitalista, da valorização à filantropia e aos direitos humanos ao invés de práticas consumistas e/ou relacionadas à propriedade privada, mas principalmente pela interação nervosa e pontual que eles passam a ter com Dave (Steve Zahn), irmão de Ben, sua esposa Harper (Kathryn Hahn) e seus dois filhos adolescentes, afinal eles personificam a pressão da sociedade com um modelo de padrões universais de comportamento e de conduta que muitas vezes são seguidos por mera osmose, fazendo com que no processo as pessoas percam suas individualidades apenas para serem melhores aceitos no meio em que vivem. Ainda que sem a garantia de felicidade. O ponto de vista de Ben é muito bem defendido pelo mesmo, afinal ele se importa que seus filhos sejam seres pensantes e críticos, mas a explosão de raiva e frustração de Harper é perfeitamente compreensível também, afinal qualquer processo de ruptura é doloroso, logo exceção feita à discutível escolha de atores comediantes, como Zahn e Kahn, para defendê-los, ela e Dave não são pais piores do que Ben apenas por deixarem seus filhos consumirem Nike ou Adidas ou por não serem contra o sistema capitalista dominante. Ao mesmo tempo, a postura de Ben como pai é aceitável por educar seus filhos de uma forma a acreditar que o sistema não os corrompa e que eles mantenham a serenidade e a integridade em suas vidas de acordo com a educação que receberam, apesar das observações e preocupações igualmente fortes e eloquentes oferecidas pelo seu sogro (Frank Langella) que é o representante mais pragmático quanto à ideologia de Ben. Em sua totalidade, os personagens são frutos do meio em que vivem, sendo que algumas práticas tornam-se mais ou menos aceitáveis justamente pela dimensão do universo em que estão inseridos (o Papai Noel não deixa de ser um símbolo distorcido e com viés comercial do Natal, por exemplo, ao passo que a figura do filósofo Noam Chomsky pode merecer a mesma relevância, ainda que de forma irônica).
Matt Ross realiza um competente trabalho de direção técnica e de extremo bom gosto estético, emergindo intensamente no senso de amor e coletividade dos membros da família, mostrando-se bastante sensível e delicado na abordagem da narrativa já que valoriza a interação de Ben e seus filhos sem ter a necessidade de criar arroubos dramáticos para estabelecer conflitos dramáticos já que eles acontecem sutil e naturalmente entre os próprios integrantes da família por serem figuras inteligentes, destemidas e ainda tão próximas, logo essa intimidade é mais do que suficiente para se estabelecer algum tipo de catarse, sempre apresentando os personagens de maneira linear, independente de serem adultos ou crianças. A solução criada por ele para ilustrar as lindas visões de Ben com relação à esposa durante os sonhos também são muito inspiradas e poéticas assim com as escolhas leves e delicadas da trilha sonora de Alex Somers. A diretora de fotografia Stéphane Fontaine (“Ferrugem e Osso”, “O Profeta”, “Elle”) equilibra muito bem as paletas de cores mais fortes e quentes que fortalecem o espírito da narrativa repleto de calor humano, especialmente nas sequências noturnas, cujas cores se se assemelham muito com as que são vistas nos figurinos excêntricos e chamativos dos personagens, criados por Courtney Hoffman (“Os Oito Odiados”), que acabam se destacando especialmente nas sequências diurnas, construindo um belíssimo complemento do trabalho coletivo entre fotografia e figurino.
Assessorado por um jovem elenco altamente carismático, Viggo Mortensen realiza uma intensa e devotada atuação como um pai que parece se recusar a oferecer o caminho mais fácil para os seus filhos, porém é capaz de fazer qualquer coisa para garantir a felicidade deles, inclusive abrir mão do que ele tem de mais valioso e o ator dá credibilidade a um personagem que também sofre o peso das suas escolhas por maiores que sejam suas convicções. Contando com um clímax embalado por uma versão candidata a ser tornar “cult” do clássico “Sweet Child O´Mine”, do Guns N´Roses, e um desfecho que sugere uma solução alternativa encontrada pela família diante dos dilemas expostos já que deixa interpretações em aberto, até mesmo com certa ironia, sobre o destino dos seus personagens, “Capitão Fantástico” é um filme virtuoso em seus aspectos técnicos, mas é através da maneira leve e lúdica com que lida com um estilo de vida utópico e crítica os valores propagandeados pela nossa sociedade que o filme encontra de maneira definitiva o seu lugar no mundo, tornando-se uma inusitada celebração do conhecimento, do amadurecimento e da vida humana.
9.5/10
Moonlight: Sob a Luz do Luar
4.1 2,4K Assista AgoraMOONLIGHT: SOB A LUZ DO LUAR
“Moonlight: Sob a Luz do Luar” é um filme representativo e afirmativo sobre as identidades de raça e de sexualidade a partir da saga de Chiron, um jovem negro da periferia, que desde criança enfrentou a negligência paterna de quem o abandonou e a materna de quem não soube lhe criar, além de ter que superar as constantes perseguições e “bullyngs” sofridos pelos colegas de escola e do bairro em que mora em função do seu “jeito diferente”. Dirigido por Barry Jenkins, o filme conta com um roteiro escrito pelo próprio, a partir da história de Tarell Alvin McCraney, sendo estruturado em capítulos em que cada um deles recebe um nome próprio e representa cada uma das identidades assumidas por Chiron ao longo da história de sua vida e que exploram distintas experiências que servirão como traços da formação de sua personalidade.
Assumindo uma natureza episódica, a narrativa explora diferentes momentos da vida de Chiron para oferecer um amplo painel para um ciclo de repressão emocional e ódio, preconceito e violência. Ainda criança, quando era conhecido apenas como “Little” (Alex R. Hibbert), Chiron se sente confuso e assustado diante das ofensas que recebe sem compreendê-las totalmente, afinal naquele momento a sexualidade ainda é um assunto desconhecido em função de sua natureza precoce. A sua única lembrança boa da infância vem da presença de Juan (Mahersala Ali), um carismático traficante local, que acaba se sensibilizando com ele e assumindo uma importante figura de influência masculina e paterna. Tornando-se um adolescente reprimido (Ashton Sanders) já que as ofensas quanto a sua sexualidade tornam-se cada vez mais explícitas e violentas, Chiron vive um momento tenso e delicado já que precisa lidar com sua mãe (Naomie Harris), cada vez mais afundada no seu vício em drogas, e se descobre apaixonado por um colega de classe. As marcas profundas, físicas e emocionais dessa fase o tornam um homem mais sombrio, sob o codinome Black (Trevante Rhodes), porém Chiron nunca deixou de ser Chiron e quando ele recebe a ligação de Kevin (André Holland), após anos de separação desde o último confronto entre os dois, ele tem uma possível chance de fazer as pazes com o seu passado, reencontrar-se diante do espelho e até ser feliz de verdade como ele só tinha sido uma única vez na vida em uma noite na praia sob a luz do luar.
Uma das principais características de “Moonlight” é que ele possui três atos muito claros e bem definidos, sendo que Barry Jenkins não perde a perspectiva dramática, nem mesmo a identidade estética e visual do filme, em nenhum desses três núcleos, fazendo com que um filme marcado por eventos pontuais mantenha-se honesto, íntegro e homogêneo a sua proposta mesmo com os saltos no tempo da narrativa. Pecando apenas pelo excesso de câmeras lentas, inclusive na preparação de um jantar em que o “chef” coloca uma pitada de carinho, Jenkins faz o bom uso de distorções das imagens em algumas cenas para criar um eventual clima lúdico de devaneio assim como acerta quando permite que em um momento-chave haja um confronto do personagem com a câmera, como se intimidasse o espectador a tomar um posicionamento, o que é uma atitude bastante arrojada e corajosa diante da proposta defendida por Jenkins já que o filme muitas vezes se sustenta através do silêncio, da força invisível das emoções que estão represadas e subentendidas entre os personagens, mas que ocasionalmente pode encontrar uma sintonia e um momento perfeito através de uma bela canção escolhida em um “jukebox”.
O diretor Barry Jenkins também realiza uma ótima condução de atores, especialmente com os dois jovens Alex R. Hibbert e Ashton Sanders que interpretam Chiron nas duas primeiras etapas da narrativa. Já Trevante Rhodes tem a difícil missão de traduzir toda a construção emocional do seu personagem através de uma atuação monossilábica, onde os sentimentos mais profundos que lhe definem ainda estão reprimidos, sendo que ele não deixa a desejar em nenhum momento. André Holland oferece uma presença carismática essencial para tornar Kevin uma figura humana reconhecível e compatível com o parceiro de cena. Mahersala Ali entrega uma atuação bastante digna e sensível na pele de um sujeito que de certa forma busca alguma forma de redenção e/ou de reparação ainda que parcial dos seus erros através da projeção de uma boa educação para Chiron já que se sente indiretamente responsável pelo vício da mãe do garoto. Naomie Harris realiza um trabalho bastante competente, especialmente porque precisa sustentar de maneira explícita uma personagem que se modifica abruptamente em diferentes estágios do vício, logo sempre que ela aparece é em um único momento de uma nova fase de sua vida.
