Acho que nem tem muito o que se falar. É o filme mais preguiçoso de Star Wars já produzido. Cenas curtas entupidas de personagens secundários em cima de cenas curtas entupidas de personagens secundários, sem um fio narrativo pra guiar o espectador por cerca de 140 minutos e que prefere, antes, prende-lo por uma ação (ruim) ininterrupta.
Impressionante como nem um filme bom de ação/aventura, o marcante da trilogia original de SW, conseguiram fazer. As cenas de ação não empolgam em sua grande maioria
- sendo, pra mim, a exceção a cena das batalhas aéreas de Poe já ao fim -
, e a presença de um "Deus ex-machina" nas cenas de clímax é gritante.
Mesmo o roteiro parece ter sido feito às pressas. A construção narrativa é inexistente, com fatos novos sendo adicionados a outros fatos novos seguidamente (e sem explicação anterior alguma!), e não existe nem uma "solidificação" da história narrada: simplesmente não há tempo para pensar, porque a escalonada que o filme entrega assusta até aqueles que já curtiam o universo Star Wars.
É assustador parar pra pensar que não se precisaria nem de nada muito elaborado pra fazer um bom filme: à exemplo do VII, que chupa inteiramente o roteiro do IV - e que, convenhamos, roteiro nunca foi o forte dos filmes de SW em geral, até diferentemente das outras obras produzidas em mídias diferentes sobre esse universo -, ou mesmo do VIII, que decide seguir por uma história minimamente original - que seja aceitável ou não como produto final é outra questão -, e que acabam por entregar pelo menos um mínimo aceitável de narrativa, a "Ascensão Skywalker" é incrivelmente um filme sem história alguma. O
"inexplicavelmente, Palpatine sobreviveu" (que no original creio que seja "somehow, Palpatine lives")
é a prova cabal do que foi esse filme. Acho que nem um estudante de arte e mídia/cinema, correndo pra entregar um trabalho já próximo do fim do prazo de entrega, criaria um roteiro tão entupido de furos/fatos-aleatórios-pessimamente-empurrados desse jeito.
"Por mais mesquinha que seja sua vida, aceite-a e viva-a; não se esquive a ela nem a trate com termos duros. Ela não é tão ruim quanto você. Ela parece tanto mais pobre quanto mais rico você é. Quem vê defeito em tudo verá defeitos até no paraíso. Ame sua vida, por pobre que seja. Talvez você possa ter algumas horas agradáveis, emocionantes, gloriosas, mesmo num asilo de pobres. O poente se reflete nas janelas do albergue de mendigos com o mesmo fulgor com que brilha na morada dos ricos; a neve se dissolve em ambas as portas na mesma época da primavera. Não vejo por que um espírito sereno não possa viver com o mesmo contentamento e com pensamentos alegres num asilo ou num palácio. Muitas vezes me parece que os pobres da cidade são o que vivem a vida mais independente de todas".
Salvo ressalvas, esta passagem do Walden, escrito pelo Henry David Thoreau em 1854, me parece um daqueles casamentos perfeitos com o que vemos em uma obra de uma mídia completamente distinta, a nível de recorte temporal, temática e veículo, com aquela outra a qual decidimos comparar. Não sei se a Agnès Varda chegou a ler Thoreau - e, no fim, isso não importa em absolutamente nada -, mas me foi dificílimo não assistir a jornada de Mona e associá-la (em partes, verdade) com a do estadunidense que, cem anos antes, decidiu dar um basta naquilo que chamava de "vida civilizada" na sua América do Norte oitocentista.
Ao fim, ambas as jornadas, cada qual no seu ritmo, estilo e meio, que acabam por movimentar várias questões sobre o mundo em que vivemos e, principalmente, a sociedade que nos cerca - em todos os seus aspectos e particularidades, tão díspares e, às vezes, completamente inesperados. Ambas as obras, também, fantásticas no seu story-telling.
A Revolução de 1789 - ou, mais especificamente, o estabelecimento de suas bases legais no decorrer do chamado processo, tão distantes dos ideais "libertários" memorizados e repetidos a esmo, tal como vemos com o irmão da governanta de Robespierre - sem romantização alguma. Wajda, malandramente, se utiliza das histórias iniciadas no 1789 em diante para fazer sua nem tão sutil crítica ao cenário político do Leste Europeu neste momento: em entrevista ao Le Matin, o diretor polonês chegou a dizer que "Robespierre é o mundo do Leste, Danton é o mundo ocidental. [...] A atitude e os argumentos [de Danton] estão muito próximos de nós. O choque entre esses dois homens é exatamente o momento pelo qual estamos passando hoje".
