Dividido em três partes, a terceira é a que me pegou de jeito. Gosto das duas primeiras, apesar da estranheza do que acontece ali, mas no terceiro e último capítulo "Monstros" tudo fica claro, e a sensação estranha das duas primeiras partes (dedicadas a cada um dos protagonistas) se justifica. Um dramão a la Blue Valentine, no sentido de que o amor é bem menos encantador na prática. Será que com o passar dos anos ele dá espaço à amizade e compreensão para depois nos transformar em monstros?
Graficamente falando eu tenho algumas ressalvas com o filme, acho tudo muito sem vida, Olaf é o que mais se destaca na brincadeira. Enquanto história, vale por fazer de Elsa a protagonista que foge do hall de princesas da Disney que são oferecidas em casamento, ou querem se casar ou ainda governar todo um reino (apesar de Anna servir como bode expiatório para este papel). Em suma, é uma animação redondinha, mas que não impressiona muito.
Cinquenta anos após a chegada do homem à lua é impressionante a qualidade das imagens e gravações contidas neste Apollo 11. O documentário de Todd Douglas Miller funciona mais como o registro imagético daquele pequeno passo para um homem, mas um grande salto para a humanidade do que uma história a fim de explicar os meandros da "conquista da lua". Não há narrações, entrevistas ou protagonistas, "apenas" a história acontecendo à frente dos nossos olhos. E a magia do cinema ajuda a torná-la ainda mais grandiosa.
A rebeldia e a insensatez do documentário de Candé Salles corroboram o título "garota" dado a Marina Lima. Ora, por que o diretor abdica de se aprofundar em boa parte da discografia da cantora, em seus demônios internos, em explorar sua sexualidade e se apoia em um discurso constantemente elogioso à cantora, algumas breves apresentações e a guinada na carreira após se mudar do Rio para São Paulo?
Talvez este não seja o trabalho mais propício para dissecar a personalidade artística de Marina Lima, mas aos poucos vai se tornando uma experiência sadia, e até errática, que nos transporta ao íntimo de uma mulher simples e nunca estagnada, que não se acomodou com a carreira já consolidada no Rio de Janeiro e se mudou para São Paulo a fim de conhecer mais a si mesma e ir em busca de mais desafios e conquistas a tornou o ícone de toda uma geração.
Voltando ao errático, talvez o documentário se perca em alguns momentos pela falta de foco na cantora, se estendendo demais ao mostrar outras pessoas na vida de Marina, como o irmão Antônio Cícero sendo condecorado pela Academia Brasileira de Letras, ou em momentos banais como a importância dada a um corte de cabelo.
Em suma, o documentário traz uma ideia de um papo descontraído sobre coisas passageiras da vida que acabam nos mudando - e nos moldando - e percebemos então que não descobrimos nem metade do que queríamos sobre Marina, curioso, pois os 71 minutos reservam bons e divertidos momentos mesmo assim. É como diz Marina: "As pessoas sabiam quem eu era, mas não sabiam quem eu queria ser agora." Esta não é uma biografia convencional, mas uma obra bastante despojada que se distancia de regras e se aproxima da vitalidade de Marina Lima.
É curioso ver Xavier Dolan, um diretor que sempre deixou sua marca bem explícita em seus filmes (seja pela trilha sonora composta de músicas tocadas do começo ao fim, as câmeras lentas e as cores vibrantes), realizando um trabalho bem mais sutil neste Matthias & Maxime, embora aqui ainda exista alguns de seus vícios, como os cortes bruscos e os closes em excesso, mas, assim como seus personagens, Dolan parece um rebelde se redescobrindo e voltando aos bons tempos, ao mesmo tempo que se segura para não se entregar. Não que o longa tenha uma direção sufocada, mas a impressão é que Dolan utilizou outros artifícios para chamar atenção para si (vide a grande mancha em seu rosto).
Num amálgama de personagens que têm uma relação bem próxima, Dolan situa Matthias (Gabriel D'Almeida Freitas) e Maxime (ele próprio) ao centro da história, a jovem irmã de um de seus amigos precisa de dois homens para gravar um curta estudantil que consiste em um beijo entre eles. Ambos perdem uma aposta e aceitam fazer o filme (um corte brusco não nos torna cúmplices do momento). A partir de tal beijo, ambos passam a duvidar e questionar suas convicções, um beijo entre ambos no passado é lembrado pelos amigos, o ciclo social de Matthias entra em parafuso por seu comportamento arredio por questionar sua própria masculinidade, a ida de Maxime para a Austrália pode ser a despedida de um amor que ele nem sabia que existia. Matthias & Maxime se assume como um romance de amores imperfeitos e desejos reprimidos.
O melhor de Matthias & Maxime é que Dolan não usa a causa LGBT como fator principal, não há julgamentos aos protagonistas, pelo contrário, o beijo entre os amigos é lembrado pelos demais em tom de brincadeira, como um desejo fugaz, assim, os encontros, as festas e as interações entre eles remetem a episódios de uma sitcom, todos atores estão tão à vontade que parece que os conhecemos há tempos, e o "elefante na sala" é perceptível quando Matthias e Maxime estão no mesmo ambiente trocando olhares ou se atacando em um jogo de mímica.
Entre raiva, provocações e desejo, Matthias & Maxime é a história de um beijo que mudou vidas, nem para melhor, nem para pior, apenas marcou por escolha dos próprios personagens, assim como as pequenas coisas que marcam as vidas de qualquer um, somos nós mesmos que transformamos estas pequenas coisas em tempestades em nossas cabeças. Um Dolan maduro que amadurece seus personagens num trabalho bem mais contido do que se esperava.
Johannes Roberts é uma apaixonado por histórias de terror. Apesar de ter ficado mais conhecido no mainstream por dirigir a sequência de Os Estranhos, em 2018, e o primeiro Medo Profundo, em 2017, desde 2001 ele dirige filmes B de terror, nada que seja muito relevante, mas que demonstram que seu lado experimental é algo a ser explorado por algum estúdio que lhe dê liberdade o suficiente para brincar. Quem sabe no reboot de Residente Evil?
Se em Os Estranhos - Caçada Noturna e Medo Profundo, Roberts ainda não havia mostrado material o suficiente para que pudéssemos ficar de olho nele, neste Medo Profundo: O Segundo Ataque é perceptível que há uma maturidade adquirida. No longa de 2017, Roberts empregou um tom ameno demais em um filme que necessitava da tensão inerente aos filmes de tubarão e, apesar da má recepção da crítica, o filme foi bem nas bilheterias.
Com isso, não é de se espantar que o filme tenha ganhado esta sequência, e aqui Roberts muda completamente o tom em comparação ao do primeiro filme, acaba que, na verdade, O Segundo Ataque não tem ligação alguma com o filme de 2017, a não ser pelo fato de ambos serem protagonizados por duas irmãs e suas histórias se passarem no México.
Em Medo Profundo: O Segundo Ataque, Mia (Sophie Nélisse, de A Menina que Roubava Livros) passa por um momento traumático que muitas adolescentes devem se identificar, além de sofrer bullying na escola, ela tem que lidar com a mudança para o México e o novo casamento de seu pai, o mergulhador Grant (John Corbett), além da relação nada afetuosa com a meia-irmã Sasha (Corinne Foxx, filha do ator Jamie Foxx, estreando nos cinemas), filha de sua madrasta Jennifer (Nia Long).
Apesar de estudarem juntas e conviverem aparentemente bem com seus pais, a relação entre ambas é complicada, algo que o roteiro da dupla Ernest Riera e Johannes Roberts deixa a desejar por não explorar até que ponto vai o atrito entre as irmãs, afinal, o que interessa à dupla roteirista é que a história siga logo para os túneis submersos onde um tubarão branco está à espera das jovens. Para melhorar essa relação, Grant e Jennifer têm a ideia de mandar as duas juntas a um passeio para que estreitem laços.
Em busca de aventura - e para fugir das valentonas da escola que também iriam ao passeio - Sasha e Mia se juntam a Alexa (Brianne Tju) e Nicole (Sistine Rose Stallone, filha de Sylvester Stallone, também estreando nos cinemas) para desbravar uma caverna submersa que é um labirinto com poucos bolsões de ar, o que faz com que logo nos venha à cabeça: "ótimo, mais jovens para serem mortas em um cenário que possibilita mais oportunidades", já que no longa anterior, Mandy Moore e Claire Holt tinham que interagir entre si por 90 minutos enjauladas no fundo do mar.
Se a primeira parte do longa é bem lenta - quando somos apresentados às quatro jovens e conhecemos seus instintos de aventureiras inconsequentes - a partir da metade, o diretor Johannes Roberts recorre aos típicos clichês do gênero para nos causar tensão - personagens perdidas, o oxigênio no fim, escolhas equivocadas e uma ameaça sempre invisível que surge do nada para dar um bom susto - e tudo é bem executado, na média do gênero, ou pelo menos é o que o espectador acostumado com filmes do tipo espera, até porque, francamente, o subgênero de filmes de tubarões não entregou nada relevante desde que Steven Spielberg dirigiu Tubarão em 1975, tanto que um dos poucos filmes que teve destaque neste intervalo é o eficiente Águas Rasas (2016), de Jaume Collet-Serra.
Com duas irmãs que não se entendem na superfície e que devem se unir para sobreviver aos intensos ataques de um tubarão cego que habita aquele labirinto subaquático e as atitudes típicas de personagens de filme de terror que irritam ao espectador mais ansioso - e que divertem outros - Medo Profundo: O Segundo Ataque entrega o que se espera dele: diversão, tensão, alguns bons jumpscares e muita trasheira ao final que deixaria Alexandre Aja orgulhoso.
Fazia tempo que as mulheres não ganhavam um exemplar digno feito por elas e para elas. Rainhas do Crime, Oito Mulheres e um Segredo e As Viúvas ficam bem atrás de As Golpistas.
O filme de Lorene Scafaria é bastante divertido, colorido, agitado e sexy, ainda que não fuja de alguns clichês do gênero. É como se as garotas de Showgirls se vingassem dos caras de O Lobo de Wall Street.
J-Lo está ótima (em todos os sentidos) e o restante do elenco idem, destaque para Constance Wu e seu arco dramático e Cardi B, que funciona bem como alívio cômico nos breves momentos que tem para fazer graça.
Ter uma direção feminina dá certo alívio para assistirmos as atrizes em danças e vestes hiper sensuais, elas nunca parecem fetichizadas embora sempre surjam deslumbrantes em cena.
Além disso, há boas investidas no drama de cada uma delas, por mais simples que este seja, se para os homens elas são apenas máquinas de dar prazer, para a diretora elas são mulheres comuns que, humanizadas, nunca parecem vigaristas que agem em prol de uma causa.
A história não dá muitas voltas, embora em alguns momentos seja perceptível que não há muito mais a ser contado, é aí que o filme se segura no carisma das atrizes e nos proporciona bons momentos de sensualidade e diversão.
2019 entra para a história como um dos anos mais importantes para o cinema brasileiro, ao menos de sua história mais recente. A gama de produções nacionais e internacionais (graças ao produtor Rodrigo Teixeira) que tem chegado aos cinemas e sido premiada em festivais estrangeiros mostram como, mesmo com a onda de censura e os cortes no orçamento que a cultura tem sofrido, a arte resiste e 2019 tem se tornado simbólico nesta luta. E A Vida Invisível, ao lado de Bacurau, Pacarrete, Greta, Bixa Travesty e Democracia em Vertigem, são alguns destes pilares.
Com diversos prêmios internacionais, entre eles o Grand Prix da Mostra Un Certain Regard, no Festival de Cannes – inédito na história do cinema brasileiro –, o sétimo longa-metragem da carreira do diretor cearense Karim Aïnouz é também o escolhido pelo Brasil para concorrer a uma vaga na categoria Melhor Filme Internacional no Oscar® 2020, além de ter sido indicado à categoria de Filme Internacional no Independent Spirit Awards, um dos festivais de cinema independente de maior prestígio no mundo.
A Vida Invisível merece o destaque que vem recebendo justamente por se tratar de um tema que cai como luva no atual cenário artístico e político do mundo, onde o feminismo é discutido como nunca. Somos levados de volta ao Rio de Janeiro dos anos 50 para conhecer a história de duas irmãs em uma época na qual as mulheres não podiam alçar voos maiores que os dos homens. As irmãs Guida (Julia Stockler) e Eurídice (Carol Duarte) são como duas faces da mesma moeda – apaixonadas, cúmplices, inseparáveis. Eurídice, a mais nova, é uma pianista prodígio, enquanto Guida, romântica e cheia de vida, sonha em se casar com um príncipe encantado e ter uma família. Um dia, com 18 anos, Guida foge de casa com o namorado. Ao retornar grávida, seis meses depois e sozinha, o pai, um português conservador, a expulsa de casa de maneira cruel. Guida e Eurídice são separadas e passam suas vidas tentando se reencontrar, como se somente juntas fossem capazes de seguir em frente.