Com um ótimo trabalho de fotografia que aposta em tons repressivos e representativos e uma trilha sonora singela e honesta, “Moonlight: Sob a Luz do Luar” é um drama tocante, pungente, simples e direto que versa sobre a trajetória de um homem que foi forjado em uma longa trajetória de dores e decepções, mas que passou a vida inteira em silêncio buscando uma luz no fim do túnel e gritando pelo direito legítimo de ser quem ele é de verdade.
9.5/10
Até o Último Homem
4.2 2,0K Assista AgoraATÉ O ÚLTIMO HOMEM
Com “Até o Último Homem”, Mel Gibson realiza um senhor filme de guerra, mas antes disso constrói um drama torturante, piegas e maniqueísta. Desmond Doss (Andrew Garfield) é um jovem idealista que sempre sonhou em ser médico, mas que nunca estudou tanto para isso, logo quando a 2ª Guerra Mundial bate a sua porta, ele decide fazer o mesmo que seu irmão Harold (Nathaniel Buzolic), alistar-se no Exército, mas como socorrista como uma forma de cuidar de seus compatriotas sem ter a necessidade de disparar um tiro sequer. Nesse primeiro ato, o roteiro escrito pela dupla Robert Schenkkan e Andrew Knight ilustra de maneira eficiente a maneira crescente com que o clima da guerra vai se instaurando na rotina da pequena cidade de Lynchburg, no estado da Vírgnia. Filho de um veterano da 1ª Grande Guerra (em uma ótima participação de Hugo Weaving cujo papel tinha tudo para se tornar caricato), Desmond vai para o conflito em um batalhão diferente do irmão, contra a vontade da família e deixando sua futura esposa Dorothy (Teresa Palmer) esperando pelo seu retorno. Considerando a maneira artificial com que a relação romântica entre os dois é construída, a separação do casal é um alívio para o espectador já que não possuem química e Palmer tem uma irritante muleta interpretativa de sorrir para tudo que está ao seu redor até mesmo quando chora. E ainda tem o tal do Andrew Garfield, mas prefiro deixá-lo para depois.
A narrativa não se priva de apresentar as genéricas sequências de treinamento da tropa, explorando o incômodo que a posição de Desmond de não pegar em armas desperta em seus superiores e que desencadeiam uma série de ataques de parte dos seus companheiros que não querem dividir o mesmo espaço que ele. A resiliência, a força de vontade e a fé de Desmond são testadas já que em nenhum momento ele questiona a natureza da guerra, mas segue determinado em ajudar da forma que pode. O tom do filme assume contornos cômicos já que Howard não parece levar a sério a postura enérgica e punitiva dos seus superiores, como se fosse um peixe fora d´água, mas a presença de Vince Vaughn como um sargento linha-dura, um Sam Worthington extremamente canastrão como capitão e até mesmo Richard Roxburgh na pele de um sargento médico incapaz de declarar que Howard tem problemas mentais apenas pela devoção a sua fé parecem conduzir o filme para uma auto paródia mesmo que involuntária. Com mais delongas que o necessário, esse segundo ato do filme ainda se permite a um julgamento militar que serve apenas para enaltecer o senso de justiça americano e legitimar o posicionamento humanista e cristão de Desmond assistido pelo mérito do objetor de consciência que segundo a Constituição o resguarda em função da sua crença. E ainda tem o tal do Andrew Garfield, mas prefiro deixá-lo para depois.
Pautado por um conceito latente de que não existe nada de nobre, épico e/ou heroico dentro de uma guerra, “Até o Último Homem” é um drama de guerra que choca pelo horror e sensibiliza pela fragilidade humana quando um bando de jovens é recrutado para tirar a vida de outro bando de jovens, aqui ilustrados apenas como descartáveis japoneses “kamikases”. A partir do momento que a narrativa avança pelo “front”, Mel Gibson dá uma aula de direção ao construir sequências impactantes, seja pela tensão e pela preocupação em evidenciar o avanço das tropas sobre os cadáveres dos soldados do antigo batalhão até pela construção estética das batalhas de guerra onde impera a carnificina e a brutalidade provocada pelo caos em que mortes ocorrem a esmo sem nenhum tipo de glorificação e quase sempre resultantes de uma imprevisibilidade qualquer, sem dar espaço para nenhum tipo de clímax. Por menor que seja o aparente impacto provocado pelas ações de Desmond, cada vida de companheiro que ele salva ou sopro de esperança que ele oferece faz toda a diferença e lá no meio do campo de batalha as motivações altruístas dele superam qualquer discurso potencialmente vazio ou politicamente correto, afinal ele está sendo prático, objetivo e cumprindo a sua missão com devoção e dedicação admiráveis. É claro que nesse momento de generosidade em meio a um cenário de guerra, a preparação anterior do roteiro serve de contraponto, afinal Desmond passa a servir como uma espécie de salvador daqueles que antes o agrediram, sem deixar ninguém para trás (ainda assim, a sua ação de caridade diante de inimigos feridos acaba sendo um ato de bondade e pieguice difícil de engolir). Os humilhados serão exaltados, brada Mel Gibson atrás das câmeras, fazendo o bom uso dos efeitos e da edição de som e sem jamais perder a dinâmica das sequências de ação. E ainda tem o tal do Andrew Garfield, mas prefiro deixá-lo para depois.
Mel Gibson se esbalda ao criar bons momentos de suspense e tensão e ao comandar um show de pirotecnia, mas sem jamais perder a dimensão humana do combate ou tornar-se um exercício gratuito de violência gratuita, apesar dos discutíveis usos de pesadelos e “flashbacks” para quebrar a narrativa, mas sabendo fazer o uso da eficiente trilha sonora sem parecer intrusiva. O trabalho de fotografia sofre da mesma oscilação presente na narrativa já que enquanto na primeira hora de filme utiliza cores fortes e quentes que denotam certa artificialidade, como no primeiro beijo ou na primeira noite de amor do casal, a partir do momento que mergulha no clima de guerra os tons mais acinzentados tomam conta das sequências, reforçando a crueza e a crueldade do ambiente, além de oferecer um óbvio contraponto com o vermelho dos tiros, das explosões, do sangue e dos restos mortais dos soldados. E ainda tem o tal do Andrew Garfield, mas prefiro deixá-lo para depois. Na verdade vai ter que ser agora mesmo. O jovem ator não realiza um trabalho de atuação seguro e homogêneo, especialmente na primeira hora, enfrentando sérias dificuldades para controlar caras e bocas na tentativa de humanizá-lo e/ou torná-lo simpático, provocando muito mais incômodo e irritação. Sem convencer como um jovem de natureza romântica, Garfield apenas cumpre tabela quando o roteiro investe na conturbada relação de Desmond com o pai, embora o ator contribua quando precisa demonstrar firmeza e serenidade na defesa da ideologia do seu personagem de não colocar as mãos em armas. A nobreza de caráter de Desmond, nem tanto pelas suas demonstrações de fé que pelo menos até o clímax são bastante tímidas e apenas simbólicas, ajuda a tornar a atuação de Garfield sensível e empática, além do fato de que o ator se entrega física e emocionalmente para ilustrar a força, a garra e a determinação do soldado diante dos amigos feridos. É um trabalho digno e esforçado, porém muito longe de ser infalível.
“Até o Último Homem” é um senhor filme de guerra e apresenta um clímax emocionante e edificante que não se apresenta de maneira piegas, embora tenha todos os elementos e ingredientes a favor disso, como quando Desmond pega uma arma na mão pela primeira vez ou quando Mel Gibson faz escolhas quanto ao uso do plano em primeira pessoa e até mesmo na utilização da câmera lenta, com exceção aos instantes finais de guerra que são irritantes em todos os seus sentidos técnicos e narrativos, como se pertencessem a outro filme e que dão a incômoda sensação de que Gibson não soube a hora de terminar (não agrega em nada reforçar a ideia de que os japoneses são “kamikases”). Essa sensação, de certa forma, compreende a experiência do filme como um todo, pois embora Mel Gibson saiba fazer muito bem o que de melhor ele sabe fazer, até chegar no seu auge, ele praticamente entrega uma primeira hora de filme burocrática, claudicante e sem um pingo de personalidade e inspiração. Depois, no entanto, ele praticamente faz valer a pena cada minuto. Assim como foi a história de vida e de guerra de Desmond Doss que salvou 75 feridos durante a guerra sem disparar um tiro sequer e faleceu de causas naturais em 2006 aos 77 anos de idade.