Era a conjuntura de crise do chamado "socialismo real" europeu, e Wajda, fervoroso apoiador do "Solidariedade" polonês, quis passar seu olhar traçando paralelos entre estes dois recortes históricos. Aquele de fins do setecentos, em que uma revolução inicialmente popular descambou para o terror; este, de fins do século XX, com sua narrativa do legado socialista. Acusações e farpas dos dois lados não poderiam faltar, afinal. Sobre "Danton", o historiador estadunidense Robert Darnton escreve que algumas escolhas do polonês para o filme "chocaram os críticos não por causa de sua imprecisão, mas por darem aos líderes da Revolução um ar mais familiar e menos heroico do que as figuras dos livros de história. [...] O retrato de um Robespierre gélido, neurótico, desumano, de Wojciech Pszoniak, era particularmente ofensivo, pois Robespierre era a pedra de toque da ortodoxia nas interpretações da Revolução. Igualmente importante, ele era o modelo do intelectual moderno. Personificava o [...] teórico que virou homem de ação", que estabelecia linhas partidaristas e se lia como um estrategista das "massas".
Um filme, recepcionado (e lido) de maneiras completamente diferentes. Como a própria História, no fim das contas. Exemplo disso? Certeza que Wajda não pensou a situação política de um certo país sul-americano que fala português quando pôs, na boca
de um exaustíssimo Robespierre, que tudo aquilo que se construiu poderia se colapsar num piscar de olhos: "se você tiver razão de que o país realmente precisa de um ditador, então, o país não é uma república, e a democracia é apenas uma ilusão".
"O civilizado não têm uma vida como a de vocês [indígenas]. Ele não sabe o que ele é; ele vive dentro de um mundo que não tem explicação, uma confusão total. Cada um quer viver por si; não é como a sociedade sua em que todos são irmãos, em que tudo entre vocês, cada um quer ajudar o outro. Vocês formam uma grande família. Vocês, de certa maneira, são mais homens do que nós".
Documentário muito bem construído, ainda durante o regime militar. Não conhecia a figura do Raoni. Interessante a "deixada-no-ar" de um possível diálogo entre os povos originários do Xingu e aqueles seus verdadeiros irmãos do Norte.
Curiosa a condição humana, também, que parece não extrair nada de velhas lições - até mesmo daquelas, em que tudo já vem mastigado (no caso aqui ao telespectador). Marlon Brando arremata
com um como "todos pensam que alguém os está ajudando. Mas é simples, na verdade: se não você, quem?".
Hoje, temos um maluco na pasta do meio-ambiente, e a Amazônia - com todos os seus povos, até o "caraíba" na reta - se encontra mais ameaçada do que nunca. 41 anos do alerta, mas seguimos majoritariamente escanteando o tema, pondo em xeque estudos, transformando as discussões em algo periférico, por vezes até rindo daqueles que põe esta causa em primeiro lugar.
Que resgate do clássico do filme do Argento, bixo. Que coisa linda da porra. Num primeiro momento, quando saíram as primeiras informações de um "remake" do "Suspiria", logo imaginei que seria como aquelas versões hollywoodianas pasteurizadas, aquele CTRL C + CTRL V horroroso que a grande indústria estadunidense ama fazer, por vezes. Como fiquei feliz em estar enganado.
funcionaram aqui de um modo quase surpreendente: a Alemanha envolta em turbulências políticas, uma cultura amish e "country" estadunidense cada vez mais periférica, a difícil tarefa - que envolveu boa parte da nação - de recuperar e, mais importante, de confrontar uma memória, verdadeira chaga, que nunca deixará de se fazer presente naqueles que, de um modo ou outro, a atravessaram - e, como não poderia deixar de ser, não sem sequelas - servem de "pano-de-fundo-de-luxo" à já clássica historieta que envolve a Academia de Dança berlinense Tanz.