Talvez o maior fator de encantamento de A Vida Invisível nem seja Guida ou Eurídice, tão distintas mas tão unidas, ou aquele Rio de Janeiro boêmio dos anos 50, mas sim a bela fotografia de Hélène Louvart, impossível de passar despercebida. Ao terceiro ato há uma cena em específico na qual a personagem de Eurídice Gusmão (vivida então por Fernanda Montenegro) olha para o horizonte através de janela e, num truque muito inteligente, é levada de volta a uma época da qual ela provavelmente esperava outro destino.
E é justamente por esta sutileza que A Vida Invisível é guiado. Aïnouz sempre gostou de sustentar suas histórias no visual estético - vide Madame Satã, O Céu de Suely e Praia do Futuro - aqui não é diferente. As atuações são de Carol Duarte e Julia Stockler são contindas e funcionam na medida para que o filme não se transforme em um melodrama, o comediante Gregório Duvivier, se mal dirigido, poderia entregar algo fora de tom, mas serve bem ao que lhe é proposto. E Fernanda Montenegro dispensa comentários. A ternura de seus olhares, a suavidade de seus gestos, a idade avançada que lhe dá uma aparência frágil - ainda mais por sabermos de tudo que já passara em vida - entram em conflito com sua presença que é grandiosa por tudo o que a atriz representa para o nosso cinema, e vê-la lendo cartas novamente, 20 anos depois de sua indicação ao Oscar, é arrebatador.
Baseado no livro A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, da escritora pernambucana Martha Batalha, o longa é muito mais que uma simples adaptação. É um manifesto contra o machismo, o patriarcado, as vidas de mulheres que se tornaram, e ainda se tornam, invisíveis.
Creio que o maior problema deste indie norte-americano nem seja colocar o hétero-cis-branco no protagonismo - e entendo quem problematize isso -, o que mais me incomoda é como a narrativa é regida por essa heteronormatividade e não se aprofunda com a devida atenção nos personagens da cena trans, todos ali vivem às margens da sociedade, de maneira quase refugiada, apenas servindo para expor seus corpos e suas danças - que até são bem interessantes -, mas isso acaba dando superficialidade a eles, enquanto o protagonista vivido por Fionn Whitehead é mais desenvolvido.
Entre frustrações e coisas boas - como a escalação da atriz trans Leyna Bloom - Port Authority revela as boas intenções da diretora Danielle Lessovitz, mas delas o inferno está cheio, e alguns pecados aqui, com certeza, não serão perdoados pelos LGBTQIA+.
Conhecido por seus filmes-catástrofe, Rolland Emmerich aposta em Midway - Batalha em Alto Mar na sua volta ao gênero, com muitos efeitos visuais, cenas grandiosas de batalhas aéreas e muitos diálogos, inclusive do lado japonês.
Emmerich sai de um hiato de 3 anos após sua última investida nos épicos de ação. Em 2016, o diretor dirigiu Independence Day: O Ressurgimento, porém, a péssima bilheteria e a má recepção do público e da crítica provaram que a nostalgia do público com o filme dos anos 90 de nada adiantou. Seria o fim do diretor de vários pipocões norte-americanos dos anos 90 e início dos anos 2000 como O Patriota, O Dia Depois de Amanhã e Godzilla?
Agora, Emmerich conta uma história que já havia ganhado um filme lá nos anos 70 e que enche os olhos do norte-americano que escolheu Donald Trump como presidente, a batalha do Pacífico foi uma reação dos Estados Unidos da América ao ataque japonês a Pearl Harbor, feito que mudou os rumos da 2ª Guerra Mundial. Como disse o Almirante Yamamoto: "despertamos um gigante adormecido." Já que até aquele ponto os Estados Unidos permaneciam neutros.
Com um elenco repleto de caras conhecidas, Emmerich já mostra a que veio desde o início: pintar heróis. E nada como atores conhecidos do público para preencher as mais de 2 horas de filme com diálogos entonados por vozes cheias de sotaque e gargantas raspando. O estereótipo do herói de guerra de atos milagrosos e discursos prontos ganha diversos contornos neste Midway. A exemplo do personagem de Nick Jonas, que entra em cena apenas para salvar o dia e ser esquecido logo em seguida.
Patrick Wilson, Luke Evans, Aaron Eckhart, Woody Harrelson e Dennis Quaid são outros heróis de guerra de patente alta que durante o filme são pouco aproveitados, eles são os típicos personagens inseridos na trama para esbravejar ordens e mostrar ao público quem comandava as embarcações e estratégias - mas, ao final, é preciso ajuda dos infográficos costumeiros do gênero para conhecermos seus feitos. As mulheres tampouco servem para algo e Emmerich se mostra pouco interessado nelas, apenas as utilizando para expor a virilidade dos soldados da época.
Com tantos personagens mal aproveitados - o bitânico (!) Ed Skrein é o único com alguma relevância pelo roteiro de Wes Tooke - as mais de 2 horas não se justificam. Há uma tentativa enfadonha de mostrar o lado japonês da história - justificando o dinheiro deles na produção - e, embora haja alguma hombridade naqueles homens, o roteiro se limita a mostrá-los como homens que se sacrificaram contra um inimigo impossível de ser derrotado. Um projeto nos moldes do que Clint Eastwood fizera com Cartas de Iwo Jima e A Conquista da Honra, ou até mesmo uma série para algum serviço de streaming - já que está na moda -, poderia dar conta de tantos personagens importantes historicamente.
Acaba que o filme só vale mesmo pelas cenas de ação, as batalhas aéreas têm bons efeitos em sua maioria, apesar do CGI incomodar bastante no início, ao menos é possível compreendermos as estratégias de ambos os lados, assim como as preocupações dos pilotos em momentos de pura tensão quando expostos ao fogo inimigo, sem saberem se iriam voltar com vida após decolarem dos porta-aviões.
Em suma, Midway - Batalha em Alto Mar tem tudo o que os norte-americanos - ou os entusiastas de filmes de guerra - gostam de ver: batalhas aéreas com muitas explosões e efeitos especiais, americanos salvando o mundo da ameaça japonesa e heróis sendo glorificados com muito ufanismo. Para quem já fez um dos melhores filmes-catástrofe é pouco, mas Emmerich ainda parece disposto a queimar muitos cartuchos.
O que Céline Sciamma realiza em seu novo longa - vencedor dos prêmios de melhor roteiro e da Queer Palm no último Festival de Cannes - vai muito além de ser apenas uma história sobre duas jovens distintas que se envolvem numa paixão efervescente, ela lança seu olhar feminino para uma época em que era quase proibido as mulheres rirem demais - "ainda não a vi sorrindo" -, se envolverem com as artes - Marianne expõe seus quadros assinando o nome do pai - e até mesmo decidirem seu próprio destino: Héloïse é retirada do convento após a morte da irmã e oferecida em casamento pela mãe a um pretendente italiano.
Natural encontrar semelhanças com Me Chame Pelo Seu Nome pela temática LGBT, mas Retrato... é uma obra autêntica por si só, desde sua feminilidade a todo seu apuro estético. Fotografia e direção de arte são capazes de tornar diversas cenas em quadros em movimento, as cores claras e tons ensolarados dão vida àquela ilha isolada e à casa fechada onde uma caminhada à beira da praia é o único momento de liberdade e fuga para Héloïse.
Neste ambiente hermético de sentimentos incubados, poses congeladas, toques sutis, desejos em ebulição e olhares sufocantes o amor desperta como uma fagulha no palheiro. E Sciamma não tem pressa em entregar suas protagonistas ao amor, ela as cerca de arte por todos os cantos, seja na literatura: de um despretensioso "você trouxe um livro?" à tragédia do mito grego de Eurídice e Orfeu, na música em forma de concerto de Vivaldi ao canto libertador das mulheres à beira da fogueira e, obviamente, na pintura. Há muitas formas de expressar e incendiar o amor.
Produzido, dirigido, roteirizado, editado, fotografado, customizado por mulheres e com um elenco também todo dominado por elas - é possível contar os homens nos dedos, aliás, eles nem importam aqui - Retrato de Uma Jovem em Chamas é um dos exemplares mais femininos dos últimos anos. É feito por elas e com toda a sensibilidade feminina que se junta às artes para fazer desta obra algo muito especial. Tal como a arte, o amor transcende e se eterniza. Amar é arte.
Um Dia de Chuva em Nova York se transformou em uma tempestade na cabeça de Woody Allen. Isso porque após as acusações de abuso sexual de sua filha adotiva Dylan Farrow contra ele, a Amazon, responsável pela distribuição do longa, desistiu e "cancelou" o lançamento do longa - aliás, o boca a boca de crítica e público também têm trabalhado como publicidade negativa, eis aqui mais uma. Até mesmo Timothée Chamalet embarcou nessa espécie de boicote, doando todo seu salário para instituições, incluindo a Time's Up - o que pode ser entendido como "desculpem por ter trabalho com ele".
Na história, Chalamet é Gatsby, um apaixonado por Nova York que decide apresentar a cidade à namorada Ashleigh (Elle Fanning), que estará por lá a convite do cineasta Roland Pollard (Liev Schreiber), porém, a cidade tem seu próprio cronograma e ambos se desencontram. A aspirante a jornalista se vê então cercada de três homens: o roteirista Ted (Jude Law), um ator renomado (Diego Luna), e o cineasta Pollard que lhe dá um furo de reportagem que pode impulsionar sua carreira jornalística, enquanto Gatsby se depara com a gravação de um filme na qual encontra Chan (Selena Gomez), a irmã mais nova de sua ex-namorada, e um refinado jantar de família do qual ele quer fugir. Entre idas e vindas, encontros e desencontros, ambos farão suas próprias escolhas numa cidade que não pára.
É o típico filme de Woody Allen, o rico branco de alta classe (o nome Gatsby não é a toa) perambulando por uma cidade que tem vida própria em meio a seus pensamentos ranzinzas e encontros fortuitos com pessoas variadas - há um quê de Meia-Noite em Paris nessas andanças e encontros imprevisíveis. Nenhuma das personagens diz algo sobre si (talvez apenas Selena Gomez, que consegue fazer muito com o pouco tempo de tela que tem), todas as demais mulheres orbitam ao redor do mais novo alter-ego de Allen, vivido pessimamente por Chalamet, nada à vontade ao repetir os trejeitos do diretor. Fanning está bem, ainda que numa personagem péssima de uma efusividade e empolgação que lhe tiram qualquer traço de personalidade. Jude Law, Diego Luna e Rebecca Hall reservam bons e breves momentos, mas logo são atropelados por um roteiro que não se interessa muito por eles.
Se você gosta - muito - do estilo do diretor pode se deliciar, o filme diz logo de cara de quem é (os créditos iniciais e a trilha não se deixam enganar), mas é justamente aí que ele se acomoda, Allen parece parado no tempo, sem interesse algum em mudar suas convenções, personas, e principalmente o tratamento dado às mulheres; nem mesmo a chuva de Nova York é capaz de lavar sua alma. E se o próprio diretor não é capaz de olhar para seus demônios internos e se expressar com maior responsabilidade, porque cabe ao espectador fazer isso? Um Dia de Chuva em Nova York é mais uma hora e meia de Allen sendo o que sempre foi, para o bem ou para o mal.
A Pixar revolucionou o campo da animação com seus projetos que beiram à perfeição e que praticamente dão vida a seus personagens, com o estúdio - e com as concorrentes -, a animação 2D não teve vez, ficando associada à nostalgia dos clássicos, por isso, vermos a Netflix apostando neste formato já em sua primeira animação, após tanto inchar seu catálogo com produções genéricas, funciona como uma lembrança aos clássicos.
E qual a melhor temática para despertar este sentimento saudosista senão a natalina? Klaus conta a história de Jesper (voz de Rodrigo Santoro na versão dublada), um jovem e rebelde carteiro enviado a Smeerensburg, uma pequena vila ao norte do ártico, para uma tarefa ingrata: trabalhar no serviço postal local em meio a dois clãs que vivem em pé de guerra: os Ellingboe e os Krum. Lá, Jesper conhece Alva (Fernanda Vasconcellos), uma professora que trabalha como peixeira - já que as crianças abandonaram a escola - e Klaus (Daniel Boaventura), um carpinteiro que vive isolado em uma montanha em meio aos brinquedos que outrora fabricava.