8.0/10
Lion: Uma Jornada para Casa
4.3 1,9K Assista AgoraLION: UMA JORNADA PARA CASA
“Lion: Uma Jornada Para Casa” traz uma história tão incrível, extraordinária e repleta de infortúnios que se custa a acreditar que se trata de um filme baseado em fatos reais. Ambientado inicialmente na Índia, o roteiro escrito por Luke Davies, a partir do livro de Saroo Brierley, acompanha o pequeno Saroo (Sunny Pawar) que ao realizar um passeio noturno acaba se perdendo do irmão Guddu (Abhishek Bharate). Viajando milhares de quilômetros de casa por uma das inúmeras linhas de trem da ferrovia indiana, o garoto de 5 anos precisa literalmente se virar sozinho para sobreviver já que as ruas oferecem perigos a cada esquina e até mesmo as pessoas que se propõem a ajudá-lo, na verdade possuem más intenções. Ao chegar a Calcutá, ele é fichado como uma criança perdida e acaba sendo levado para uma espécie de instituição para órfãos, que mais se parece com uma prisão, até ser encaminhado para adoção e direcionado para um casal de australianos: John (David Wenham) e Sue (Nicole Kidman).
A história que serve de base para a narrativa do filme é muito poderosa e tem contornos épicos, como indica as principais melodias da trilha sonora nessa passagem, logo o seu apelo é universal e quase infalível, sendo que em seus melhores momentos o diretor Garth Davis até consegue realizar um filme singelo, honesto e cativante que funciona principalmente por estabelecer uma visão compatível com a idade, o grau de maturidade e o grau de noção que o pequeno Saroo tem do mundo. Em sua infância, por exemplo, a dimensão da solidão e da sua fragilidade é entendida pela proporção dos longos corredores dos vagões do trem ou pelo tamanho das poltronas do avião em que ele embarca assim como a presença de uma multidão de pessoas se torna uma imagem impressionante e impactante e as dificuldades de linguagem e do desconhecido se tornam ainda maiores e mais críticas uma vez que na Índia existem inúmeros dialetos diferentes. Sunny Pawar e Abhishek Bharate são atores mirins adoráveis, encantadores e carismáticos, o que favorece a empatia e a expectativa quanto a uma virada positiva em suas vidas assim como um potencial reencontro.
O processo de educação aos bons costumes e de adaptação do pequeno Saroo em seu novo lar no estado da Tasmânia, localizado na Austrália, assume um tom delicado através de contornos leves e lúdicos, mas que estabelecem uma perigosa relação de causa e consequência com a interferência dos ricos e a exploração da pobreza social, renegando a cultura, as raízes de Saroo e seu histórico familiar em troca de uma vida com melhores oportunidades, como se o que foi mostrado até então tivesse apenas uma importância relativa. Nesse ponto da narrativa, o carisma de John e Sue são essenciais para que o apelo da história se mantenha a partir do desejo do casal em construir uma família sólida, sendo que a trilha sonora e a fotografia ajudam na construção desse ambiente de calor humano, porém um salto no tempo prejudica parte do contexto, não apenas com relação a esta adoção, mas também a de uma segunda que envolve complicações das quais John e Sue não esperavam e que acompanhamos muito pouco, invalidando inclusive os eventuais conflitos posteriores entre os irmãos adotivos. É como se o filme praticasse uma autossabotagem ao negligenciar ao espectador uma parte importante e relevante da história que acompanhávamos tão fluida e naturalmente pelo menos até então, o que prejudica até mesmo a atuação de Nicole Kidman que até tem lá seus momentos, especialmente ao relembrar a sua relação com o pai, mas que jamais consegue imprimir de maneira concreta a personalidade forte de uma mulher que aprendeu a amar sua família incondicionalmente, mesmo diante de conflitos e imperfeições (e uma suposta “revelação” dela acaba não gerando impacto emocional nenhum).
Após esse salto no tempo de 20 anos, Saroo (Dev Patel) já está em uma fase adulta, iniciando um curso superior na área de Hotelaria em Melbourne, uma cidade moderna, arrojada e efervescente, e em meio a um grupo de estudantes de diferentes nacionalidades, ele acaba se apaixonando pela americana Lucy (Rooney Mara, desperdiçada), porém em meio a essa multiculturalidade, lembranças do seu passado na Índia são reacendidas. Nesse momento, Garth Davis começa a se perder em um número até excessivo de “flashbacks” e/ou de inserções de cenas da infância de Saroo para trabalhar com a confusão emocional do personagem, mas cujos méritos narrativos se tornam exaustivos pela repetição e pela estética pouco atraente. E a partir daí, o filme começa a perder força porque o roteiro não sabe criar uma linha narrativa suficientemente madura entre a adoção de Saroo e seu posterior sentimento de nostalgia, afinal em termos de tempo se passaram 20 anos, mas a narrativa nesses poucos minutos não se engaja para induzir o peso destes anos e o quanto a falta da sua identidade original lhe custava tão caro já que é algo que novamente acompanhamos de maneira apenas superficial. O surgimento da relação de Saroo com Lucy assim como as crises do relacionamento são quase instantâneos, logo mais uma vez há uma pressa narrativa que acelera a cadeia de eventos na tentativa de abraçar o maior número de catarses dramáticas possíveis, mas que se tornam apenas eventos isolados de apelo limitado. Dev Patel confere integridade ao seu personagem, mas ele parece em uma constante luta frente às mais variadas circunstâncias impostas pela narrativa, mas toda a sua entrega e a sua dedicação são muito bem recompensadas no comovente clímax onde o talentoso ator esbanja intensidade e sensibilidade.
“Lion: Uma Jornada Para Casa” é uma síntese do seu personagem central já que está tão preso ao passado que não consegue ter personalidade suficiente para seguir em frente na construção dessa busca angustiante para preencher seu vazio emocional e/ou para encontrar as respostas que tanto lhe afligem, algo que parece mais bem resolvido na trilha sonora que não nega a influência de melodias indianas. No entanto, o apelo da história da infância de Saroo é tão lindo, forte e intenso que o diretor Garth Davies e o roteirista Luke Davies parecem acreditar que não precisam fazer mais nada a favor do filme, limitando-se a eventos burocráticos, contando com a alta eficiência do Google Earth, e conflitos dramáticos que jamais alcançam o mesmo nível de complexidade inicial, um pouco mais sobre a mãe já que a relação com o pai inexiste, mas especialmente com relação ao irmão adotivo que simplesmente fica no meio do caminho. Dessa forma, o filme acaba perdido, sem rumo e sem sair do lugar, despertando uma curiosidade muito maior com relação ao seu material de origem, o que demonstra uma pequena dose de decepção e desapontamento.
6.5/10
Jackie
3.4 740 Assista AgoraJACKIE
Sob a direção do chileno Pablo Larrain, “Jackie” é um filme que lança um olhar humano sobre a reação e as impressões da primeira-dama Jacqueline Kennedy (Natalie Portman) após o atentado que tirou a vida do seu marido e então presidente americano John F. Kennedy (Caspar Phillipson). A dinâmica do filme se divide entre a entrevista concedida por Jackie, como era mais conhecida pelos íntimos, em sua casa a um jornalista (Billy Crudup) para oferecer a sua versão sobre a história, e os “flashbacks” que narram os eventos seguintes à tragédia. “Jackie” é também um típico filme que serve como um verdadeiro sonho para qualquer atriz, pois embora seja classificado como uma cinebiografia, ela tem uma condução quase teatral que funciona como uma espécie de palco para que Natalie Portman esbanje mais uma vez seu refinamento artístico.
Inicialmente, Jackie se mostra arredia e bastante intransigente com o jornalista evitando a qualquer custo que ele se aproprie da história e a transforme em uma peça que não faça jus a maneira como ela gostaria que o seu marido fosse lembrada. Essa interação, no entanto, acaba sendo importante do ponto de vista narrativo por oferecer diferentes perspectivas para determinadas situações que acabaram se tornando de domínio público, mas que foram pouco abordadas em um foro íntimo, como os direitos de propriedade e de posse de uma ex-primeira-dama ou a decisão de Jackie de optar por um cortejo fúnebre, inclusive expondo seus filhos de maneira desnecessária. Ainda assim, o roteiro de Noah Oppenheim parece um pouco confuso na sua tarefa de criar um panorama sobre Jackie e as pessoas ao seu redor a partir de um episódio específico já que força a existência de alguns diálogos expositivos, inclusive presentes na própria entrevista, ao mesmo tempo em que não oferece um pano de fundo satisfatório para dimensionar a natureza de outros personagens que são subaproveitados, como Bobby Kennedy (Peter Sarsgaard), assim como ao ilustrar aspectos da sua vida que são supostamente relevantes, mas que não repercutem com propriedade e/ou a complexidade devida, como a relação de Jackie com a religião que ao menos rende uma conversa de Jackie com um padre (John Hurt) com direito a uma parábola maniqueísta e outras reflexões pertinentes.