Alguns comentaram abaixo sobre a duração, mas não vi como empecilho. Esse "Suspiria", em especial, te prende da melhor forma possível; uso o "esse" porque é algo muito distinto do original. Da trilha sonora à estética, do roteiro aos desenrolares, é literalmente uma experiência nova a oferecida aqui. A "construção" é digna de nota, e cada cena apresenta algo literalmente "fantástico" em sua feitura. O jogo de luzes, a contraposição de cenas, a solidão; cada minuto parece se destacar por seus cenários e situações, e terminam por manter uma originalidade que é proposta.
E, o que é essencial, a homenagem tá lá, e vem num clímax que lembra algo não uma citação daqueles mestres que gostamos tanto, mas mais como um novo olhar, um novo texto, construído em cima daquilo que já era muito bom. Fico com a sensação, muito forte, inclusive, de que esse aluno talvez tenha superado o professor em sua matéria.
Remoí muito sobre o que eu queria escrever aqui, sobre o que achei de "Noite Amarela". De verdade. Não por crítica ao filme e seus aspectos e escolhas - mesmo porque o Filmow não é o espaço mais adequado pra isso (até porque nem me acho qualificado para isso - ninguém aqui é, verdade seja dita), muito menos para uma ofensa aos envolvidos na sua produção, em algo tão gratuito e comum hoje nas redes sociais.
Antes, dei um breque porque sabia que acabaria por escrever algo fugindo de um visão sobre o filme em si (coisa de que brincamos, neste site) pra remoer, no fim, sobre uma das características mais intrínsecas e mágicas do consumo do cinema como um todo que, vez ou outra, sempre merece uma pontinha nos artigos, críticas especializadas e demais textos que abordam o universo cinematográfico e que lemos. E que, no fundo, é um puta clichê - e eu odeio clichês. Mas acho que, pela primeira vez na vida, fui aberto a novos "imaginários" e olhares para o espaço, urbano nesse caso, que me cerca. E, bixo, o mérito disso tá muito nesse filme aqui.
Que sensação maravilhosa é você consumir uma produção que aborde a cidade que você conhece tão bem. Uma abordagem que foge por completo da raia comum. Desde aquele entroncamento que sobe em direção ao Catolé, com o Dallas sendo palco de "balbúrdia" e disputa entre as "tribos" da cidade que em tempos campinenses de outrora fora tão comum, e a avenida Brasília - filmada à contramão! Ou mesmo os bancos de pedra no interior do Colégio das Damas, em uma cena no qual só um ex-aluno dali poderia sacar todas as referências - saquei a homenagem a uma certa professora de Geografia ali, quando geral manda tudo se foder hein -, até ao conhecido monumento de Jackson às beiras do Açude Velho.
Vi "Noite" sem pretensão alguma. Como a única sessão legendada daquele palhacinho que dá bilhão no único cinema da nossa querida e amada cidade estava entupida, decidi dar o tiro pro único filme cujo horário era semelhante. Sem ver trailer, sem ler roteiro, adentrando literalmente o escuro. E, pow! Me deparo até com o auditório José Farias, da UFCG, sendo palco para uma palestra e debate sobre "fotografia quântica".
Em suma, já havia lido sobre a "Boca do Lixo" paulistana, sobre o Rio de Janeiro privilegiado da indústria cinematográfica nacional na "era de ouro" nos anos 1950, ou mesmo o Recife recuperado por diretores nordestinos mais recente. Sem comentar sobre, sei lá, a Nova York de Scorsese, a Paris de Godard e Truffaut. Quase que por tabela, entrei em contato com memórias de pessoas que vivem estas e outras cidades e, por verem os filmes (icônicos ou não, bons ou ruins, de grandes ou pequenos espaços e diretores, isso aqui literalmente não interessa) que se rodam ali, criam uma relação mais íntima e profunda com o cinema e, num jogo duplo, também com suas comunidades.
Só agora, só depois de "Noite", é que finalmente posso dizer que descobri essa sensação de um "outro olhar" para aquele espaço, completamente ressignificado, que você habita e que vive diariamente, que lhe estressa e irrita, mas também pelo qual às vezes sente saudade e compartilha daquele sentimento de que "só nós, daqui, é que podemos falar mal!". E que puta sentimento legal esse que, agora, também posso dizer que tenho.