De maneira bastante original, Klaus assume uma narrativa revisionista no sentido de contar a origem da lenda do Papai Noel por outro ponto de vista, como se testemunhássemos o nascimento de hábitos e tradições natalinas que permanecem intrínsecas a algumas culturas até hoje. No centro disso está Jesper, o protagonista enviado para este local hostil e que, com sua jovialidade e benevolência, acaba despertando bondade e inspiração nas crianças, enquanto seus pais parecem muito mais dispostos em sustentar antigas rivalidades.
Talvez o longa não sirva muito ao público mais infantil (abaixo dos 7 anos), já que, diferente da recente animação O Grinch, a narrativa não é tão lúdica, é preciso certo discernimento para perceber coisas como as reações violentas dos moradores da vila, avessos às novidades e extremistas com o ensino às crianças, mas os pequenos podem se afeiçoar à ininteligível garotinha filipina que passa a ser "compreendida" por Jesper quando este a trata com maior empatia. Resumindo bem a mensagem do filme: o espírito natalino desperta bons sentimentos.
O fim de ano parece promissor para a Netflix - que ainda estreia O Irlandês (27/11), História de Um Casamento (06/12) e Dois Papas (20/12) - e no ritmo do Natal, Klaus entra para este seleto grupo de produções que, enfim, provam que o serviço de streaming pode chegar com força na temporada de premiações. Não seria surpresa vermos Klaus indicado nas categorias de animações, já que traz uma bela mensagem valorizando amizades, aprendizado e tradições natalinas.
Culturalmente falando o ano não tem sido fácil para o Brasil, o Ministério da Cultura foi dissolvido e transformado em Secretaria, ficando sob a tutela do Ministério da Cidadania e recentemente repassado ao Ministério do Turismo, o Festival Indie foi cancelado, o Festival do Rio adiado e ameaçado, por isso, é de se orgulhar que nosso cinema tenha produzido tantas histórias de resistência e tenha feito sucesso internacional - enquanto nossos poderosos não lhe dão o devido valor.
Premiado com o Bright Future Award no Festival Internacional de Roterdã, Melhor Direção no BAFICI 2018, Menção Honrosa no Lima Independiente Film Festival 2018, Prêmio da Crítica no Festival de Toulouse, e o Prêmio Especial do Júri, Melhor Ator e Melhor Montagem no Festival do Rio 2018, Azougue Nazaré é resistência enquanto produção e enquanto história.
Difícil não se lembrar de Bacurau, cidade interiorana tão pequena e acolhedora quanto a Nazaré da Mata, do interior de Pernambuco, enquanto a Bacurau do longa de Kléber Mendonça Filho (produtor associado de Azougue Nazaré) resiste aos forasteiros, a cidade do longa de Tiago Melo resiste à intolerância religiosa que surge na figura de diversos personagens que reagem de formas diferentes ao Maracatu rural: O pastor (Mestre Barachinha) que trata a manifestação cultural como coisa do demônio, a esposa do protagonista Catita (Valmir do Côco) que proíbe o marido de se apresentar nas danças e os ataques de vizinhos ao pai de santo local.
Enquanto produto cultural Azougue Nazaré tem grande relevância, Tiago Melo arquiteta bem a cidade e seus moradores, mostrando o dia a dia de cada um, suas trivialidades e hábitos, rusgas e traições, cantorias e rimas e o próprio Maracatu rural, se permitindo até inserir elementos de um cinema fantástico na realidade quase documental que vinha propondo. A mistura é interessante a princípio, dando um ar de mistério ao longa - assim como o disco-voador em Bacurau - mas Melo não desenvolve bem quase nenhum dos conflitos lançados na narrativa, se eles não ficam pelo caminho são resolvidos com certo descuidado. Para sua sorte, os momentos do Maracatu, enquanto trilha, enquanto manifestação e enquanto resistência elevam a narrativa, fazendo deste longa um bom exemplo de como nossa cultura é rica e merece todo tipo de manifestação para que sigamos resistindo.
Qualquer pessoa que acompanha o automobilismo - ou até mesmo a Fórmula 1, sua categoria mais popular - sabe que o circo que se forma ao redor de pilotos, marcas e equipes é cheio de glamour, figurões, histórias, competitividade e também muito trabalho.
Tendo tudo isso em mente, James Mangold faz de Ford vs Ferrari uma história que vai muito além do embate que está no título. Aliás, tal disputa acaba se tornando combustível para disputas internas entre o herdeiro de um império automotivo, Henry Ford II (Tracy Letts) - querendo superar a rival Ferrari -, e um piloto difícil de lidar, vivido com energia por um sempre competente Christian Bale e seu algoz Leo Beebe (Josh Lucas), o diretor do projeto automobilístico da Ford que é contra sua presença no volante da equipe.
Quando a Ford surge em risco de falência, nos idos dos anos 60, o então presidente do grupo, Henry Ford II decide convocar uma reunião de emergência. "The Deuce" como também era conhecido, querendo elevar a marca ao patamar da italiana Ferrari - uma fabricante que, ao contrário da Ford e seu sistema de produção, fabricava seus carros quase que por encomenda - confia no designer automotivo Carroll Shelby (Matt Damon) quando este lhe propõe montar um carro capaz de competir nas 24 horas de Le Mans, uma das provas mais difíceis do mundo, e bater a Ferrari - vencedora de 5 das últimas 6 etapas.
De figurão em figurão, Mangold - sustentado pelo roteiro da dupla Jez e John-Henry Butterworth (No Limite do Amanhã) - costura por esta pista de personagens históricos, icônicos e de egos inflados onde a adrenalina se mistura à testosterona. Com sua expertise em biografias (Johnny & June) e duelos (Os Indomáveis), Mangold alia o tom de aventura e competição sem perder o compasso biográfico desta jornada quase que heroica sobre amizade e confiança.
De nada adiantaria sermos jogados naquelas pistas, boxes e escritórios sem termos noção de quem são aquelas pessoas, o que elas anseiam, pelo que lutam e o que representam. Com isso, Mangold nos mostra desde o início o porquê de Shelby - um ex-piloto vencedor da Le Mans e agora projetista conceituado - merecer respeito e ser ouvido tantas vezes por Ford. Para sua missão impossível, Shelby convoca o temperamental piloto Ken Miles, seu amigo de longa data, para lhe ajudar a projetar o carro. E Bale dá ao personagem o sarcasmo necessário para que ele se destaque em meio a tantos homens de terno e roupas limpas.
Com uma montagem que dosa bem o foco entre tantos personagens - Damon e Bale dividem o protagonismo - e uma trilha sonora que soa até invasiva em alguns momentos, Ford vs Ferrari vai acelerando seu ritmo e os 150 minutos tendem a passar depressa para o espectador receoso com sua longa duração. São tantos personagens competindo, interagindo ou trocando ofensas - e até socos - que o longa assume seu ar cômico-despojado de cinemão pipoca e diverte do início ao fim.
Mangold demonstra uma versatilidade incrível nas sequências de corrida, explorando todas as dificuldades do circuito de Le Mans, seja à noite ou na chuva, e, dada a longa duração da prova, é possível dar respiros à narrativa, fugindo para os boxes onde pilotos descansam para voltar ao volante em seguida, e também aos camarotes, onde os chefões permanecem em seu altar, vão almoçar de helicóptero e mandam e desmandam em suas equipes. O circo, afinal, é financiado por eles.
Mesmo com sua estrutura clássica, Ford vs Ferrari difere do "primo" Rush - No Limite da Emoção ao se sustentar na forte amizade entre Miles e Shelby, mostrando que para superar desafios é preciso confiar em quem está ao seu lado mesmo que os magnatas, empresários e poderosos apenas queiram ver suas marcas triunfando no topo.
O Rei surge como um original Netflix que de original não tem muita coisa. Ao adotar um tom menos poético ao que Shakespeare empregou à figura histórica de Henrique V, o diretor David Michôd, assinando o roteiro em parceria com o ator Joel Edgerton, faz de sua narrativa um declarado estudo de personagem, mais sensível e menos épico.
O ritmo é lento, diria até contemplativo, e flerta com o intimista, as (poucas) sequências de batalhas são filmadas quase como em negação a virtuosismos técnicos - não há exploração de campos abertos e centenas de figurantes marchando -, tanto que o Henrique V de Timothée Chalamet, na verdade tratado como Hal, constantemente desafia seus oponentes para um duelo a dois. As batalhas entre exércitos não interessam a Michôd e Edgerton, que confiam no talento do jovem Chalamet para dar camadas a seu protagonista.
E Chalamet não decepciona, seu Hal é uma figura pouco falante e mais ouvinte, o que é curioso para um rei de uma nação que está em conflito, por isso, os coadjuvantes ganham em relevância, principalmente Edgerton como Falstaff (personagem que já fora interpretado por ninguém menos que Orson Welles) e Sean Harris como William, um fiel da corte, além de outras pequenas participações convincentes de Lily-Rose Depp, Thomasin McKenzie, Robert Pattinson (roubando a cena com sotaque francês) e Ben Mendelsohn como Henrique IV.
Fica interessante notar como em meio a todos estes personagens Hal vai sendo moldado, manipulado e amadurecendo não só como rei, mas principalmente como homem. Afinal, O Rei é a história de amadurecimento deste jovem que renegou a realeza por muito tempo mas que foi sendo aliciado por forças ocultas da monarquia, um sistema que corrompe homens por territórios e guerras em prol da paz.
Embora O Rei não deva ter grande relevância no gênero enquanto um drama épico de guerra histórico - narrativamente falando o longa é mais do mesmo e lhe falta uma essência mais shakesperiana -, ele é bem realizado e se destaca pela força do elenco, mais uma prova de que este é um bom ano para a Netflix.
Marcado por seus filmes de máfia, Scorsese volta ao tema que não abordava desde Os Infiltrados, de 2006 - pelo qual ganhou seu tão almejado Oscar - novamente em um longa com grande elenco e ares de superprodução.
O Irlandês é cinema em estado emocional, um exercício de empatia, e como o próprio diretor gosta de dizer, com assinatura e com um olhar voltado mais para seus personagens do que para as pirotecnias que o cinema de hoje permite, embora estejam lá os planos-sequência, explosões e tiroteios que Scorsese filma brilhantemente.
Já que a história é contada por meio de flashbacks, é necessário voltar ao passado dos personagens, por isso, De Niro (dando conta de um papel carregado no drama como há anos não se via), Al Pacino (entregando um Jimmy Hoffa mais humanizado que o de Jack Nicholson no longa "Hoffa" de 1992) e um sumido Joe Pesci (brilhante sempre que surge em cena) recebem boas doses de CGI em suas marcas do tempo, num resultado impressionante que mantém as expressões faciais de todos em perfeitas condições, nos permitindo olhar no fundo dos olhos de cada um deles e sentir seus medos, raivas e angústias.
Embora Scorsese transforme seu "filme de máfia" em um retrato íntimo de 3 horas e meia sobre homens poderosos, seu desleixo - ou sabotagem, ou negligência - com as personagens femininas incomoda, por mais que aquele seja um ambiente brutalmente masculino havia margem para explorar a personagem de Anna Paquin, principalmente no terceiro ato.
Em suma, O Irlandês é Scorsese de volta aos velhos tempos (e ele os havia deixado?) entregando um filme que talvez não seja feito para ser visto na Netflix (vá aos cinemas!) - e talvez nem pela audiência de hoje -, mas que encontra no serviço de streaming um poderoso aliado para promover toda sua virtuosidade e torná-la facilmente acessível.
Sintetizar a história de mais de 11 milhões de documentos, os Panama Papers, em um filme de pouco mais de 90 minutos não é tarefa fácil, por isso, Steven Soderbergh encontra um jeito bem cool de resumir tudo o que está no livro no qual se baseia, o Secrecy World, colocando os dois grandes responsáveis por estes crimes de proporções incalculáveis no protagonismo deste A Lavanderia.
Gary Oldman e Antonio Banderas, respectivamente, Jürgen Mossack e Ramón Fonseca, desde o início quebram a 4ª parede para nos contar como funcionavam os trâmites de sua empresa panamenha Mossack Fonseca, que abria, administrava e intermediava empresas offshore em paraísos fiscais para fins de evasão fiscal, fraudes e outros atos ilícitos.
A brincadeira funciona por uns 30 minutos - muito graças à presença de Meryl Streep, que tem minutos finais também fulminantes -, ficando claro a partir do segundo ato que Soderbergh - até com certo mal gosto - com um roteiro de Scott Z. Burns, se mostra muito mais preocupado em brincar com o didatismo dos diálogos e de suas historietas, que acabam roubando tempo de tela demais e que só mastigam ainda mais para o espectador os intercursos das empresas offshore e de quem as geria.