Alternando sequências de arquivo e/ou que simulam imagens de arquivo que realçam um eficiente e cuidadoso trabalho de fotografia, Pablo Larrain se revela um diretor bastante metódico e meticuloso já que exige que sua câmera seja posicionada frontalmente aos rostos dos atores quando aposta em uma sucessão de planos e contra planos durante a entrevista. Em dado momento, Jackie ensaia seu discurso e se maquia diante do espelho, porém Larrain opta por filmá-la de costas, captando apenas pequenas partes dela através do reflexo já que após a tragédia, ele a expõe, em um close, repleta de sangue pelo rosto enquanto tenta se recuperar do choque e da dor provocados pelo ocorrido, o que não deixa de oferecer uma rima visual importante e de impactante simbolismo. O mesmo vale para a insistência de Jackie de se manter com o figurino mesmo sujo de sangue, como se ela também estivesse sangrando, ou para a trilha sonora desconcertante, insinuante e incômoda que pretende, através dos seus acordes, traduzir o sentimento de dor e tristeza a partir de um registro melódico e estranho, quase que emulando a trilha de um filme de ficção científica, fazendo com que a experiência se torne excêntrica e apropriada. Há planos belíssimos construídos durante a procissão do funeral, como o que tenta captar o rosto de Jackie debaixo do véu preto do seu vestido fúnebre, sendo que Larrain é muito preciso no que decide mostrar ou não mostrar na reconstituição do atentado. A aposta em reconstituir um tour televisionado pela Casa Branca acaba se revelando muito mais uma decisão fetichista para conferir verossimilhança no processo de reconstituição do filme enquanto um momento de devaneio em que Jackie busca por estabelecer uma rotina comum enquanto desfruta do salão Oval não deixa de ser mais uma ótima ilustração do estado emocional da ex-primeira dama.
Natalie Portman oferece uma performance exuberante, pois ela tem a preocupação de captar o sotaque, os maneirismos e os gestuais de Jackie Kennedy, mantendo seus olhares sempre intensos e expressivos, porém a sua atuação ganha ainda mais autenticidade quando explora o turbilhão emocional vivenciado por Jackie, passando pelo registro do seu choque quando vê seu rosto manchado pelo sangue do marido, pela momentânea confusão mental ao tentar se portar de maneira racional em meio ao nervosismo enquanto se preocupa com detalhes da autopsia, do funeral, do enterro ou até mesmo sobre as condições financeiras da família após a morte de Kennedy. É sem dúvida um trabalho de atuação bastante metódico, detalhista e maduro que somente uma atriz segura de si e plenamente consciente do seu potencial artístico poderia oferecer e que revela Jacqueline Kennedy como uma mulher muito mais complexa do que uma mera primeira-dama vaidosa e mimada que vestia os terninhos da moda. Portman legitima a dor da heroína trágica assim como sustenta o cinismo de Jackie durante a entrevista diante da indiferença dada ao legado do seu marido assim com reforça a sua irritação em relação aos boatos e rumores que são atribuídos a ela.
Nos EUA, em termos de apelo popular, a família Kennedy foi a que mais se aproximou da aura que existe até hoje com relação à Coroa Britânica na Inglaterra. Eles eram lindos, jovens, sempre vestidos elegantemente, ela especialmente, portando-se de maneira impecável, apesar das polêmicas, e representavam um ideal de mundo para os americanos em que tudo era possível, o que naturalmente ascendeu inspiração e seguidores, mas também detratores e invejosos inimigos. Ignorando qualquer tipo de viés político, “Jackie” é um filme intimista que oferece uma perspectiva humana sobre uma mulher que o mundo conhecia apenas como a primeira-dama, a mulher que sempre estava ao lado do presidente americano, mas que aqui se mostra de maneira transparente, falível, contraditória e imperfeita, logo um pouco mais próxima dos relés mortais.
7.5/10
Loving: Uma História de Amor
3.7 292 Assista AgoraLOVING
“Loving” será um dos filmes mais impactantes que você verá em 2017 e ele sequer foi indicado ao Oscar na categoria principal deste ano (o que também não quer dizer muita coisa). Essa frase de efeito é justa, mas o exagero contido nela não combina nem um pouco com a delicadeza e a sutileza conferidas pelo roteirista e diretor Jeff Nichols à história de Richard (Joel Edgerton), um homem branco, e Mildred Loving (Ruth Negga), uma mulher negra, em plena década de 50 quando os Estados Unidos da América era um país dividido pelo preconceito já que o casamento inter-racial ainda era proibido em alguns estados americanos. O filme aborda o tema do preconceito racial com tanta leveza e humanidade, mas sem esconder nenhum traço de maldade e crueldade, que não tem como evitar que a emoção fique à flor da pele já que os sentimentos são verdadeiros, embora sejam contidos.
À espera do primeiro filho, Richard e Mildred vão para Washington oficializar o casamento, mas quando retornam à cidade de Central Point, no estado Virginia, eles são surpreendidos com a uma ação da polícia que o levam à prisão, pois esse tipo de união é considerado crime pela lei local e as autoridades entendem que um relacionamento inter-racial é contra a vontade de Deus. Os pardais e os rouxinóis são pássaros diferentes e não se misturam, chega a poetizar um dos policiais, expondo a sua ignorância da maneira mais sublime, afinal desconhece que as duas raças de pássaros convivem em perfeita harmonia na natureza. Interessante notar também como mais de uma vez o roteiro ilustra uma espécie de inimigo invisível que parece torcer para que o casal não fique junto em decorrência das sucessivas denúncias que são feitas contra eles, o que pode estar ligado tanto aos brancos quanto aos negros que por ocasião da repressão ou da própria ignorância estimulada há anos também não admitem a mistura já que a própria integração de Richard dentro da comunidade negra está passível de críticas pelos seus integrantes.
O cinismo e a violência psicológica promovida pelos agentes da lei ao impedirem que duas pessoas que se amam não fiquem juntas por causa da cor da pele em um período histórico não tão distante do nosso presente é um atentado contra a humanidade, por isso é que custa tão caro para Richard ser impedido de dizer que não acha isso certo e uma separação por 25 anos, como é sugerido pelo primeiro advogado do casal, amigo do juiz, não é nem um pouco razoável, embora tenham que se declarar culpados pelo crime de união inter-racional para não serem presos novamente, sendo impedidos de viverem no estado da Virginia, ao mesmo tempo, como marido e mulher. Dessa forma, eles acabam vivendo juntos ao lado dos filhos em outro estado, mas longe da família materna e paterna, enquanto acompanham o crescimento do movimento pelos direitos civis, liderado por Martin Luther King, até que por iniciativa de Mildred, dois jovens advogados civilistas se interessam pela causa dela e de Richard ao ponto de levar o caso à Suprema Corte Americana em busca de um mínimo de dignidade humana.
Ruth Negga é uma atriz fantástica. A delicada mudança de olhar dela ao avistar uma mesma área, antes e depois de descobrir que seria o terreno da casa que Richard construirá para viver ao lado de Mildred já ganha o espectador logo de cara. Sempre adotando uma postura frágil, delicada, triste e melancólica, Negga realiza um trabalho sensível e delicado, externando a leveza e a pureza de coração de Mildred ao sempre postar sua voz de maneira baixa e submissa, ao se mostrar assustada dentro da prisão ou ainda nervosa e ofegante diante de um telefone importante, mas especialmente pela lealdade que tem pelo marido, muitas vezes representadas apenas pelo olhar, e pela sua determinação silenciosa de não se entregar facilmente às adversidades legais. Joel Edgerton tem a difícil missão de legitimar um personagem que é um trabalhador braçal, tem um grau de instrução baixo e que por isso acaba sendo um homem de poucas palavras, mas que possui um coração enorme, generoso e apaixonado. Sempre com expressões fechadas, pesadas e carrancudas, Edgerton não deixa que essa postura impeça que Richard ilustre suas emoções, como quando se coloca na frente dos policiais em vias de ser preso apenas pelo fato de participar do parto do seu primeiro filho ao lado de Mildred ou quando afirma a Mildred que cuidará dela de maneira emocionante, mas principalmente quando ele permanece calado em uma perceptível batalha interna. São dois trabalhos de atuação complexos pela simplicidade dos personagens que evocam expressões limitadas, mas que mesmo assim não deixam de ser relevantes ou bastante emocionais. A praticidade e a simplicidade emocional do casal são comoventes até mesmo quando eles se comportam de maneira conformista diante da ação da lei local que os impedem de ficar juntos, mas sem jamais desistir de reverter o quadro a seu favor, o que não significa necessariamente entregar-se a discursos inflamados ou momentos de explosão, raiva e revolta. Tudo é muito sensível e contido.