Que decepção: como é triste de ver uma empreitada desta (que honra o chamado legado da HBO de produção, com cenários grandiosos, figurinos fiéis ao que era da nobreza europeia-ocidental à época) dar literalmente um tiro n'água.
Cada episódio parece, literalmente, repetir o outro. A "História" ("real", em que pese todo o problema desse conceito) da Catarina certamente oferece, ainda, bons "causos" para roteiros e demais tentativas de adaptação para filmes, séries e demais mídias. Dito isto, é inacreditável como "Catarina" é literalmente insosso, sem ter um "clinch", clímax ou gancho que seja pra segurar o espectador; parece, antes de tudo, um projeto que de início foi pensado para ser algo de maior fôlego mas que, no meio do caminho, esqueceram que se tratava de um tiro curto de menos de cinco episódios.
Erro bobo, óbvio; como duvido que existam showrunners (e respectivos staffs) tão estúpidos a esse ponto que trabalhem com a marca HBO e com o montante (exorbitante) de dinheiro destinado às suas atividades, só posso presumir - infelizmente mesmo, porque pessoalmente esperava muito mais - como "Catherine" será rapidamente esquecido por não conter absolutamente nada de inovador (em seu contar de história, mesmo aspectos de direção) ou memorável.
Que restauração - das filmagens, sonoras, entrevistas - e construção de filme impressionante. A imersão, às vezes, é quase que total. Sem espaço pra alívios, é o horror real da guerra desfilando em todas as suas dimensões estéticas, visuais e psicológicas por pouco mais de hora e meia - entrecortadas por tiradas interessantíssimas sobre o dia-a-dia das trincheiras e dos (raros) cotidianos fora dela. A
passagem da filmagem no original, com seu ritmo picotado (em que seus "atores" parecem pulando e andando à Chaplin), ao remasterizado - em todas as suas cores e ritmos recuperados -
é das coisas mais lindas possíveis.
"Dizem que quando você está próximo de morrer consegue enxergar seu passado, mas aos 19 anos de idade eu não tinha muito passado; e quando vi as balas chegando, tudo que pensava era: 'vou sair vivo'?".
"A vida nos faz do que somos em um momento inesperado". "A Pele..." me parece um Polanski digno dos seus melhores anos, ali na década de 1960. É surpreendente, na medida em que explora não uma "auto-crítica" do próprio Polanski (como comentado mais abaixo) no meu ver mas, antes, mergulha em vieses de interpretação que, por sua construção, nada mais são do que uma das palavras mais repetidas ao longo da pouca mais de hora e meia daqui: ambiguidade.
É inevitável não assistir o Mathieu Amalric interpretando Thomas e não lembrar o próprio jovem-Polanski: o corte de cabelo, os trejeitos nervosos, até o tamanho! Mas, definitivamente, não é isso que faz disso um filme interessante. Muito mais se esconde aqui, e o cast enxuto em nada prejudica o andamento da proposta: do contrário, acentua e faz estridente a voz polanskiana que, já há um bom tempo, não ousava exclamar algo desse tipo - e, principalmente, dessa maneira. Provocador, "Pele..." faz um jogo muito esperto (e nada sutil) sobre arte, cria um jogo narrativo sobre direção, atuação, expõe os vários significados que podem escorrer de um roteiro - e que dão um bom debate sociológico e antropológico, em que pese a ênfase de Thomas em afirmar o contrário ao conversar com Vanda sobre os rumos de uma boa história.
"Mas essa peça é sexista, eu quero gritar! [...] o livro é sexista: [...] é uma luta de classes, e sexos!"
, explode Vanda com um já acuado Thomas que, agora, já não parece tão seguro no alto de sua arrogância que vemos logo após o "toc toc" inicial - e que aparentava muito bem poder estar no cume, também, daquele "símbolo fálico" presente no palco que, mais tarde, seria transfigurado em um próprio monumento dedicado à Vênus da peça; ambiguidade, afinal, ou ambivalência?
Revi o "RoboCop" ontem. Não poderia acrescentar muita coisa, e a análise do Luís Carlos um pouco mais abaixo é basicamente o que eu diria sobre esse "quase-slasher" com boas pitadas de gore do Verhoeven. Porém, uma coisa ficou martelando na minha cabeça assim que terminei de reassistir: é impressão minha ou tem uma pegada muito forte do "Cavaleiro das Trevas", quadrinho do Batman escrito por Frank Miller em 1986, na estilística e roteiro deste "RoboCop"?