Soderbergh olha tanto para a tragicomédia da coisa que perde a chance de explorar as pessoas que foram lesadas com estas inúmeras empresas de fachadas criadas - caso da personagem Ellen (Meryl Streep), que perde o marido em um acidente e, ao solicitar a indenização, descobre que a empresa seguradora na verdade não existe.
A Lavanderia não deixa de ser interessante do ponto de vista informativo, é possível que desperte o interesse do espectador que não saiba sobre os Panama Papers, mas a execução vai ficando cada vez mais cansativa por não sair deste looping didático que não desenvolve personagens, fazendo deles meras peças de um tabuleiro de mesa, como num Banco Imobiliário, ganhando e perdendo dinheiro, onde vidas são descartadas e quem enriquece dá risada. Soderbergh precisa se reinventar.
Uma insossa cinebiografia (?) de Jimmy Hoffa, um líder sindical que obteve o respeito de toda uma classe de caminhoneiros, e também de uma época, por seus discursos inflamados, greves que abalavam os empresários e políticos e conquistas em prol dos assalariados, mas que também precisou se aliar com a máfia e criminosos para angariar essa aura de pessoa que fazia de tudo para ter o que queria.
Contado por meio das memórias do personagem Bobby Ciaro (Danny DeVito), braço direito de Hoffa, o longa traz esse olhar íntimo do amigo que deveria funcionar como algo bem mais humanizado do que é, mas DeVito (o diretor) não define quem é Hoffa além do sindicalista turrão.
É até engraçado lembrar de Sylvester Stallone, um ator com suas limitações - que também já viveu um sindicalista no bom longa F.I.S.T., levemente baseado na história dos Teamsters e de Hoffa - e que se saiu bem melhor na construção de um personagem repleto de dubiedades, enquanto Jack Nicholson, um ator indiscutivelmente cheio de repertório, embora nunca se mostre cansado, não consegue ir além de uma caricatura - com um nariz falso a la Orson Welles - apenas proferindo palavras e esbravejando discursos.
O filme tem lá seu apuro técnico, DeVito decupa bem a montagem de flashbacks e nunca ficamos perdidos na história, embora as sequências que se passam no "hoje" acabem servindo ao propósito de evidenciar ainda mais o personagem de DeVito e nem tanto o de Hoffa - com um encerramento bem piegas. Ao final, fica o questionamento: alguém conhecia bem Jimmy Hoffa?
Filmes natalinos costumam conter uma aura de comfort movie que lhes é inerente. O cinema norte-americano praticamente fez do fato da neve cair como algo mágico e até divino, por isso, Deixe a Neve Cair é um longa que traz essa mensagem positiva do "deixa a vida me levar" - pois ela lhe reserva algo bom -, e para os personagens aqui, por mais que a nevasca que assola a cidade de Gracetown os mantenha presos no local e lá que eles se acabam se envolvendo em fortuitos encontros românticos.
Adaptado de um livro de John Green, Deixe a Neve Cair escala um elenco bastante jovem e repleto de caras conhecidas para quem está de olho nos últimos lançamentos da própria Netflix. Kiernan Shipka (O Mundo Sombrio de Sabrina), Jacob Batalon (dos filmes recentes do Homem-Aranha), Isabela Moner (agora Isabela Merced por sua carreira musical, a Dora Aventureira), Mitchell Hope (da série de filmes Descendentes do Disney Channel), Anna Akana (uma youtuber famosa) e até Joan Cusack fazendo as vezes da pessoa mais velha e solitária que vagueia pela cidade na noite de Natal e traz uma lição de moral, algo no estilo da senhora dos pombos de Esqueceram de Mim.
Numa pegada bem teen, os personagens se envolvem em paixões, términos de relacionamentos, tentativas de conquistas, conflitos entre família e futuro acadêmico, sobre orientação sexual e entre a vida de um astro e a realidade de uma pessoa comum, alguns se mostram mais relevantes que outros, como o núcleo do cantor famoso Stuart (Shameik Moore), Julie (Moner) e sua mãe que está bastante doente, enquanto outros, como o da jovem Addie (Odeya Rush) abandonada pelo, até então, "namorado perfeito" parecem ser desenvolvidos com certa preguiça.
No geral, Deixe a Neve Cair parece ser um episódio especial de Natal de uma série da qual já conhecemos todas aquelas pessoas, por um lado isso pode ser visto como algo positivo, pois todos eles geram empatia facilmente, por outro lado, é preciso que o espectador acredite que a neve traz consigo essa mágica e uma vontade de que tudo se acerte no Natal, ora, acho que é assim mesmo que essa época funciona e, sem se preocupar com clichês, Deixe a Neve Cair se assume como este comfort movie natalino.
Curioso que no mesmo ano de Parasita, outro pré-indicado ao Oscar internacional, A Camareira também trata da pirâmide social de maneira bem mais sutil que o longa sul-coreano, talvez pelo olhar feminino e delicado da diretora Lila Avilés ou até mesmo pelo local onde sua história se situa: um hotel de luxo na Cidade do México.
O ambiente hermético do hotel no qual Eve (Gabriela Cartol) é uma camareira funciona como um simbolismo para a tal divisão de classes. Ela passa quase que despercebida em meio aos lençóis e toalhas brancos e uniformes cinzas, quando notada é tratada com aspereza pela maioria dos hóspedes ou apenas solicitada para que lhes faça algum serviço, a própria hierarquia do local limita Eve ao seu espaço, o 21º andar.
Em meio a esta rotina regrada, alguns eventos dão a Eve a esperança de que talvez ela possa ascender socialmente, como sua requisição por um vestido vermelho esquecido em um dos quartos ("você é a primeira da fila") ou a possibilidade de cuidar do bebê de uma argentina hospedada no hotel ("você poderia vir comigo pra Argentina"), e é justamente quando vai perdendo as esperanças em conseguir algo que Eve desperta e nota que sempre estará fadada a ser a camareira do 21º andar, não importando seu esforço.
Sem rompantes de raiva, Avilés nos propõe lançar um olhar singelo para esta personagem que faz parte da vida de muitas pessoas de média e alta classe, e possibilitando à própria Eve ir notando como funciona a engrenagem da escalada social, assim, se libertando deste laço social de maneira simbólica e até poética.
Difícil não pensar nesse Os 3 Infernais como um arrependimento de Rob Zombie com o fim que deu a seus personagens no ótimo Rejeitados pelo Diabo. Todo o culto que se formou em torno do trio de sádicos assassinos parece ter deixado o diretor com vontade fazer mais com eles. Talvez por isso, Zombie os traz de volta do submundo - e a ida para o México em pleno Dia dos Mortos não deve ser mero acaso - numa trama meio desconjuntada, de altos e baixos, mal costurada e levada mais pela força de seus personagens do que por sua montagem, por muitas vezes confusa.
A bem da verdade é que Os 3 Infernais é um guilty pleasure autêntico para os fãs de Otis Firefly, Baby (Sheri Moon roubando a cena como sempre) e Capitão Spaulding (um saudoso Sid Haig já nitidamente abatido) que abre espaço para o personagem Winslow Coltrane de Richard Brake. Os momentos de violência gratuita, as referências ao cinema e o humor negro - a conversa entre Winslow e Otis sobre uma produtora de filmes pornôs resume bem a proposta absurda de tudo - são ótimos elementos que Zombie, infelizmente, não acerta ao amarrá-los, o fio condutor da trama é tão frouxo quanto as conveniências para que o trio principal permaneça vivo diante de tantas ameaças e, por mais ousado que tudo pareça, a história avança de maneira previsível.
Ao final, Os 3 Infernais vale por rememorar o trio de assassinos gritando, gargalhando e deixando um rastro de morte até o México. Poderia ser tão imprevisível quanto Baby, mas Zombie sustenta sua história num cenário pouco inspirado - ainda que sua direção permaneça aguçada - entregando um longa despreocupado com bom-mocismos, mas também deslumbrado demais com seus personagens, um pouco de coesão não faria mal.
Revisitar o passado nem sempre é uma tarefa fácil, ainda mais quando esse passado se trata de uma das obras de horror mais conhecidas e respeitadas da história, no caso O Iluminado, de Stanley Kubrick, do qual Stephen King nem gosta, tanto que bancou um telefilme nos anos 90 devido a suas diversas ressalvas para com o longa de Kubrick que, segundo King, não explorava o fator sobrenatural do Hotel Overlook sobre os personagens, fazendo de Jack Torrance um alucinado - vivido intensamente por Jack Nicholson - que surta de uma hora pra outra.
Baseado no livro homônimo do próprio Mestre do Horror, Doutor Sono se passa quase 40 anos após os eventos ocorridos em O Iluminado. Agora Dan Torrance (Ewan McGregor) é um enfermeiro de meia idade que ainda carrega consigo os traumas que vivera no Hotel Overlook, além de ter herdado do pai seu problema com alcoolismo. Quando decide abandonar o vício e lutar contra seu passado que teima em voltar, Dan conhece a jovem Abra (Kyliegh Curran), uma adolescente que compartilha seu mesmo poder - a iluminação -, e que conta com ele para que a ajude contra a impiedosa Rose Cartola (Rebecca Ferguson) e seus seguidores.
Mesmo tantos anos depois, esta sequência de O Iluminado vem bem a calhar numa época em que continuações, remakes e reboots desnecessários têm dominado o cinema blockbuster, e ao contar com a direção de Mike Flanagan - que nos últimos anos vem se especializando em tramas de horror psicológico: Jogo Perigoso, O Sono da Morte e A Maldição da Residência Hill - o longa ganha um meticuloso manipulador de personagens e símbolos, ainda que este apele para a nostalgia em alguns momentos, seu trunfo é saber fugir da dependência do clássico, caminhando com as próprias pernas ao explorar o leque de personagens deixados pela obra de King.
Seu roteiro ganha ares episódicos ao saltar entre tantos personagens, mas é justamente ao explorar os três núcleos principais da trama que Flanagan vai nos envolvendo com cada um deles. Todo o arco de Dan (McGregor) é bem explorado. Seus traumas de infância no Hotel que teimam a voltar - dos fantasmas a um caridoso Dick Halloran, revivido por Carl Lumbly -, seu trabalho como enfermeiro em um hospital onde um gato prevê as mortes dos pacientes, sua relação pós-evento traumático com a mãe - revitalizada com louvor pela atriz Alex Essoe, o que deixaria Kubrick orgulhoso ou irritado com tamanha semelhança - tudo vai ganhando ares de importância e dando ao protagonista da história mais e mais camadas.
É quando se dispõe a explorar a personagem de Abra, iluminada como Dan, e o Nó, um culto de "vampiros" que sugam o brilho de crianças enquanto as assassinam sem qualquer pudor - reservando uma das mortes mais cruéis já vistas em adaptações de Stephen King - que Flanagan aposta num previsível bem contra o mal, que só não se torna pedante por contar com uma inspirada e maquiavélica Rebecca Ferguson, roubando a cena até mesmo de sua trupe - representada por tipos que variam entre ciganos, bruxas e hippies - e claramente se divertindo com uma vilã digna - e não aquela bobagem que encarou fazer em MIB: Homens de Preto Internacional.
Flanagan não perde a chance de articular seu domínio de câmera, usando tanto o poder de Rose quanto de Abra para explorar ângulos acrobáticos e praticamente torná-las super-heroínas em batalhas de poderes mentais, o que se torna divertido e bem dosado nas mãos do diretor, que deixa a resolução dos problemas e traumas de Abra e de Dan para um terceiro ato que evoca ao O Iluminado - abrindo tal ato do mesmo modo que se inicia o longa de de 80 - não por pura nostalgia, mas justamente porque às vezes é preciso voltar ao passado para acertar o futuro.
Em suma, Doutor Sono é uma sequência que irá desagradar e agradar na mesma intensidade. Por um lado, o longa dá justificativas e esclarecimentos para o que era subentendido em O Iluminado - e estava ótimo assim -, por outro lado, respeita o legado de Kubrick e da obra de Stephen King, usando ambas como base e reverência para consolidar sua própria história - que vai muito além do Hotel Overlook e dos traumas do protagonista - e, assim, concluir o arco de Dan.
Monsters.
3.6 1Dividido em três partes, a terceira é a que me pegou de jeito. Gosto das duas primeiras, apesar da estranheza do que acontece ali, mas no terceiro e último capítulo "Monstros" tudo fica claro, e a sensação estranha das duas primeiras partes (dedicadas a cada um dos protagonistas) se justifica. Um dramão a la Blue Valentine, no sentido de que o amor é bem menos encantador na prática. Será que com o passar dos anos ele dá espaço à amizade e compreensão para depois nos transformar em monstros?
Frozen: Uma Aventura Congelante
3.9 3,0K Assista AgoraGraficamente falando eu tenho algumas ressalvas com o filme, acho tudo muito sem vida, Olaf é o que mais se destaca na brincadeira.