A passagem de tempo em “Loving” ocorre de maneira fluida e natural, apesar de alguns eventos repetitivos e/ou redundantes com viagens e idas e vindas, entretanto não são necessárias muitas informações para compreendermos a evolução temporal da narrativa, seja pelas mudanças de estação ou pelo aumento da família e/ou crescimento dos filhos. Essa suavidade no tom pode ser percebida pelo estilo de direção de Jeff Nichols que jamais se torna refém do melodrama já que os personagens sofrem, lidam com esse sofrimento e/ou enfrentam as consequências dos seus atos com absoluta resiliência. A aparente frieza da narrativa associada a uma trilha sonora triste e discreta e uma fotografia quente e calorosa é o que tornam o conjunto da obra tão especial, afinal apoiado em duas ótimas atuações, o filme mostra que para lutar por uma causa não são necessárias raiva, revolta, vandalismo ou qualquer outro tipo de atitude violenta, afinal como é uma história em que o amor move os personagens é o amor que romperá com as barreiras do preconceito e que fará justiça no coração e na lei dos homens.
9.0/10
Estrelas Além do Tempo
4.3 1,5K Assista AgoraESTRELAS ALÉM DO TEMPO
Em 2016, o Oscar esteve envolto em uma polêmica já que nenhum negro esteve indicado em nenhuma das categorias, nem mesmo nas técnicas, e muito se discutiu sobre a representatividade dos negros dentro da indústria cinematográfica norte-americana e pouco se falou sobre méritos. Nenhum negro foi indicado ao Oscar por que não havia nenhum negro a ser indicado ou nenhum trabalho realizado por um negro foi bom o bastante para ser lembrado? Talvez, as duas coisas. Essa situação delicada fez com que a Academia fizesse mudanças drásticas na composição dos seus membros, dando mais espaço para a diversidade e para as minorias (que já não são tão minorias assim, é bem verdade), projetando reflexos a médio e longo prazo nesse cenário. Porém, já em 2017, houve um número recorde de indicações de atores, atrizes e profissionais negros na premiação, porém as duas perguntas feitas inicialmente ainda cabem, ajustadas diante desse novo painel. Os negros mereceram a indicação ou foram lembrados apenas para compensar a ausência do ano anterior? No caso do filme “Estrelas Além do Tempo”, protagonizado por três atrizes negras e indicado ao Oscar de Melhor Filme, é evidente que houve uma baita boa vontade dos integrantes da Academia para que o indicasse, revelando-se uma piada de mau gosto assim como as inúmeras que os negros estão cansados de ouvir ao longo da História por maior e mais digno que seja o apelo da história real. Dito isto, “Estrelas Além do Tempo” é um filme simpático, agradável e nada mais.
Contando com o maior número possível de diálogos expositivos por minuto, o roteiro escrito pelo diretor Theodore Melfi ao lado de Allison Schroeder, baseado no livro de Margot Lee Shetterly, explora duas vertentes confortáveis e desgastantes que são os clichês e os estereótipos, variando entre escolhas que funcionam com outras que incomodam. No auge da Guerra Fria, Katherine Goble (Taraji P. Henson) é uma exímia matemática que trabalha em um setor responsável por cálculos na NASA, dedicado apenas a mulheres negras, ao lado de suas melhores amigas Dorothy Vaughan (Octavia Spencer), que anseia por uma promoção para o cargo de supervisora, e Mary Jackson (Janelle Monáe), que pretende concorrer a uma vaga de engenheira. Quando Katherine é recrutada por Vivian Mitchell (Kirsten Dunst) para trabalhar na equipe do experiente Al Harrison (Kevin Costner), ela descobre a equação necessária para garantir a segurança da missão americana que pretende lançar pela primeira vez um homem ao espaço (e antes dos russos, de preferência), mas sem antes passar por inúmeras situações de preconceito e discriminação racial com algumas pitadas de humor e certa dose de sentimentalismo maniqueísta.
Uma das atitudes constrangedoras recorrentes do filme é o fato de existir um banheiro só para pessoas de cor assim como a conduta discriminatória que ocorre até mesmo na separação da garrafa de café que os colegas de trabalho de Katherine se recusam a dividir com ela e que servirão de estopim para a explosão emocional da personagem em determinado momento. Oferecendo um pano de fundo familiar e bastante simplista para ilustrar o perfil de mulher viúva e independente, mãe de três filhas, mas que ainda assim é uma excelente profissional, Katherine demonstra extrema segurança para debater tecnicamente qualquer elemento das suas análises matemáticas enquanto o roteiro trata os termos técnicos de forma genérica, mas que assume um tom positivo em termos de dinâmica narrativa já que funciona na maior parte do tempo (uma determinada sequência de palestra de Katherine soa artificial). Ainda assim um contraponto interessante que se torna um apelo cômico involuntário é ver os personagens brancos encarnando estereótipos, como Vivian na pele da mulher fria, racional e rabugenta e até mesmo a presença de Jim Parsons, da série “The Big Bang Theory”, como um engenheiro bobalhão, que basicamente funciona para enaltecer a estupidez deles, os brancos, com relação às personagens negras. Não é preciso nem dizer quem é que costuma interpretar esse tipo de personagem raso na maioria das produções cinematográficas, mas mesmo assim é importante lembrar: os negros.
Seguindo a cartilha dos dramas piegas e edificantes, o diretor Theodore Melfi faz um trabalho extremamente convencional ainda mais que o arco dramático das personagens é previsível, tornando ainda maior a antecipação de qualquer clímax dramático, como o uso da chuva como elemento catártico ou da trilha sonora de folhetim, já que a sensação que se tem é que o filme foi preparado apenas para orquestrar o momento da redenção de cada uma delas. Desde o início já é possível prever que cada uma delas terá espaço para um momento de discurso que pretende ser utilizado no clipe do Oscar, ou seja, tudo é friamente calculado para despertar a emoção. A ótima fotografia favorece o tom da narrativa mais determinante para cada momento, inclusive reforçando o artificialismo em alguns momentos enquanto que nas sequências que simulam imagens televisivas se apresenta de maneira bem sucedida. Em linhas gerais, o elenco do filme é muito eficiente e carismático a começar por Taraji P. Henson que confere credibilidade, energia e intensidade a uma personagem que se recusa a fazer papel de vítima, embora sofra com as constantes humilhações enfrentadas. Octavia Spencer e Janelle Monáe oferecem atuações honestas e corretas, cada qual com o seu momento, mas sem o mesmo brilho e a mesma entrega que a colega de cena, embora a camaradagem entre as três salte aos olhos. Kevin Costner está muito à vontade na pele do líder da equipe que é tão patriótico quanto pragmático, mas que gradativamente dá indícios de generosidade, e mesmo quando toma atitudes politicamente corretas não perde seu apelo até quando serve para o roteiro ilustrar o momento em que o homem branco salva o dia dos negros. Mahersala Ali tem carisma e uma boa presença em cena na pele do potencial romântico de Katherine, mesmo com pouquíssimo tempo de cena (a sequência do jantar é lindamente encenada).
Justiça seja feita, a narrativa de “Estrelas Além do Tempo” tem muita força e apelo, ainda mais inspirada em mulheres reais, pois é um filme afirmativo para a raça negra e ainda discursa fortemente sobre o empoderamento feminino. Diferentemente de Katherine, o espectador não precisa ler nas entrelinhas para perceber que “Estrelas Além do Tempo” tem uma excelente história para contar, porém o caminho escolhido aqui foi o mais fácil, o que nem sempre é o mais recompensador em termos de mérito e qualidade. E essa lição é atemporal, universal e indiscriminatória.
6.0/10
Ave, César!
3.2 311 Assista AgoraAVE, CÉSAR!
“Ave, César!” é uma comédia extremamente problemática escrita e dirigida pelos maravilhosos irmãos Joel e Ethan Coen que tenta funcionar como uma homenagem ao velho cinema hollywoodiano dos grandes estúdios do passado em uma espécie de paródia levemente inspirada em fatos reais, mas que parece ter deixado o bom humor e as melhores piadas do lado de fora do cinema. Eddie Mannix (Josh Brolin, monocromático) é um alto executivo do estúdio Capitol que se encarrega de garantir o bom funcionamento das produções e o bem-estar dos astros, mesmo que isso signifique servir como babá ou até mesmo conselheiro amoroso. Quando Baird Whitlock (George Clooney, repetindo-se na canastrice), maior estrela do cinema da época, é sequestrado durante as gravações da mais nova superprodução bíblica do estúdio, Eddie também precisa lidar com as insatisfações do diretor Laurence Laurentz (Joseph Fienes, em uma boa e pequena participação) com a escolha imposta pelo estúdio de Hobie Doyle (Alden Ehrenreich, fraco como deveria ser), um ator limitado e especializado em westerns, para outra grande produção, mas ambientada em um cenário da alta sociedade, enquanto recebe uma proposta praticamente irrecusável para abandonar o cinema e partir para trabalhar na televisão que promete ser a nova galinha dos ovos de ouro do entretenimento.