A mídia e a exploração de sua programação jornalística em certos momentos pontuais, a programação da tevê - com boas doses de mulheres seminuas e sujeitos nem tão engraçados assim - que anestesia todos aqueles que a assistem, a visão de uma grande cidade estadunidense - aqui Detroit, com sonhos de uma literal nova cidade que corte cirurgicamente a parte pobre/perigosa desta nova projeção citadina, no "Batman" milleriano a Gotham que simula NY - entupida na violência urbana que, pelo fato de uma força institucional distante (as grandes corporações no "RoboCop", a desilução da GCPD no "Cavaleiro..."), assiste a ascensão de um verdadeiro Estado paralelo em todas as zonas citadinas, por exemplo, me pareceram muito semelhantes da perspectiva da Gotham-de-um-futuro-nem-tão-distante do Frank nos quadrinhos.
... o (ainda) assustador é: e quantos senhores Demjanjuk não existem por aí? Sujeitos que, acobertados pelo Estado (seja aquele de sua origem, seja aquele adotado como seu "Novo Mundo"), tiveram participação criminosa num conflito e usufruem de um confortável anonimato? Pensando mais no pé-no-chão e na nossa realidade: quantos sujeitos colaboraram com as longas ditaduras que assolaram todo Ocidente (Alemanha e Itália lá atrás, Brasil, Chile e Argentina mais recentemente na nossa América) ao longo de todo o XX e hoje estão livres e aproveitando sua vida confortavelmente - e por vezes nem escondidos - nas nossas cidades, bairros e ruas? Quantas memórias - e histórias - acabaremos perdendo ainda, destes tempos nada distantes de exceção e violência terrorista das instituições que deveriam proteger seus cidadãos? E, o principal: quanta justiça ainda há de não ser feita?
Que história inspiradora. Acho que "inspirador" é o que move todo o documental. Um sem-teto, "homeless-person" como repetido à exaustão por um dos primeiros entrevistados, que carrega toda a aura de um cronista musical, um cara que canta o que vê e sente ao seu redor. A Detroit deprimente, quebrada desde a crise de 1929, sem as grandes indústrias, distante e seca.
Mas que, mesmo assim, canta também esperança. Um estadunidense com todas as marcas de um "latin", hispânico mesmo, que cantando a sua Detroit inspirou a rebeldia e contra-cultura afrikânder do auge do Apartheid, perguntando o número de suas transas e a distância de amigos, versando sobre drogas e insurreição.
E que hombridade por se manter, mesmo sabendo das injustiças que o cercam bem como daqueles que até hoje, imagino, simplesmente o devem um puta dinheiro. Infelizmente demorei muito pra ver o "Searching...", mas felizmente finalmente o vi. E não podia ser uma experiência melhor.
É esquisito. Quando saíram as primeiras informações do "Other Side", me animei na expectativa do que poderia vir - como fã de Orson Welles e, acima de tudo, como apreciador de cinema; ora, mesmo que você não seja fã do sacaninha que pregou uma baita pegadinha pelo rádio estadunidense nos 1940, não dá pra negar sua importância cultural: o legado wellesiano no cinema , impactou não apenas Hollywood da primeira metade do século XX, mas mesmo as produções de nossos dias; revolucionário, sua utilização do rádio e da comunicação de massa, também, é mesmo uma aula ainda hoje sobre a difusão e alcance daquilo que é passado e, mais importante, do como é transmitido, por exemplo.
Dito isso, não esperava nada muito "sofisticado". Sabia que isso aqui não seria algo como o "Eyes Wide Shut" do Stanley Kubrick que, lançado em 1999 sem passar pelo crivo final do diretor, foi levado às telonas com aquela marca do "vejam a última obra do grande diretor do século XX!" - mas que, por sua vez, já se encontrava de fato em uma reta final de produção, sendo uma obra quase "no prelo" que, infelizmente (e por ocasião do destino que fulminou o coração do grande gênio), saiu sem o carimbo do autor. "Other...", aqui trazido pela Netflix, nada mais é do que um grande esboço, um sketchbook de desenhistas daqueles que encontramos muitas vezes em edições de luxo das nossas revistas favoritas, ou mesmo uma versão demo, uma primeira gravação de estúdio, daquela música que gostamos tanto. Projeto que bateu, voltou, foi trabalhado, retrabalhado e, ao fim, não finalizado (para, na primeira década do século XXI, ser recuperado por um serviço inovador de consumo de tv/cinema que o levou, por streaming, a todos os seus assinantes. Que tempos).