Enquanto história, vale por fazer de Elsa a protagonista que foge do hall de princesas da Disney que são oferecidas em casamento, ou querem se casar ou ainda governar todo um reino (apesar de Anna servir como bode expiatório para este papel). Em suma, é uma animação redondinha, mas que não impressiona muito.
Apollo 11
3.9 54Cinquenta anos após a chegada do homem à lua é impressionante a qualidade das imagens e gravações contidas neste Apollo 11.
O documentário de Todd Douglas Miller funciona mais como o registro imagético daquele pequeno passo para um homem, mas um grande salto para a humanidade do que uma história a fim de explicar os meandros da "conquista da lua". Não há narrações, entrevistas ou protagonistas, "apenas" a história acontecendo à frente dos nossos olhos. E a magia do cinema ajuda a torná-la ainda mais grandiosa.
Plano-Sequência dos Mortos
4.1 107O terceiro ato é simplesmente genial.
Uma Garota Chamada Marina
3.3 6A rebeldia e a insensatez do documentário de Candé Salles corroboram o título "garota" dado a Marina Lima. Ora, por que o diretor abdica de se aprofundar em boa parte da discografia da cantora, em seus demônios internos, em explorar sua sexualidade e se apoia em um discurso constantemente elogioso à cantora, algumas breves apresentações e a guinada na carreira após se mudar do Rio para São Paulo?
Talvez este não seja o trabalho mais propício para dissecar a personalidade artística de Marina Lima, mas aos poucos vai se tornando uma experiência sadia, e até errática, que nos transporta ao íntimo de uma mulher simples e nunca estagnada, que não se acomodou com a carreira já consolidada no Rio de Janeiro e se mudou para São Paulo a fim de conhecer mais a si mesma e ir em busca de mais desafios e conquistas a tornou o ícone de toda uma geração.
Voltando ao errático, talvez o documentário se perca em alguns momentos pela falta de foco na cantora, se estendendo demais ao mostrar outras pessoas na vida de Marina, como o irmão Antônio Cícero sendo condecorado pela Academia Brasileira de Letras, ou em momentos banais como a importância dada a um corte de cabelo.
Em suma, o documentário traz uma ideia de um papo descontraído sobre coisas passageiras da vida que acabam nos mudando - e nos moldando - e percebemos então que não descobrimos nem metade do que queríamos sobre Marina, curioso, pois os 71 minutos reservam bons e divertidos momentos mesmo assim. É como diz Marina: "As pessoas sabiam quem eu era, mas não sabiam quem eu queria ser agora." Esta não é uma biografia convencional, mas uma obra bastante despojada que se distancia de regras e se aproxima da vitalidade de Marina Lima.
Matthias & Maxime
3.4 132 Assista AgoraÉ curioso ver Xavier Dolan, um diretor que sempre deixou sua marca bem explícita em seus filmes (seja pela trilha sonora composta de músicas tocadas do começo ao fim, as câmeras lentas e as cores vibrantes), realizando um trabalho bem mais sutil neste Matthias & Maxime, embora aqui ainda exista alguns de seus vícios, como os cortes bruscos e os closes em excesso, mas, assim como seus personagens, Dolan parece um rebelde se redescobrindo e voltando aos bons tempos, ao mesmo tempo que se segura para não se entregar. Não que o longa tenha uma direção sufocada, mas a impressão é que Dolan utilizou outros artifícios para chamar atenção para si (vide a grande mancha em seu rosto).
Num amálgama de personagens que têm uma relação bem próxima, Dolan situa Matthias (Gabriel D'Almeida Freitas) e Maxime (ele próprio) ao centro da história, a jovem irmã de um de seus amigos precisa de dois homens para gravar um curta estudantil que consiste em um beijo entre eles. Ambos perdem uma aposta e aceitam fazer o filme (um corte brusco não nos torna cúmplices do momento). A partir de tal beijo, ambos passam a duvidar e questionar suas convicções, um beijo entre ambos no passado é lembrado pelos amigos, o ciclo social de Matthias entra em parafuso por seu comportamento arredio por questionar sua própria masculinidade, a ida de Maxime para a Austrália pode ser a despedida de um amor que ele nem sabia que existia. Matthias & Maxime se assume como um romance de amores imperfeitos e desejos reprimidos.
O melhor de Matthias & Maxime é que Dolan não usa a causa LGBT como fator principal, não há julgamentos aos protagonistas, pelo contrário, o beijo entre os amigos é lembrado pelos demais em tom de brincadeira, como um desejo fugaz, assim, os encontros, as festas e as interações entre eles remetem a episódios de uma sitcom, todos atores estão tão à vontade que parece que os conhecemos há tempos, e o "elefante na sala" é perceptível quando Matthias e Maxime estão no mesmo ambiente trocando olhares ou se atacando em um jogo de mímica.
Entre raiva, provocações e desejo, Matthias & Maxime é a história de um beijo que mudou vidas, nem para melhor, nem para pior, apenas marcou por escolha dos próprios personagens, assim como as pequenas coisas que marcam as vidas de qualquer um, somos nós mesmos que transformamos estas pequenas coisas em tempestades em nossas cabeças. Um Dolan maduro que amadurece seus personagens num trabalho bem mais contido do que se esperava.
Medo Profundo: O Segundo Ataque
2.6 336Johannes Roberts é uma apaixonado por histórias de terror. Apesar de ter ficado mais conhecido no mainstream por dirigir a sequência de Os Estranhos, em 2018, e o primeiro Medo Profundo, em 2017, desde 2001 ele dirige filmes B de terror, nada que seja muito relevante, mas que demonstram que seu lado experimental é algo a ser explorado por algum estúdio que lhe dê liberdade o suficiente para brincar. Quem sabe no reboot de Residente Evil?
Se em Os Estranhos - Caçada Noturna e Medo Profundo, Roberts ainda não havia mostrado material o suficiente para que pudéssemos ficar de olho nele, neste Medo Profundo: O Segundo Ataque é perceptível que há uma maturidade adquirida. No longa de 2017, Roberts empregou um tom ameno demais em um filme que necessitava da tensão inerente aos filmes de tubarão e, apesar da má recepção da crítica, o filme foi bem nas bilheterias.
Com isso, não é de se espantar que o filme tenha ganhado esta sequência, e aqui Roberts muda completamente o tom em comparação ao do primeiro filme, acaba que, na verdade, O Segundo Ataque não tem ligação alguma com o filme de 2017, a não ser pelo fato de ambos serem protagonizados por duas irmãs e suas histórias se passarem no México.
Em Medo Profundo: O Segundo Ataque, Mia (Sophie Nélisse, de A Menina que Roubava Livros) passa por um momento traumático que muitas adolescentes devem se identificar, além de sofrer bullying na escola, ela tem que lidar com a mudança para o México e o novo casamento de seu pai, o mergulhador Grant (John Corbett), além da relação nada afetuosa com a meia-irmã Sasha (Corinne Foxx, filha do ator Jamie Foxx, estreando nos cinemas), filha de sua madrasta Jennifer (Nia Long).
Apesar de estudarem juntas e conviverem aparentemente bem com seus pais, a relação entre ambas é complicada, algo que o roteiro da dupla Ernest Riera e Johannes Roberts deixa a desejar por não explorar até que ponto vai o atrito entre as irmãs, afinal, o que interessa à dupla roteirista é que a história siga logo para os túneis submersos onde um tubarão branco está à espera das jovens. Para melhorar essa relação, Grant e Jennifer têm a ideia de mandar as duas juntas a um passeio para que estreitem laços.
Em busca de aventura - e para fugir das valentonas da escola que também iriam ao passeio - Sasha e Mia se juntam a Alexa (Brianne Tju) e Nicole (Sistine Rose Stallone, filha de Sylvester Stallone, também estreando nos cinemas) para desbravar uma caverna submersa que é um labirinto com poucos bolsões de ar, o que faz com que logo nos venha à cabeça: "ótimo, mais jovens para serem mortas em um cenário que possibilita mais oportunidades", já que no longa anterior, Mandy Moore e Claire Holt tinham que interagir entre si por 90 minutos enjauladas no fundo do mar.
Se a primeira parte do longa é bem lenta - quando somos apresentados às quatro jovens e conhecemos seus instintos de aventureiras inconsequentes - a partir da metade, o diretor Johannes Roberts recorre aos típicos clichês do gênero para nos causar tensão - personagens perdidas, o oxigênio no fim, escolhas equivocadas e uma ameaça sempre invisível que surge do nada para dar um bom susto - e tudo é bem executado, na média do gênero, ou pelo menos é o que o espectador acostumado com filmes do tipo espera, até porque, francamente, o subgênero de filmes de tubarões não entregou nada relevante desde que Steven Spielberg dirigiu Tubarão em 1975, tanto que um dos poucos filmes que teve destaque neste intervalo é o eficiente Águas Rasas (2016), de Jaume Collet-Serra.
Com duas irmãs que não se entendem na superfície e que devem se unir para sobreviver aos intensos ataques de um tubarão cego que habita aquele labirinto subaquático e as atitudes típicas de personagens de filme de terror que irritam ao espectador mais ansioso - e que divertem outros - Medo Profundo: O Segundo Ataque entrega o que se espera dele: diversão, tensão, alguns bons jumpscares e muita trasheira ao final que deixaria Alexandre Aja orgulhoso.
As Golpistas
3.5 538 Assista AgoraFazia tempo que as mulheres não ganhavam um exemplar digno feito por elas e para elas. Rainhas do Crime, Oito Mulheres e um Segredo e As Viúvas ficam bem atrás de As Golpistas.
O filme de Lorene Scafaria é bastante divertido, colorido, agitado e sexy, ainda que não fuja de alguns clichês do gênero. É como se as garotas de Showgirls se vingassem dos caras de O Lobo de Wall Street.
J-Lo está ótima (em todos os sentidos) e o restante do elenco idem, destaque para Constance Wu e seu arco dramático e Cardi B, que funciona bem como alívio cômico nos breves momentos que tem para fazer graça.
Ter uma direção feminina dá certo alívio para assistirmos as atrizes em danças e vestes hiper sensuais, elas nunca parecem fetichizadas embora sempre surjam deslumbrantes em cena.
Além disso, há boas investidas no drama de cada uma delas, por mais simples que este seja, se para os homens elas são apenas máquinas de dar prazer, para a diretora elas são mulheres comuns que, humanizadas, nunca parecem vigaristas que agem em prol de uma causa.
A história não dá muitas voltas, embora em alguns momentos seja perceptível que não há muito mais a ser contado, é aí que o filme se segura no carisma das atrizes e nos proporciona bons momentos de sensualidade e diversão.
A Vida Invisível
4.3 6422019 entra para a história como um dos anos mais importantes para o cinema brasileiro, ao menos de sua história mais recente. A gama de produções nacionais e internacionais (graças ao produtor Rodrigo Teixeira) que tem chegado aos cinemas e sido premiada em festivais estrangeiros mostram como, mesmo com a onda de censura e os cortes no orçamento que a cultura tem sofrido, a arte resiste e 2019 tem se tornado simbólico nesta luta. E A Vida Invisível, ao lado de Bacurau, Pacarrete, Greta, Bixa Travesty e Democracia em Vertigem, são alguns destes pilares.
Com diversos prêmios internacionais, entre eles o Grand Prix da Mostra Un Certain Regard, no Festival de Cannes – inédito na história do cinema brasileiro –, o sétimo longa-metragem da carreira do diretor cearense Karim Aïnouz é também o escolhido pelo Brasil para concorrer a uma vaga na categoria Melhor Filme Internacional no Oscar® 2020, além de ter sido indicado à categoria de Filme Internacional no Independent Spirit Awards, um dos festivais de cinema independente de maior prestígio no mundo.
A Vida Invisível merece o destaque que vem recebendo justamente por se tratar de um tema que cai como luva no atual cenário artístico e político do mundo, onde o feminismo é discutido como nunca. Somos levados de volta ao Rio de Janeiro dos anos 50 para conhecer a história de duas irmãs em uma época na qual as mulheres não podiam alçar voos maiores que os dos homens. As irmãs Guida (Julia Stockler) e Eurídice (Carol Duarte) são como duas faces da mesma moeda – apaixonadas, cúmplices, inseparáveis. Eurídice, a mais nova, é uma pianista prodígio, enquanto Guida, romântica e cheia de vida, sonha em se casar com um príncipe encantado e ter uma família. Um dia, com 18 anos, Guida foge de casa com o namorado. Ao retornar grávida, seis meses depois e sozinha, o pai, um português conservador, a expulsa de casa de maneira cruel. Guida e Eurídice são separadas e passam suas vidas tentando se reencontrar, como se somente juntas fossem capazes de seguir em frente.