Apoiada por uma produção técnica eficiente, especialmente a direção de arte que se diverte com a diversidade de cenários, a narrativa do filme quer evocar através da nostalgia algum sentimento de identificação, especialmente para o público cinéfilo, porém o roteiro é muito burocrático na construção de sequências que buscam extrair algum tipo de humor até porque Eddie é uma figura aborrecida e o filme parece investir em um tom mais sério como o de uma investigação criminal dentro dos estúdios de gravação que até remete um pouco aos filmes “noir”, sendo os únicos momentos de raro desprendimento aquele em que Eddie pede aos representantes de diferentes religiões a aprovação quanto à versão de Jesus Cristo bancada pelo estúdio e o que se passa em uma sala de projeção envolvendo uma senhora e um lenço. Embora se justifique de maneira orgânica, o filme acaba amarrando os eventos dessa sua trama através de uma sucessão de esquetes que evocam atores e/ou filmes clássicos do cinema, com maior ou menor inspiração, como a atriz que interpreta personagens doces, mas que se comporta como uma megera atrás das câmeras, vivida por uma canastrona Scarlett Johansson ou o musical interpretado por um grupo de marinheiros, liderados por um inspirado Chaning Tatum.
Já no que se refere ao núcleo de Baird Whitlock, o seu sequestro acaba se tornando uma espécie de terapia coletiva dos autores, escritores e roteiristas que se sentem menosprezados diante do “status quo” estabelecido pelos estúdios que mimam suas estrelas e minam os responsáveis diretos pela criação das histórias que rendem milhões à indústria. Trata-se de um discurso válido, ainda mais vindo dos irmãos Coen, que sempre foram escritores talentosos, mas que penaram até se tornarem diretores reconhecidos, mas acaba sendo uma defesa de classe vazia e desperdiçada dentro de um filme fraco deles, o que não deixa de ser duplamente frustrante, mesmo sob uma conotação claramente cômica. O desconforto de Hobie Doyle em atuar em filmes que não figuram em sua zona de conforto rendem as melhores piadas do filme, mas elas são tão diluídas e de maneira tão irregular no decorrer do filme que a sensação que se tem é que cada um dos núcleos do filme mais se parecem com ideias inacabadas dos irmãos Coen que eles reuniram abruptamente em um mesmo filme na expectativa que funcionassem pelo conjunto da obra, o que não acontece.
Transformando astros do cinema em personagens reais de uma trama investigativa e misteriosa sobre a presença de comunistas na indústria cinematográfica, “Ave, César!” acaba sendo um filme pouco inspirado dos irmãos Joel e Ethan Coen mesmo que eles busquem dialogar através do humor negro que lhes é tão habitual e com um tema tão representativo em suas carreiras e que eles se sentem tão à vontade que é o de brincar de fazer cinema e ainda assim fazer bem feito, porém aqui não é o caso.
4.5/10
Um Limite Entre Nós
3.8 1,1K Assista AgoraUM LIMITE ENTRE NÓS
“Um Limite Entre Nós”, cujo título original é “Fences” que significa “cercas”, é um filme sobre conflitos. Troy Maxson (Denzel Washington) é um homem amargurado, ressentido, de maus hábitos, de modos indelicados, que trabalha como lixeiro e que entende que a vida está em dívida com ele. Frustrado por uma potencial carreira de jogador de golfe que fora interrompida abruptamente, ele vive ao lado da esposa Rose (Viola Davis), uma mulher amorosa, dedicada e que é capaz de abstrair a postura, as ofensas e até mesmo perdoar os piores defeitos do seu marido por amar o seu homem incondicionalmente. Dirigido pelo próprio Denzel Washington e ambientado na década de 50 do século XX na cidade de Pittsburgh, o filme não nega a sua natureza teatral, pois é um filme que possui uma variação mínima de cenários e conta com inúmeros e extensos monólogos e diálogos, sendo que em alguns momentos se tornam cansativos, mas que servem como um intenso exercício de eloquência e um riquíssimo estudo de personagens, além de contar com um elenco formidável e, em especial, duas performances centrais arrebatadoras.
Diante dessas características, o destaque óbvio de “Um Limite Entre Nós” são os atores Denzel Washington e Viola Davis. Eles são os donos de um filme que possui uma linguagem cinematográfica relativamente limitado por um trabalho de adaptação que se preocupou em não perder a qualidade do texto da obra teatral do dramaturgo August Wilson, também responsável pelo roteiro. Denzel Washigton atua com força e vigor para tornar Troy um homem arrogante e detestável, especialmente pelo seu jeito resmungão e seu linguajar ofensivo, inclusive direcionado para a mulher que ele tanto ama. A ferocidade com que o ator explora a verbalização do personagem é algo impressionante, pois por mais duro e cruel que ele possa parecer, ele está buscando uma forma de garantir um futuro melhor para a sua família, mesmo que seja a sua maneira. Só que essa postura agressiva esconde a hipocrisia e o egoísmo de uma vida dupla, afinal ele ressente o papel cheio de responsabilidade que precisa desempenhar dentro do seu lar e aquele que ele sufoca e esconde de todo mundo, mas que também faz parte de quem ele é de verdade. Já Viola Davis é elegante e sofisticada ao expressar uma série de emoções contraditórias que deixam evidentes os sacrifícios físicos e emocionais que Rose teve que superar para manter o casamento e um mínimo de harmonia e dignidade familiar. No papel de conciliadora, a atriz é uma força natureza, como um sopro de vento que chega para abrandar o fogo das palavras proferidas pelo companheiro de cena. E quando Rose é confrontada com uma dura verdade, Viola Davis se apresenta de maneira assombrosa, como uma tempestade furiosa carregada de tristeza e de dor, em uma sequência em ela atinge o ápice de uma maneira visceral e arrepiante.
A narrativa vai pontualmente inserindo personagens secundários que oferecem pistas sobre o pano de fundo sobre a dinâmica entre Troy e Rose, como Lyons (Russell Hornsby), o filho mais velho do casal, que se dedica à música a contragosto do pai que o considera um preguiçoso enquanto a mãe o apoia; ou Cory (Jovan Adepo), o filho mais novo, que enfrenta a resistência do pai em ser jogador de futebol americano para não sofrer o mesmo que ele no passado, apesar da mãe entender que é uma forma do filho agradá-lo; ou ainda Gabriel (Myklety Williamson), irmão deficiente mental de Troy, que revela certo distanciamento e ressentimento com ele, apesar do carinho e devoção para com ela. Até mesmo Jim (Stephen Henderson), colega de trabalho de Troy, já parece habituado com o comportamento do amigo e nem o leva mais a sério, nem mesmo quando ele procura constranger a esposa, além de entender que ela é a melhor coisa que poderia ter ocorrido na vida dele. Todos estes personagens oferecem pistas que ajudam a construir a personalidade dos personagens centrais e revelam as cercas emocionais que circundam a vida do casal à medida que conhecemos cada vez mais sobre o passado dos dois. A cerca que Troy passa o filme tentando construir, já existe entre os personagens há muito mais tempo.
Apesar do viés teatral, Denzel Washington realiza um trabalho de direção bastante sóbrio já que ele procura manter uma movimentação razoável de câmera para impedir que as sequências de diálogos se tornem cansativas, seja através de cortes rápidos de planos e contra-planos, seja através de eventuais planos-sequências ou pequenos movimentos de câmera laterais, da direita para a esquerda, ou vice-versa, ou até mesmo apostando em lentas aproximações de câmera até construir um plano fechado, ou seja, em nenhum momento Washington se acomoda e nem fica totalmente refém do roteiro durante a narrativa, inclusive quando a prepara para o seu ato final ao fazer com que Troy encare a câmera. Analisando friamente, o filme até pode não cumprir todos os requisitos técnicos da linguagem cinematográfica, mas não é uma produção negligente e o alcance dramático é legítimo e palpável, logo não há como desmerecê-lo por completo pela forma escolhida para narrar a história já que ela funciona quase que por completo. Washington também se apresenta como um ótimo diretor na condução do elenco já que os atores coadjuvantes realizam trabalhos consistentes, especialmente Myklety Williamson que constrói um personagem triste e melancólico, mas com pequenos lampejos de alegria e com muita intensidade, e o ótimo Jovan Adepo que interpreta o filho adolescente e rebelde que gradativamente vai tomando coragem para enfrentar o pai e no processo se tornando mais parecido com ele. A fotografia mergulhada em tons acinzentados realça o tom opressivo e melancólico do filme que registra algum sinal de cor apenas quando focaliza o pôr do sol ao longe assim como parece estar distante dos personagens (assim como ele vai se abrir de maneira próxima em um momento oportuno como uma espécie de redenção). O filme é concebido com tamanha inclinação para a encenação de uma peça que nas poucas tentativas que o filme faz para fugir dessa zona de conforto de maneira mais drástica, ele peca e se perde, especialmente em algumas transições de tempo ou quando permite momentos de reflexão dos personagens ao som de uma trilha sonora composta por jazz, mas que até então se apresentava de maneira discreta, quase em silêncio.