É tudo muito primal, parece até estágio inicial mesmo. Não há, como no "Eyes..." kubrickiano, um segmento, um fio narrativo de "direção". Oxalá fosse como o filme do casal do momento do fim dos anos 90. É quase uma bagunça, pra falarmos a verdade; e, conhecendo a filmografia wellesiana, podemos quase asseverar que isso não seria nunca a versão final. Muito longe disso, diga-se.
Portanto, pra mim - um simples fã de cinema, longe de ser um estudante/estudioso profundo da arte e sem legitimidade alguma no "campo" - "Other..." funciona como um grande prefácio daquilo que nunca veremos em sua forma final. A melhor maneira de abordar (e pensar) esse último passo do Welles seria, por conseguinte, analisando suas ideias e propostas que, pinçadas com tremendo esforço, nos são oferecidas nesta versão que saiu à luz.
Mais especificamente: me atrai, no roteiro, ver como um diretor experiente lidou com as transformações que atravessavam o "grande cinema" estadunidense na década de 1970: as influências das filmagens europeias, a sensação de deslocamento na "metodologia" em meio a onda de novidades que vinha arrastando tudo, até uma marginalização que, como uma novidade, atingia os agora "dinossauros" das câmeras que tiveram grande sucesso outrora e agora se viam em posição diferente na hierarquia que agora se apresentava no novo cenário dos diretores hollywoodianos. Mesmo na reta de caos que é o "Other" me parece que esse é um registro pessoal demais do Welles. Sua leitura do cinema àquele momento. É uma pena, reafirmo, que os cacos juntados não sirvam pra cobrir - em parte minimamente aceitável - o que seria o produto final; por outro lado, é divertido ver a produção de um dos grandes caras da arte em estágio tão "seco", tão inicial, e que dá àqueles que não são do campo uma perspectiva totalmente diferente de como se vai dando uma edição, decupagem e construção de um filme.
Enfim, é uma aventura cinematográfica. E daquelas bem esquisitas mesmo.
"Como eu gosto de lembrar, ao invés de viver". Um onirismo, de duas horas fechadas; mas como isso parece ser basicamente um clichê pra qualquer produção que carregue o nome de Federico Fellini na direção, podemos ir um pouco mais além no "A Voz da Lua".
A pluralidade de vozes, situações, cenários e personagens marcam definitivamente a "Voz", e algumas cenas certamente alcançam aquele "quê" de mágico e belo pela sua condução e, principalmente, apresentação. Por exemplo, em uma casa típica daquilo que alguns ainda insistem em classificar como pertencentes de uma certa classe "burguesa" - nesta cena vemos um piano encostado à parede, na nossa direita, enquanto à nossa frente está uma mesinha redonda de duas cadeiras, com café, partitura, cigarro e luminária a ocupando, enquanto ao fundo apenas observamos a parte de uma cozinha; não menos importante, evidentemente, um relógio de parede de estilo cuco clássico, amadeirado, está presente na sala -, um senhor pratica no seu clarinete uma peça musical que, em sua leitura, é amaldiçoada; a sequência diabolus, como a diz a todos aqueles que insistem em ouvi-lo, quando invocada musicalmente faria móveis se mexerem. Ora, o armário (grande e robusto, entupido de quinquilharias) é o primeiro a arrarstar-se; "sou um lunático, um vidente?", questiona-se ainda atônito logo após a sua prática musical.
Esse auto-questionamento parece, antes, ser o leitmotiv que move essa "Voz" felliniana. O próprio absurdo desta cena em específico, com o móvel movendo-se, parece bobeira ao atentarmos a como seu enunciador encontra-se dormindo em um cemitério (!) e a relata a pouco mais de três pessoas que, por motivos diferentes, também encontram-se ali (!). "Mas nada é verdade [...]; é apenas uma ficção, pura representação", como chega a comentar um personagem um tanto misterioso, "gordo", "nervoso" e de duras expressões faciais - e que "se recusa até ao diálogo" - conforme letras frias certamente assinadas por observadores terceiros.