Talvez o maior fator de encantamento de A Vida Invisível nem seja Guida ou Eurídice, tão distintas mas tão unidas, ou aquele Rio de Janeiro boêmio dos anos 50, mas sim a bela fotografia de Hélène Louvart, impossível de passar despercebida. Ao terceiro ato há uma cena em específico na qual a personagem de Eurídice Gusmão (vivida então por Fernanda Montenegro) olha para o horizonte através de janela e, num truque muito inteligente, é levada de volta a uma época da qual ela provavelmente esperava outro destino.
E é justamente por esta sutileza que A Vida Invisível é guiado. Aïnouz sempre gostou de sustentar suas histórias no visual estético - vide Madame Satã, O Céu de Suely e Praia do Futuro - aqui não é diferente. As atuações são de Carol Duarte e Julia Stockler são contindas e funcionam na medida para que o filme não se transforme em um melodrama, o comediante Gregório Duvivier, se mal dirigido, poderia entregar algo fora de tom, mas serve bem ao que lhe é proposto. E Fernanda Montenegro dispensa comentários. A ternura de seus olhares, a suavidade de seus gestos, a idade avançada que lhe dá uma aparência frágil - ainda mais por sabermos de tudo que já passara em vida - entram em conflito com sua presença que é grandiosa por tudo o que a atriz representa para o nosso cinema, e vê-la lendo cartas novamente, 20 anos depois de sua indicação ao Oscar, é arrebatador.
Baseado no livro A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, da escritora pernambucana Martha Batalha, o longa é muito mais que uma simples adaptação. É um manifesto contra o machismo, o patriarcado, as vidas de mulheres que se tornaram, e ainda se tornam, invisíveis.
Port Authority
3.1 3Creio que o maior problema deste indie norte-americano nem seja colocar o hétero-cis-branco no protagonismo - e entendo quem problematize isso -, o que mais me incomoda é como a narrativa é regida por essa heteronormatividade e não se aprofunda com a devida atenção nos personagens da cena trans, todos ali vivem às margens da sociedade, de maneira quase refugiada, apenas servindo para expor seus corpos e suas danças - que até são bem interessantes -, mas isso acaba dando superficialidade a eles, enquanto o protagonista
vivido por Fionn Whitehead é mais desenvolvido.
Entre frustrações e coisas boas - como a escalação da atriz trans Leyna Bloom - Port Authority revela as boas intenções da diretora Danielle Lessovitz, mas delas o inferno está cheio, e alguns pecados aqui, com certeza, não serão perdoados pelos LGBTQIA+.
Midway: Batalha em Alto Mar
3.3 187 Assista AgoraConhecido por seus filmes-catástrofe, Rolland Emmerich aposta em Midway - Batalha em Alto Mar na sua volta ao gênero, com muitos efeitos visuais, cenas grandiosas de batalhas aéreas e muitos diálogos, inclusive do lado japonês.
Emmerich sai de um hiato de 3 anos após sua última investida nos épicos de ação. Em 2016, o diretor dirigiu Independence Day: O Ressurgimento, porém, a péssima bilheteria e a má recepção do público e da crítica provaram que a nostalgia do público com o filme dos anos 90 de nada adiantou. Seria o fim do diretor de vários pipocões norte-americanos dos anos 90 e início dos anos 2000 como O Patriota, O Dia Depois de Amanhã e Godzilla?
Agora, Emmerich conta uma história que já havia ganhado um filme lá nos anos 70 e que enche os olhos do norte-americano que escolheu Donald Trump como presidente, a batalha do Pacífico foi uma reação dos Estados Unidos da América ao ataque japonês a Pearl Harbor, feito que mudou os rumos da 2ª Guerra Mundial. Como disse o Almirante Yamamoto: "despertamos um gigante adormecido." Já que até aquele ponto os Estados Unidos permaneciam neutros.
Com um elenco repleto de caras conhecidas, Emmerich já mostra a que veio desde o início: pintar heróis. E nada como atores conhecidos do público para preencher as mais de 2 horas de filme com diálogos entonados por vozes cheias de sotaque e gargantas raspando. O estereótipo do herói de guerra de atos milagrosos e discursos prontos ganha diversos contornos neste Midway. A exemplo do personagem de Nick Jonas, que entra em cena apenas para salvar o dia e ser esquecido logo em seguida.
Patrick Wilson, Luke Evans, Aaron Eckhart, Woody Harrelson e Dennis Quaid são outros heróis de guerra de patente alta que durante o filme são pouco aproveitados, eles são os típicos personagens inseridos na trama para esbravejar ordens e mostrar ao público quem comandava as embarcações e estratégias - mas, ao final, é preciso ajuda dos infográficos costumeiros do gênero para conhecermos seus feitos. As mulheres tampouco servem para algo e Emmerich se mostra pouco interessado nelas, apenas as utilizando para expor a virilidade dos soldados da época.
Com tantos personagens mal aproveitados - o bitânico (!) Ed Skrein é o único com alguma relevância pelo roteiro de Wes Tooke - as mais de 2 horas não se justificam. Há uma tentativa enfadonha de mostrar o lado japonês da história - justificando o dinheiro deles na produção - e, embora haja alguma hombridade naqueles homens, o roteiro se limita a mostrá-los como homens que se sacrificaram contra um inimigo impossível de ser derrotado. Um projeto nos moldes do que Clint Eastwood fizera com Cartas de Iwo Jima e A Conquista da Honra, ou até mesmo uma série para algum serviço de streaming - já que está na moda -, poderia dar conta de tantos personagens importantes historicamente.
Acaba que o filme só vale mesmo pelas cenas de ação, as batalhas aéreas têm bons efeitos em sua maioria, apesar do CGI incomodar bastante no início, ao menos é possível compreendermos as estratégias de ambos os lados, assim como as preocupações dos pilotos em momentos de pura tensão quando expostos ao fogo inimigo, sem saberem se iriam voltar com vida após decolarem dos porta-aviões.
Em suma, Midway - Batalha em Alto Mar tem tudo o que os norte-americanos - ou os entusiastas de filmes de guerra - gostam de ver: batalhas aéreas com muitas explosões e efeitos especiais, americanos salvando o mundo da ameaça japonesa e heróis sendo glorificados com muito ufanismo. Para quem já fez um dos melhores filmes-catástrofe é pouco, mas Emmerich ainda parece disposto a queimar muitos cartuchos.
Retrato de uma Jovem em Chamas
4.4 902 Assista AgoraO que Céline Sciamma realiza em seu novo longa - vencedor dos prêmios de melhor roteiro e da Queer Palm no último Festival de Cannes - vai muito além de ser apenas uma história sobre duas jovens distintas que se envolvem numa paixão efervescente, ela lança seu olhar feminino para uma época em que era quase proibido as mulheres rirem demais - "ainda não a vi sorrindo" -, se envolverem com as artes - Marianne expõe seus quadros assinando o nome do pai - e até mesmo decidirem seu próprio destino: Héloïse é retirada do convento após a morte da irmã e oferecida em casamento pela mãe a um pretendente italiano.
Natural encontrar semelhanças com Me Chame Pelo Seu Nome pela temática LGBT, mas Retrato... é uma obra autêntica por si só, desde sua feminilidade a todo seu apuro estético. Fotografia e direção de arte são capazes de tornar diversas cenas em quadros em movimento, as cores claras e tons ensolarados dão vida àquela ilha isolada e à casa fechada onde uma caminhada à beira da praia é o único momento de liberdade e fuga para Héloïse.
Neste ambiente hermético de sentimentos incubados, poses congeladas, toques sutis, desejos em ebulição e olhares sufocantes o amor desperta como uma fagulha no palheiro. E Sciamma não tem pressa em entregar suas protagonistas ao amor, ela as cerca de arte por todos os cantos, seja na literatura: de um despretensioso "você trouxe um livro?" à tragédia do mito grego de Eurídice e Orfeu, na música em forma de concerto de Vivaldi ao canto libertador das mulheres à beira da fogueira e, obviamente, na pintura. Há muitas formas de expressar e incendiar o amor.
Produzido, dirigido, roteirizado, editado, fotografado, customizado por mulheres e com um elenco também todo dominado por elas - é possível contar os homens nos dedos, aliás, eles nem importam aqui - Retrato de Uma Jovem em Chamas é um dos exemplares mais femininos dos últimos anos. É feito por elas e com toda a sensibilidade feminina que se junta às artes para fazer desta obra algo muito especial. Tal como a arte, o amor transcende e se eterniza. Amar é arte.
Um Dia de Chuva em Nova York
3.2 295 Assista AgoraUm Dia de Chuva em Nova York se transformou em uma tempestade na cabeça de Woody Allen. Isso porque após as acusações de abuso sexual de sua filha adotiva Dylan Farrow contra ele, a Amazon, responsável pela distribuição do longa, desistiu e "cancelou" o lançamento do longa - aliás, o boca a boca de crítica e público também têm trabalhado como publicidade negativa, eis aqui mais uma. Até mesmo Timothée Chamalet embarcou nessa espécie de boicote, doando todo seu salário para instituições, incluindo a Time's Up - o que pode ser entendido como "desculpem por ter trabalho com ele".
Na história, Chalamet é Gatsby, um apaixonado por Nova York que decide apresentar a cidade à namorada Ashleigh (Elle Fanning), que estará por lá a convite do cineasta Roland Pollard (Liev Schreiber), porém, a cidade tem seu próprio cronograma e ambos se desencontram. A aspirante a jornalista se vê então cercada de três homens: o roteirista Ted (Jude Law), um ator renomado (Diego Luna), e o cineasta Pollard que lhe dá um furo de reportagem que pode impulsionar sua carreira jornalística, enquanto Gatsby se depara com a gravação de um filme na qual encontra Chan (Selena Gomez), a irmã mais nova de sua ex-namorada, e um refinado jantar de família do qual ele quer fugir. Entre idas e vindas, encontros e desencontros, ambos farão suas próprias escolhas numa cidade que não pára.
É o típico filme de Woody Allen, o rico branco de alta classe (o nome Gatsby não é a toa) perambulando por uma cidade que tem vida própria em meio a seus pensamentos ranzinzas e encontros fortuitos com pessoas variadas - há um quê de Meia-Noite em Paris nessas andanças e encontros imprevisíveis. Nenhuma das personagens diz algo sobre si (talvez apenas Selena Gomez, que consegue fazer muito com o pouco tempo de tela que tem), todas as demais mulheres orbitam ao redor do mais novo alter-ego de Allen, vivido pessimamente por Chalamet, nada à vontade ao repetir os trejeitos do diretor. Fanning está bem, ainda que numa personagem péssima de uma efusividade e empolgação que lhe tiram qualquer traço de personalidade. Jude Law, Diego Luna e Rebecca Hall reservam bons e breves momentos, mas logo são atropelados por um roteiro que não se interessa muito por eles.
Se você gosta - muito - do estilo do diretor pode se deliciar, o filme diz logo de cara de quem é (os créditos iniciais e a trilha não se deixam enganar), mas é justamente aí que ele se acomoda, Allen parece parado no tempo, sem interesse algum em mudar suas convenções, personas, e principalmente o tratamento dado às mulheres; nem mesmo a chuva de Nova York é capaz de lavar sua alma. E se o próprio diretor não é capaz de olhar para seus demônios internos e se expressar com maior responsabilidade, porque cabe ao espectador fazer isso? Um Dia de Chuva em Nova York é mais uma hora e meia de Allen sendo o que sempre foi, para o bem ou para o mal.
Klaus
4.3 610 Assista AgoraA Pixar revolucionou o campo da animação com seus projetos que beiram à perfeição e que praticamente dão vida a seus personagens, com o estúdio - e com as concorrentes -, a animação 2D não teve vez, ficando associada à nostalgia dos clássicos, por isso, vermos a Netflix apostando neste formato já em sua primeira animação, após tanto inchar seu catálogo com produções genéricas, funciona como uma lembrança aos clássicos.
E qual a melhor temática para despertar este sentimento saudosista senão a natalina? Klaus conta a história de Jesper (voz de Rodrigo Santoro na versão dublada), um jovem e rebelde carteiro enviado a Smeerensburg, uma pequena vila ao norte do ártico, para uma tarefa ingrata: trabalhar no serviço postal local em meio a dois clãs que vivem em pé de guerra: os Ellingboe e os Krum. Lá, Jesper conhece Alva (Fernanda Vasconcellos), uma professora que trabalha como peixeira - já que as crianças abandonaram a escola - e Klaus (Daniel Boaventura), um carpinteiro que vive isolado em uma montanha em meio aos brinquedos que outrora fabricava.