Pontuado por duas performances hipnotizantes e de tirar o fôlego, “Um Limite Entre Nós” não nega sua influência teatral, mas também não deixa de ser um filme contundente por causa e apesar disso. É um drama sufocante sobre uma vida de escolhas, decisões e decepções. É um drama pesado sobre vidas repletas de sentimentos reprimidos e palavras que são disparadas para ferir e machucar. É um drama humano sobre um homem e uma mulher que chegam ao limite da tolerância e da compreensão até alcançarem uma barreira intransponível. É um drama sobre uma família em busca da sua própria identidade. “Um Limite Entre Nós” é um drama cercado de significados e emoções à flor da pele. É um filme que não esconde suas raízes teatrais? Filmão!
9.5/10
Manchester à Beira-Mar
3.8 1,4K Assista AgoraMANCHESTER À BEIRA-MAR
Lee Chandler (Casey Affleck) é um zelador que atua em uma administradora de condomínios em Boston como uma espécie de faz-tudo e que precisa lidar diariamente com os mais diversos tipos problemas e de pessoas, nem sempre das melhores naturezas. Reservado e introspectivo, ele demonstra que na vida pessoal não é capaz de tomar as melhores escolhas, porém quando seu irmão mais velho (Kyle Chandler) morre em decorrência de um ataque cardíaco em Manchester, ele precisa retornar a sua cidade natal e atuar como um pai substituto para o seu sobrinho Patrick (Lucas Hedges), de acordo com a vontade do irmão que fora expressa em testamento, forçando-o a agir de maneira mais condizente com o seu mais novo papel de tutor, o que ainda lhe custa muito caro em função dos fantasmas de seu passado.
O roteirista e diretor Kenneth Lonaghan (do sensível “Conta Comigo”) conduz esse drama com um tom sóbrio, frio e impessoal que tem em seu DNA a personalidade de Lee já que ele oferece um trabalho sutil e discreto, mas de extremo bom gosto ao jamais deixar que o filme descambe para o melodrama gratuito. É como se estivéssemos acompanhando a jornada dos personagens ao vivo, em tempo real e nem mesmo assim, Lonaghan deixa de ser um diretor criativo e inquieto já que parece prolongar as sequências apostando em longos planos que fogem da obviedade técnica, mas que quase sempre vem acompanhado de cortes para outros planos pouco convencionais, como se quisesse captar um raro e genuíno momento dramático, como na sequência em que Lee recebe a notícia da morte do irmão pela primeira vez ou quando Patrick recebe a mesma notícia pelo tio acompanhado da solidariedade dos seus colegas de time. Nada que se compare à terrível e avassaladora sequência que serve de ponto de virada emocional para a percepção do contexto da narrativa conduzida de maneira sensível, angustiante e embalada por uma trilha sonora nervosa e cortante. Aliás, as composições de Lesley Barber só tornam a embalagem do drama ainda mais sufocante, mas sem jamais se tornar estridente ou apelativa, mesmo quando faz o uso de óperas em sequências de câmera lenta.
Com uma fotografia absurdamente linda que capta a letargia emocional e a melancolia do universo em que os personagens estão inseridos, “Manchester À Beira-Mar” possui um roteiro que capta as emoções dos personagens diante do luto de maneira bastante gradativa e que sutilmente vai dissecando dramas e traumas que estão sob a superfície aparente. Nesse ponto, os “flashbacks” envolvendo Lee e seu sobrinho, ainda quando criança, ajudam a construir uma base emocional bastante legítima quando o tio precisa encarar o jovem diante de uma notícia tão pesada, mas que revela um pequeno pedaço desse distanciamento atual. Esses “flashbacks” também ajudam a oferecer outras pistas sobre o passado de Lee, especialmente sobre a sua relação instável e delicada com sua ex-esposa Randi (Michelle Williams) e seus três filhos que no tempo presente já não fazem parte da sua rotina por motivos inicialmente obscuros. Muitas vezes inseridos de maneira abrupta, os “flashbacks” acabam servindo muito mais como lembranças de Lee que são trazidas à tona aleatoriamente do que propriamente elementos que servem propositadamente à estrutura narrativa, afinal não recebem um tratamento estético que os diferenciem do tempo presente e que revelam uma maturidade e um controle sobre as diversas camadas da narrativa que são bastante elogiáveis por parte de Kenneth Lonaghan.
Casey Affleck oferece mais um trabalho de atuação intenso e complexo já que ele parece ter nascido para esse tipo de personagem amargurado, ressentido e melancólico, logo a sua limitação técnica acaba sendo um recurso extremamente bem-vindo para o que se espera do personagem. Seja através da falta de traquejo social, a inexpressividade ou a falta de experiência em demonstrar sentimentos, como quando Lee é surpreendido por um abraço do sobrinho ou interrompe uma ligação por não saber como lidar com uma determinada notícia, Affleck tem uma presença de cena forte, sensível e admirável ainda que Lee se projete de maneira frágil emocionalmente até para dizer um simples “sim”. Lucas Hedges é um jovem ator talentoso e seguro que interpreta de maneira natural e correta um adolescente temperamental e de personalidade forte cujo traço de rebeldia esconde na verdade a sua tristeza em ter que lidar de maneira tão prematura com a morte do pai que tanto admirava e com o repentino convívio com o tio com o qual ele foi perdendo a conexão à medida que crescia. A dinâmica divertida e até ocasionalmente aborrecida entre Lee e Patrick, que acaba se estendendo além do necessário em alguns momentos, traz certa leveza à narrativa, mas que se torna importante para o restabelecimento da relação e da confiança entre os dois à medida que precisam de tratar de detalhes burocráticos e peculiares envolvendo o velório, o funeral e o testamento. Já a talentosa Michelle Williams que aparece em doses homeopáticas durante a narrativa oferece ao menos duas catarses dramáticas legítimas e contundentes, sendo a última delas em uma passagem irregular que revela uma inesperada mão pesada de Kenneth Lonaghan, apesar dos bons diálogos.
Há um ditado popular e cristão que diz que Deus não nos dá uma cruz maior do que podemos carregar. O clima melancólico é tão presente em “Manchester À Beira-Mar” que quando o filme assume um tom mais leve, a sensação de desconfiança é inevitável, como se Kenneth Lonaghan estivesse preparando uma armadilha e essa tensão presente na postura e no comportamento de Lee torna-se a nossa expressão de apreensão e expectativa. Dessa forma, nós também carregamos a cruz de Lee ao longo do filme. Essa empatia é fundamental para que o drama do fogo e do gelo da jornada de Lee seja sentido e compreendido em todas as suas complexas dimensões custe o tempo que custar.
9.5/10
American Crime Story: O Povo Contra O.J. Simpson (1ª Temporada)
4.5 582 Assista AgoraO POVO CONTRA OJ SIMPSON
Um dos crimes mais terríveis envolvendo uma celebridade do esporte e do cinema e que mais chamaram a atenção da sociedade e da mídia global foi o duplo homicídio atribuído ao ex-atleta de futebol americano OJ Simpson contra Nicole, sua ex-esposa, e Ronald, o namorado dela, na noite de 12 de junho de 1994. Astro renomado e idolatrado pelos americanos, OJ se arriscou como comentarista esportivo e ainda ingressava em sua carreira como ator de comédia, mais especificamente na franquia “Corra Que A Polícia Vem Aí“, quando ocorreram as mortes e as evidências levaram a suspeita de que ele cometera os crimes, iniciando um intenso processo de captura, acusação e consequente julgamento através de um árduo e turbulento trabalho liderado pela promotora Marcia Clark do lado da promotoria e da equipe de defesa liderada por Robert Shapiro. Sob a direção geral do experiente e irregular Ryan Murphy, de produções como “Nip/Tuck” e “American Horror History”, a série televisiva “O Povo Contra OJ Simpson” chega para dissecar os detalhes e apresentar outros personagens afetados por esse sórdido caso, destacando o instável e desequilibrado homem supostamente responsável pelo crime e a grande mulher que enfrentou o preconceito de gênero enquanto lutava para ser respeitada e fazer justiça.