De maneira bastante original, Klaus assume uma narrativa revisionista no sentido de contar a origem da lenda do Papai Noel por outro ponto de vista, como se testemunhássemos o nascimento de hábitos e tradições natalinas que permanecem intrínsecas a algumas culturas até hoje. No centro disso está Jesper, o protagonista enviado para este local hostil e que, com sua jovialidade e benevolência, acaba despertando bondade e inspiração nas crianças, enquanto seus pais parecem muito mais dispostos em sustentar antigas rivalidades.
Talvez o longa não sirva muito ao público mais infantil (abaixo dos 7 anos), já que, diferente da recente animação O Grinch, a narrativa não é tão lúdica, é preciso certo discernimento para perceber coisas como as reações violentas dos moradores da vila, avessos às novidades e extremistas com o ensino às crianças, mas os pequenos podem se afeiçoar à ininteligível garotinha filipina que passa a ser "compreendida" por Jesper quando este a trata com maior empatia. Resumindo bem a mensagem do filme: o espírito natalino desperta bons sentimentos.
O fim de ano parece promissor para a Netflix - que ainda estreia O Irlandês (27/11), História de Um Casamento (06/12) e Dois Papas (20/12) - e no ritmo do Natal, Klaus entra para este seleto grupo de produções que, enfim, provam que o serviço de streaming pode chegar com força na temporada de premiações. Não seria surpresa vermos Klaus indicado nas categorias de animações, já que traz uma bela mensagem valorizando amizades, aprendizado e tradições natalinas.
Azougue Nazaré
3.9 34Culturalmente falando o ano não tem sido fácil para o Brasil, o Ministério da Cultura foi dissolvido e transformado em Secretaria, ficando sob a tutela do Ministério da Cidadania e recentemente repassado ao Ministério do Turismo, o Festival Indie foi cancelado, o Festival do Rio adiado e ameaçado, por isso, é de se orgulhar que nosso cinema tenha produzido tantas histórias de resistência e tenha feito sucesso internacional - enquanto nossos poderosos não lhe dão o devido valor.
Premiado com o Bright Future Award no Festival Internacional de Roterdã, Melhor Direção no BAFICI 2018, Menção Honrosa no Lima Independiente Film Festival 2018, Prêmio da Crítica no Festival de Toulouse, e o Prêmio Especial do Júri, Melhor Ator e Melhor Montagem no Festival do Rio 2018, Azougue Nazaré é resistência enquanto produção e enquanto história.
Difícil não se lembrar de Bacurau, cidade interiorana tão pequena e acolhedora quanto a Nazaré da Mata, do interior de Pernambuco, enquanto a Bacurau do longa de Kléber Mendonça Filho (produtor associado de Azougue Nazaré) resiste aos forasteiros, a cidade do longa de Tiago Melo resiste à intolerância religiosa que surge na figura de diversos personagens que reagem de formas diferentes ao Maracatu rural: O pastor (Mestre Barachinha) que trata a manifestação cultural como coisa do demônio, a esposa do protagonista Catita (Valmir do Côco) que proíbe o marido de se apresentar nas danças e os ataques de vizinhos ao pai de santo local.
Enquanto produto cultural Azougue Nazaré tem grande relevância, Tiago Melo arquiteta bem a cidade e seus moradores, mostrando o dia a dia de cada um, suas trivialidades e hábitos, rusgas e traições, cantorias e rimas e o próprio Maracatu rural, se permitindo até inserir elementos de um cinema fantástico na realidade quase documental que vinha propondo. A mistura é interessante a princípio, dando um ar de mistério ao longa - assim como o disco-voador em Bacurau - mas Melo não desenvolve bem quase nenhum dos conflitos lançados na narrativa, se eles não ficam pelo caminho são resolvidos com certo descuidado. Para sua sorte, os momentos do Maracatu, enquanto trilha, enquanto manifestação e enquanto resistência elevam a narrativa, fazendo deste longa um bom exemplo de como nossa cultura é rica e merece todo tipo de manifestação para que sigamos resistindo.
Ford vs Ferrari
3.9 715 Assista AgoraQualquer pessoa que acompanha o automobilismo - ou até mesmo a Fórmula 1, sua categoria mais popular - sabe que o circo que se forma ao redor de pilotos, marcas e equipes é cheio de glamour, figurões, histórias, competitividade e também muito trabalho.
Tendo tudo isso em mente, James Mangold faz de Ford vs Ferrari uma história que vai muito além do embate que está no título. Aliás, tal disputa acaba se tornando combustível para disputas internas entre o herdeiro de um império automotivo, Henry Ford II (Tracy Letts) - querendo superar a rival Ferrari -, e um piloto difícil de lidar, vivido com energia por um sempre competente Christian Bale e seu algoz Leo Beebe (Josh Lucas), o diretor do projeto automobilístico da Ford que é contra sua presença no volante da equipe.
Quando a Ford surge em risco de falência, nos idos dos anos 60, o então presidente do grupo, Henry Ford II decide convocar uma reunião de emergência. "The Deuce" como também era conhecido, querendo elevar a marca ao patamar da italiana Ferrari - uma fabricante que, ao contrário da Ford e seu sistema de produção, fabricava seus carros quase que por encomenda - confia no designer automotivo Carroll Shelby (Matt Damon) quando este lhe propõe montar um carro capaz de competir nas 24 horas de Le Mans, uma das provas mais difíceis do mundo, e bater a Ferrari - vencedora de 5 das últimas 6 etapas.
De figurão em figurão, Mangold - sustentado pelo roteiro da dupla Jez e John-Henry Butterworth (No Limite do Amanhã) - costura por esta pista de personagens históricos, icônicos e de egos inflados onde a adrenalina se mistura à testosterona. Com sua expertise em biografias (Johnny & June) e duelos (Os Indomáveis), Mangold alia o tom de aventura e competição sem perder o compasso biográfico desta jornada quase que heroica sobre amizade e confiança.
De nada adiantaria sermos jogados naquelas pistas, boxes e escritórios sem termos noção de quem são aquelas pessoas, o que elas anseiam, pelo que lutam e o que representam. Com isso, Mangold nos mostra desde o início o porquê de Shelby - um ex-piloto vencedor da Le Mans e agora projetista conceituado - merecer respeito e ser ouvido tantas vezes por Ford. Para sua missão impossível, Shelby convoca o temperamental piloto Ken Miles, seu amigo de longa data, para lhe ajudar a projetar o carro. E Bale dá ao personagem o sarcasmo necessário para que ele se destaque em meio a tantos homens de terno e roupas limpas.
Com uma montagem que dosa bem o foco entre tantos personagens - Damon e Bale dividem o protagonismo - e uma trilha sonora que soa até invasiva em alguns momentos, Ford vs Ferrari vai acelerando seu ritmo e os 150 minutos tendem a passar depressa para o espectador receoso com sua longa duração. São tantos personagens competindo, interagindo ou trocando ofensas - e até socos - que o longa assume seu ar cômico-despojado de cinemão pipoca e diverte do início ao fim.
Mangold demonstra uma versatilidade incrível nas sequências de corrida, explorando todas as dificuldades do circuito de Le Mans, seja à noite ou na chuva, e, dada a longa duração da prova, é possível dar respiros à narrativa, fugindo para os boxes onde pilotos descansam para voltar ao volante em seguida, e também aos camarotes, onde os chefões permanecem em seu altar, vão almoçar de helicóptero e mandam e desmandam em suas equipes. O circo, afinal, é financiado por eles.
Mesmo com sua estrutura clássica, Ford vs Ferrari difere do "primo" Rush - No Limite da Emoção ao se sustentar na forte amizade entre Miles e Shelby, mostrando que para superar desafios é preciso confiar em quem está ao seu lado mesmo que os magnatas, empresários e poderosos apenas queiram ver suas marcas triunfando no topo.
O Rei
3.6 406O Rei surge como um original Netflix que de original não tem muita coisa. Ao adotar um tom menos poético ao que Shakespeare empregou à figura histórica de Henrique V, o diretor David Michôd, assinando o roteiro em parceria com o ator Joel Edgerton, faz de sua narrativa um declarado estudo de personagem, mais sensível e menos épico.
O ritmo é lento, diria até contemplativo, e flerta com o intimista, as (poucas) sequências de batalhas são filmadas quase como em negação a virtuosismos técnicos - não há exploração de campos abertos e centenas de figurantes marchando -, tanto que o Henrique V de Timothée Chalamet, na verdade tratado como Hal, constantemente desafia seus oponentes para um duelo a dois. As batalhas entre exércitos não interessam a Michôd e Edgerton, que confiam no talento do jovem Chalamet para dar camadas a seu protagonista.
E Chalamet não decepciona, seu Hal é uma figura pouco falante e mais ouvinte, o que é curioso para um rei de uma nação que está em conflito, por isso, os coadjuvantes ganham em relevância, principalmente Edgerton como Falstaff (personagem que já fora interpretado por ninguém menos que Orson Welles) e Sean Harris como William, um fiel da corte, além de outras pequenas participações convincentes de Lily-Rose Depp, Thomasin McKenzie, Robert Pattinson (roubando a cena com sotaque francês) e Ben Mendelsohn como Henrique IV.
Fica interessante notar como em meio a todos estes personagens Hal vai sendo moldado, manipulado e amadurecendo não só como rei, mas principalmente como homem. Afinal, O Rei é a história de amadurecimento deste jovem que renegou a realeza por muito tempo mas que foi sendo aliciado por forças ocultas da monarquia, um sistema que corrompe homens por territórios e guerras em prol da paz.
Embora O Rei não deva ter grande relevância no gênero enquanto um drama épico de guerra histórico - narrativamente falando o longa é mais do mesmo e lhe falta uma essência mais shakesperiana -, ele é bem realizado e se destaca pela força do elenco, mais uma prova de que este é um bom ano para a Netflix.
O Irlandês
4.0 1,5K Assista AgoraMarcado por seus filmes de máfia, Scorsese volta ao tema que não abordava desde Os Infiltrados, de 2006 - pelo qual ganhou seu tão almejado Oscar - novamente em um longa com grande elenco e ares de superprodução.
O Irlandês é cinema em estado emocional, um exercício de empatia, e como o próprio diretor gosta de dizer, com assinatura e com um olhar voltado mais para seus personagens do que para as pirotecnias que o cinema de hoje permite, embora estejam lá os planos-sequência, explosões e tiroteios que Scorsese filma brilhantemente.
Já que a história é contada por meio de flashbacks, é necessário voltar ao passado dos personagens, por isso, De Niro (dando conta de um papel carregado no drama como há anos não se via), Al Pacino (entregando um Jimmy Hoffa mais humanizado que o de Jack Nicholson no longa "Hoffa" de 1992) e um sumido Joe Pesci (brilhante sempre que surge em cena) recebem boas doses de CGI em suas marcas do tempo, num resultado impressionante que mantém as expressões faciais de todos em perfeitas condições, nos permitindo olhar no fundo dos olhos de cada um deles e sentir seus medos, raivas e angústias.
Embora Scorsese transforme seu "filme de máfia" em um retrato íntimo de 3 horas e meia sobre homens poderosos, seu desleixo - ou sabotagem, ou negligência - com as personagens femininas incomoda, por mais que aquele seja um ambiente brutalmente masculino havia margem para explorar a personagem de Anna Paquin, principalmente no terceiro ato.
Em suma, O Irlandês é Scorsese de volta aos velhos tempos (e ele os havia deixado?) entregando um filme que talvez não seja feito para ser visto na Netflix (vá aos cinemas!) - e talvez nem pela audiência de hoje -, mas que encontra no serviço de streaming um poderoso aliado para promover toda sua virtuosidade e torná-la facilmente acessível.
A Lavanderia
3.3 246Sintetizar a história de mais de 11 milhões de documentos, os Panama Papers, em um filme de pouco mais de 90 minutos não é tarefa fácil, por isso, Steven Soderbergh encontra um jeito bem cool de resumir tudo o que está no livro no qual se baseia, o Secrecy World, colocando os dois grandes responsáveis por estes crimes de proporções incalculáveis no protagonismo deste A Lavanderia.
Gary Oldman e Antonio Banderas, respectivamente, Jürgen Mossack e Ramón Fonseca, desde o início quebram a 4ª parede para nos contar como funcionavam os trâmites de sua empresa panamenha Mossack Fonseca, que abria, administrava e intermediava empresas offshore em paraísos fiscais para fins de evasão fiscal, fraudes e outros atos ilícitos.
A brincadeira funciona por uns 30 minutos - muito graças à presença de Meryl Streep, que tem minutos finais também fulminantes -, ficando claro a partir do segundo ato que Soderbergh - até com certo mal gosto - com um roteiro de Scott Z. Burns, se mostra muito mais preocupado em brincar com o didatismo dos diálogos e de suas historietas, que acabam roubando tempo de tela demais e que só mastigam ainda mais para o espectador os intercursos das empresas offshore e de quem as geria.
Soderbergh olha tanto para a tragicomédia da coisa que perde a chance de explorar as pessoas que foram lesadas com estas inúmeras empresas de fachadas criadas - caso da personagem Ellen (Meryl Streep), que perde o marido em um acidente e, ao solicitar a indenização, descobre que a empresa seguradora na verdade não existe.
A Lavanderia não deixa de ser interessante do ponto de vista informativo, é possível que desperte o interesse do espectador que não saiba sobre os Panama Papers, mas a execução vai ficando cada vez mais cansativa por não sair deste looping didático que não desenvolve personagens, fazendo deles meras peças de um tabuleiro de mesa, como num Banco Imobiliário, ganhando e perdendo dinheiro, onde vidas são descartadas e quem enriquece dá risada. Soderbergh precisa se reinventar.
Hoffa - Um Homem, Uma Lenda
3.2 17 Assista AgoraUma insossa cinebiografia (?) de Jimmy Hoffa, um líder sindical que obteve o respeito de toda uma classe de caminhoneiros, e também de uma época, por seus discursos inflamados, greves que abalavam os empresários e políticos e conquistas em prol dos assalariados, mas que também precisou se aliar com a máfia e criminosos para angariar essa aura de pessoa que fazia de tudo para ter o que queria.
Contado por meio das memórias do personagem Bobby Ciaro (Danny DeVito), braço direito de Hoffa, o longa traz esse olhar íntimo do amigo que deveria funcionar como algo bem mais humanizado do que é, mas DeVito (o diretor) não define quem é Hoffa além do sindicalista turrão.
É até engraçado lembrar de Sylvester Stallone, um ator com suas limitações - que também já viveu um sindicalista no bom longa F.I.S.T., levemente baseado na história dos Teamsters e de Hoffa - e que se saiu bem melhor na construção de um personagem repleto de dubiedades, enquanto Jack Nicholson, um ator indiscutivelmente cheio de repertório, embora nunca se mostre cansado, não consegue ir além de uma caricatura - com um nariz falso a la Orson Welles - apenas proferindo palavras e esbravejando discursos.
O filme tem lá seu apuro técnico, DeVito decupa bem a montagem de flashbacks e nunca ficamos perdidos na história, embora as sequências que se passam no "hoje" acabem servindo ao propósito de evidenciar ainda mais o personagem de DeVito e nem tanto o de Hoffa - com um encerramento bem piegas. Ao final, fica o questionamento: alguém conhecia bem Jimmy Hoffa?
Deixe a Neve Cair
2.8 275 Assista AgoraFilmes natalinos costumam conter uma aura de comfort movie que lhes é inerente. O cinema norte-americano praticamente fez do fato da neve cair como algo mágico e até divino, por isso, Deixe a Neve Cair é um longa que traz essa mensagem positiva do "deixa a vida me levar" - pois ela lhe reserva algo bom -, e para os personagens aqui, por mais que a nevasca que assola a cidade de Gracetown os mantenha presos no local e lá que eles se acabam se envolvendo em fortuitos encontros românticos.
Adaptado de um livro de John Green, Deixe a Neve Cair escala um elenco bastante jovem e repleto de caras conhecidas para quem está de olho nos últimos lançamentos da própria Netflix. Kiernan Shipka (O Mundo Sombrio de Sabrina), Jacob Batalon (dos filmes recentes do Homem-Aranha), Isabela Moner (agora Isabela Merced por sua carreira musical, a Dora Aventureira), Mitchell Hope (da série de filmes Descendentes do Disney Channel), Anna Akana (uma youtuber famosa) e até Joan Cusack fazendo as vezes da pessoa mais velha e solitária que vagueia pela cidade na noite de Natal e traz uma lição de moral, algo no estilo da senhora dos pombos de Esqueceram de Mim.
Numa pegada bem teen, os personagens se envolvem em paixões, términos de relacionamentos, tentativas de conquistas, conflitos entre família e futuro acadêmico, sobre orientação sexual e entre a vida de um astro e a realidade de uma pessoa comum, alguns se mostram mais relevantes que outros, como o núcleo do cantor famoso Stuart (Shameik Moore), Julie (Moner) e sua mãe que está bastante doente, enquanto outros, como o da jovem Addie (Odeya Rush) abandonada pelo, até então, "namorado perfeito" parecem ser desenvolvidos com certa preguiça.
No geral, Deixe a Neve Cair parece ser um episódio especial de Natal de uma série da qual já conhecemos todas aquelas pessoas, por um lado isso pode ser visto como algo positivo, pois todos eles geram empatia facilmente, por outro lado, é preciso que o espectador acredite que a neve traz consigo essa mágica e uma vontade de que tudo se acerte no Natal, ora, acho que é assim mesmo que essa época funciona e, sem se preocupar com clichês, Deixe a Neve Cair se assume como este comfort movie natalino.
A Camareira
3.8 19Curioso que no mesmo ano de Parasita, outro pré-indicado ao Oscar internacional, A Camareira também trata da pirâmide social de maneira bem mais sutil que o longa sul-coreano, talvez pelo olhar feminino e delicado da diretora Lila Avilés ou até mesmo pelo local onde sua história se situa: um hotel de luxo na Cidade do México.
O ambiente hermético do hotel no qual Eve (Gabriela Cartol) é uma camareira funciona como um simbolismo para a tal divisão de classes. Ela passa quase que despercebida em meio aos lençóis e toalhas brancos e uniformes cinzas, quando notada é tratada com aspereza pela maioria dos hóspedes ou apenas solicitada para que lhes faça algum serviço, a própria hierarquia do local limita Eve ao seu espaço, o 21º andar.
Em meio a esta rotina regrada, alguns eventos dão a Eve a esperança de que talvez ela possa ascender socialmente, como sua requisição por um vestido vermelho esquecido em um dos quartos ("você é a primeira da fila") ou a possibilidade de cuidar do bebê de uma argentina hospedada no hotel ("você poderia vir comigo pra Argentina"), e é justamente quando vai perdendo as esperanças em conseguir algo que Eve desperta e nota que sempre estará fadada a ser a camareira do 21º andar, não importando seu esforço.
Sem rompantes de raiva, Avilés nos propõe lançar um olhar singelo para esta personagem que faz parte da vida de muitas pessoas de média e alta classe, e possibilitando à própria Eve ir notando como funciona a engrenagem da escalada social, assim, se libertando deste laço social de maneira simbólica e até poética.
Os 3 Infernais
2.7 143 Assista AgoraDifícil não pensar nesse Os 3 Infernais como um arrependimento de Rob Zombie com o fim que deu a seus personagens no ótimo Rejeitados pelo Diabo. Todo o culto que se formou em torno do trio de sádicos assassinos parece ter deixado o diretor com vontade fazer mais com eles. Talvez por isso, Zombie os traz de volta do submundo - e a ida para o México em pleno Dia dos Mortos não deve ser mero acaso - numa trama meio desconjuntada, de altos e baixos, mal costurada e levada mais pela força de seus personagens do que por sua montagem, por muitas vezes confusa.
A bem da verdade é que Os 3 Infernais é um guilty pleasure autêntico para os fãs de Otis Firefly, Baby (Sheri Moon roubando a cena como sempre) e Capitão Spaulding (um saudoso Sid Haig já nitidamente abatido) que abre espaço para o personagem Winslow Coltrane de Richard Brake. Os momentos de violência gratuita, as referências ao cinema e o humor negro - a conversa entre Winslow e Otis sobre uma produtora de filmes pornôs resume bem a proposta absurda de tudo - são ótimos elementos que Zombie, infelizmente, não acerta ao amarrá-los, o fio condutor da trama é tão frouxo quanto as conveniências para que o trio principal permaneça vivo diante de tantas ameaças e, por mais ousado que tudo pareça, a história avança de maneira previsível.
Ao final, Os 3 Infernais vale por rememorar o trio de assassinos gritando, gargalhando e deixando um rastro de morte até o México. Poderia ser tão imprevisível quanto Baby, mas Zombie sustenta sua história num cenário pouco inspirado - ainda que sua direção permaneça aguçada - entregando um longa despreocupado com bom-mocismos, mas também deslumbrado demais com seus personagens, um pouco de coesão não faria mal.
Doutor Sono
3.7 1,0K Assista AgoraRevisitar o passado nem sempre é uma tarefa fácil, ainda mais quando esse passado se trata de uma das obras de horror mais conhecidas e respeitadas da história, no caso O Iluminado, de Stanley Kubrick, do qual Stephen King nem gosta, tanto que bancou um telefilme nos anos 90 devido a suas diversas ressalvas para com o longa de Kubrick que, segundo King, não explorava o fator sobrenatural do Hotel Overlook sobre os personagens, fazendo de Jack Torrance um alucinado - vivido intensamente por Jack Nicholson - que surta de uma hora pra outra.
Baseado no livro homônimo do próprio Mestre do Horror, Doutor Sono se passa quase 40 anos após os eventos ocorridos em O Iluminado. Agora Dan Torrance (Ewan McGregor) é um enfermeiro de meia idade que ainda carrega consigo os traumas que vivera no Hotel Overlook, além de ter herdado do pai seu problema com alcoolismo. Quando decide abandonar o vício e lutar contra seu passado que teima em voltar, Dan conhece a jovem Abra (Kyliegh Curran), uma adolescente que compartilha seu mesmo poder - a iluminação -, e que conta com ele para que a ajude contra a impiedosa Rose Cartola (Rebecca Ferguson) e seus seguidores.
Mesmo tantos anos depois, esta sequência de O Iluminado vem bem a calhar numa época em que continuações, remakes e reboots desnecessários têm dominado o cinema blockbuster, e ao contar com a direção de Mike Flanagan - que nos últimos anos vem se especializando em tramas de horror psicológico: Jogo Perigoso, O Sono da Morte e A Maldição da Residência Hill - o longa ganha um meticuloso manipulador de personagens e símbolos, ainda que este apele para a nostalgia em alguns momentos, seu trunfo é saber fugir da dependência do clássico, caminhando com as próprias pernas ao explorar o leque de personagens deixados pela obra de King.
Seu roteiro ganha ares episódicos ao saltar entre tantos personagens, mas é justamente ao explorar os três núcleos principais da trama que Flanagan vai nos envolvendo com cada um deles. Todo o arco de Dan (McGregor) é bem explorado. Seus traumas de infância no Hotel que teimam a voltar - dos fantasmas a um caridoso Dick Halloran, revivido por Carl Lumbly -, seu trabalho como enfermeiro em um hospital onde um gato prevê as mortes dos pacientes, sua relação pós-evento traumático com a mãe - revitalizada com louvor pela atriz Alex Essoe, o que deixaria Kubrick orgulhoso ou irritado com tamanha semelhança - tudo vai ganhando ares de importância e dando ao protagonista da história mais e mais camadas.
É quando se dispõe a explorar a personagem de Abra, iluminada como Dan, e o Nó, um culto de "vampiros" que sugam o brilho de crianças enquanto as assassinam sem qualquer pudor - reservando uma das mortes mais cruéis já vistas em adaptações de Stephen King - que Flanagan aposta num previsível bem contra o mal, que só não se torna pedante por contar com uma inspirada e maquiavélica Rebecca Ferguson, roubando a cena até mesmo de sua trupe - representada por tipos que variam entre ciganos, bruxas e hippies - e claramente se divertindo com uma vilã digna - e não aquela bobagem que encarou fazer em MIB: Homens de Preto Internacional.
Flanagan não perde a chance de articular seu domínio de câmera, usando tanto o poder de Rose quanto de Abra para explorar ângulos acrobáticos e praticamente torná-las super-heroínas em batalhas de poderes mentais, o que se torna divertido e bem dosado nas mãos do diretor, que deixa a resolução dos problemas e traumas de Abra e de Dan para um terceiro ato que evoca ao O Iluminado - abrindo tal ato do mesmo modo que se inicia o longa de de 80 - não por pura nostalgia, mas justamente porque às vezes é preciso voltar ao passado para acertar o futuro.
Em suma, Doutor Sono é uma sequência que irá desagradar e agradar na mesma intensidade. Por um lado, o longa dá justificativas e esclarecimentos para o que era subentendido em O Iluminado - e estava ótimo assim -, por outro lado, respeita o legado de Kubrick e da obra de Stephen King, usando ambas como base e reverência para consolidar sua própria história - que vai muito além do Hotel Overlook e dos traumas do protagonista - e, assim, concluir o arco de Dan.