Um dos aspectos mais controversos do caso envolveu a onda de crimes raciais cometidos pela polícia que tomou conta dos EUA, mais especificamente na cidade de Los Angeles, sendo que o caso de OJ Simpson foi inserido dentro desse contexto de maneira distorcida e oportunista. Apesar disso, a série empodera-se da discussão sobre a discriminação racial de maneira bastante competente, especialmente a partir da dinâmica estabelecida entre o advogado de defesa Johnnie Cochran (Courtney B. Vance) e o promotor assistente de acusação Christopher Darden (Sterling K. Brown), mas que se desenvolve ao longo da série com muitas outras vertentes, especialmente pela equipe de defesa de OJ interessada nessa repercussão, inclusive chamando a atenção para o comportamento e a ação dos policiais de LA contra a população negra. Enquanto o veterano Vance legitima a sua performance através da eloquência de seus discursos entusiasmados que mesclam as principais qualidades e defeitos de um advogado experiente com a de um pastor inescrupuloso (e vice-versa), Brown se mostra um dos atores mais completos, versáteis e interessantes da atualidade, vide o seu sensível trabalho nesta série e também em “This Is Us”.
A discussão sobre a sanidade mental de OJ que chegou a ser sugerida a favor dele quando decidiu não se entregar espontaneamente para a polícia e iniciou uma fuga cinematográfica que acabou sendo transmitida ao vivo por todas as emissoras do país sob a ameaça de uma arma apontada por ele contra sua própria cabeça acabou ficando até em segundo plano quando a “carta da raça” foi lançada no jogo jurídico. Outra grande sacada do roteiro ao apresentar esse vasto e amplo painel é que muitas informações e pistas são inseridas inicialmente, porém são contextualizadas à medida que o julgamento avança, normalmente em momentos cruciais, revelando um compromisso honesto dos roteiristas com o espectador que em nenhum momento é enganado por mais surpreendentes que sejam certas revelações e reviravoltas (o inverso também ocorre, mas em versões mais homeopáticas). Em contrapartida, o roteiro acerta quando oferece um relativo espaço para os membros do juri, mostrando-os como peças do tabuleiro do jogo orquestrado pelos advogados de defesa e pela promotoria, mas quando foca em seus dilemas pessoais, em seus momentos de crise e até mesmo no posicionamento que cada um tem com relação ao caso a abordagem torna-se mais superficial sem jamais corresponder totalmente à complexidade envolvida pelo papel dos jurados.
Ao longo da série, o diretor Ryan Murphy parece se sentir à vontade para arriscar com diversas soluções estéticas para criar uma dinâmica visual que seja atraente, sendo que em quase todos os episódios, inclusive aqueles que não são dirigidos diretamente por ele, há uma predileção por rondar os personagens com giros enquanto eles travam algum tipo de discussão entre si ou na utilização da câmera lenta para alavancar expectativas dramáticas. O trabalho de direção de arte é muito eficaz ao retratar o excesso de formalismo nos ambientes do tribunal e da promotoria, reforçando que se trata de uma produção de época através de pequenos detalhes, como nos aparelhos telefônicos e nos poucos eletrônicos que existiam na época, mas não deixa de explorar certa extravagância no quartel general da equipe de defesa, mas principalmente na mansão de OJ que ostenta seus prêmios, troféus e até mesmo uma estátua em tamanho real no jardim. Há ao longo da série algumas composições envolvendo os núcleos da defesa e da acusação que são assertivas, principalmente quando discussões entre os dois lados do caso são intercaladas para evidenciar a estratégia que será empregada em cada um deles com uma boa dinâmica estabelecida pela montagem. O que não se apaga em nenhum momento, no entanto, nem mesmo nos melhores momentos da equipe de defesa, como no interrogatório dos policiais ou no lance sobre as luvas, é a existência de um tom cômico e às vezes até jocoso ao ilustrar os movimentos e os personagens da equipe de defesa de OJ, apresentando as situações carregadas de um humor involuntário ou ocasional.
O trabalho da promotoria, por exemplo, é apresentado de maneira séria, competente e dotado de uma postura dramática e emocional reconhecíveis, embora não esteja isento de erros de julgamento, equívocos humanos e falhas processuais, afinal Márcia e Christopher são apresentados como advogados competentes, porém imperfeitos, longe de representarem o impecável estereótipo hollywoodiano. Já a defesa de OJ não deixa de ser apresentada também como uma equipe profissional formada por até cinco advogados de primeira linha, considerado como o “Time dos Sonhos” pela imprensa, mas parece que em alguns momentos o deboche e o sarcasmo tomam conta desse núcleo, quase sempre proposital, especialmente pela maneira como as suas manobras são ilustradas, além das já citadas, mas também na montagem e remontagem do júri, na redecoração da mansão de OJ e até mesmo pelos atores escolhidos para defendê-los. É como se a própria série não quisesse que o espectador os levasse a sério, uma postura que afeta a imparcialidade e enfraquece um pouco o apelo da série ainda que a narrativa permita que a defesa celebre pequenas vitórias em escala exponencial ao ponto de inflamar os americanos e a opinião pública com relação a fatos secundários e de importância relativa dentro do caso, mas que no final das contas acabam sendo cruciais e determinantes, especialmente para os jurados responsáveis por decidir o caso.
Cuba Godding Jr. realiza um bom trabalho de composição ao usar o seu limitado repertório de atuação para ilustrar a fragilidade emocional de um homem frio, calculista, fraco, perturbado, instável e covarde que se mostra imaturo e incapaz de lidar de maneira responsável e apropriada com a gravidade absurda do ato criminoso e violento em que está inserido. Para o bem ou para o mal, o OJ de Cuba Godding Jr. é dissimulado e um péssimo ator. A ótima Sarah Paulson já interpreta com vigor e delicadeza uma figura emocionalmente oposta já que é mãe de dois filhos, enfrentando um divórcio litigioso e que se mostra uma mulher firme, justa, corajosa, destemida e determinada, afinal ela acredita incondicionalmente que condenar OJ é a melhor forma de fazer justiça a favor das vítimas e suas famílias, inclusive a de Ronald que em meio à discussão acaba se tornando uma nota de rodapé em função da repercussão midiática sobre os personagens mais famosos envolvidos no crime. E ainda assim ela enfrenta com sensibilidade e coragem as artimanhas secundárias utilizadas para desestabilizá-la, inclusive as ações da imprensa sensacionalista e as impressões causadas pelo seu cabelo ou pelas roupas que usa, mas sem deixar de ser uma mulher forte ainda que ocasionalmente vulnerável.
Em uma atuação dramática relativamente convincente, David Scwimmer interpreta Robert Kardashian, amigo íntimo há mais de 20 anos de OJ, sendo apresentado como uma das pessoas que mais se abalaram com o envolvimento de alguém tão próximo a sua família em um crime tão bárbaro, mas que jamais deixou de apoiar o amigo, inclusive trabalhando ao lado da equipe de advogados da defesa, mesmo nos seus momentos de maior dúvida e que vão se tornando cada vez mais críticos, o que o torna uma figura humana bastante reconhecível aos olhos do espectador. Já John Travolta, que também é produtor da série, surge com um visual esticado e bizarro, atuando de maneira afetada e caricata na pele do vaidoso e orgulhoso Robert Shapiro, advogado de defesa de OJ, que até tem lá seu nível de excentricidade atraente e alguns bons momentos, mas o resultado é bastante irregular, sendo que a presença de Travolta acaba sendo mais distrativa do que útil. Nathan Lane se mostra muito mais à vontade na pele do advogado F. Lee Bailey que tenta ser uma espécie de conciliador entre os egos da equipe de defesa, embora ele mesmo também não veja a hora de ter o seu momento para aparecer e brilhar. Kenneth Choi é uma gratíssima surpresa como o juiz Lance Ito, afinal o seu personagem tem uma postura bastante racional e protocolar diante do que está acontecendo ao seu redor, mas ainda assim não deixa de mostrar bom senso e outras virtudes que revelam um pouco da sua conduta humana.
Em um universo onde mentiras e teorias conspiratórias podem ter o mesmo peso que provas e circunstâncias incontestáveis e que a vida pessoal de advogados, promotores, juízes e jurados pode se tornar uma importante parte da narrativa mesmo a contragosto, “O Povo Contra OJ Simpson” é uma série contundente sobre a manipulação da justiça, a influência da imprensa e a histeria coletiva em uma narrativa sobre manobras e distorções que parece se interessar apenas em reproduzir a história que mais convém para o discutível gosto da opinião pública em que a verdade e a justiça podem se tornar meros detalhes.
9.0/10