A mim, salvo a grande direção em algumas cenas e a boa-sacada do Fellini à condução de algumas temáticas (tão díspares mas, né, estamos numa narrativa que beira o quase alucinatório) que, pelos próprios rumos e ideia da "Voz" veem, para si, as portas abertas para serem abordadas, me parece uma empreitada, antes, mal "armada". Não que o filme seja ruim, ou mal-feito (quem somos nós para criticar qualquer produção aqui, afinal?), muito longe disso mas, em alguns momentos, a "Voz" felliniana, que perpassa situações escabrosas das mais diversas, indo de questões matrimoniais (em que algumas esposas são quase uma locomotiva no que se refere ao sexo) às políticas ("não somos uma nação de idiotas?" parece ser o questionamento italiano desde, vejamos, sempre?), parece se perder na condução das situações. Ou, no fim, por que não, essa pode também ter sido a intenção ao cabo da coisa.
Último destaque: o maravilhoso desfecho final, em que um Ivo,
com pretensões de Pinóquio na personalidade, conforme visto, chega a um poço muito semelhante àquele da cena inicial e desfere uma das frases mais lindas que já me lembro de ter visto em qualquer mídia:
"acho que se você mantiver um pouco de silêncio, se todos guardássemos um pouco de silêncio, poderíamos compreender qualquer coisa". Um pontinho brilhante (como alguns outros, conforme visto nos comentários abaixo também) no grande emaranhado de situações plurais que perpassam a singular, e última, "Voz" felliniana.
Uma narrativa creio que quase inédita à época no cinema (em que pese já uma enxurrada de abordagens da mesma principalmente em outras artes, como a literatura e o teatro - como não lembrar de Dostoiévski que, já na metade do século anterior, abordava tais situações?) e que sobreveria ao chamado "desafio do tempo", tornando-se atemporal: no fim das contas, "Breaking Point" me surpreende como, em meios da década de 1950, levou às grandes telas a história do anti-herói que, provavelmente, deveria ser o tipo mais comum na sociedade americana após duas guerras de escala mundial e uma outra de intervenção violenta no Pacífico nesta mesma década: aquela do homem de fortes convicções morais que, pelos apuros financeiros não-raros na chamada "década de ressurgimento" do "American way-of-life", vê nos
trabalhos ilegais e criminosos o meio de sustentar sua família, "clássica" aqui - de uma Lucy dona-de-casa (e até submissa, ao menos no início) e das duas filhinhas -
em uma zona portuária e costeira dos EUA.
"Vocês são todos iguais, falam sobre sua grande honestidade; afastam-se quando veem gente como eu. Mas quando estão em apuros, são como todos os outros: aves de rapina", é o que diz o picareta Duncan ao amigo e personagem principal Harry Morgan; afinal, o "pai legal", como chega a se auto-intitular, se encontra no emaranhado das dívidas e na não-saída da situação financeira: em que pese os planos da esposa de irem ao campo e tornarem-se agricultores, na propriedade do sogro, a única atividade que o grande bastião da moral e herói de guerra de "Breaking" sabe cumprir é a de navegar um barco. E, vejam que situação: nem ao menos o seu Sea Queen é adquirido; antes, alugado, é usado para a pesca (atividade nada rentável,como podemos observar) em águas próximas.
Um amplo leque de questões é aberto aqui, também: afinal, até onde se vale ir por dinheiro? É justo arrastar aqueles que o prezam neste caminho? E, pra mim, o grande ponto do fim: como se dá este caminho escolhido? Curioso: "Breaking Point", ao final, parece aquele primo mais velho e legal, mas meio desconhecido, que todos nós temos, em contraposição àquele mais famoso: a similaridade com "Taxi Driver" do Scorsese que, pouco mais de vinte anos depois, levantaria a bola de maneira magnífica para tais questões, também merece ser levada em conta - e que ressalta, evidentemente, a qualidade e importância dessa empreitada do Michael Curtiz.
Algumas cenas espetaculares, que merecem ao menos citação rápida: a
rápida estadia no México (estereotipado, de mariachis caricatos), no qual conhecemos melhor aquela personagem feminina completamente oposta a Lucy; Leona, quase que "femme-fatale" pelo seu poder de cativar o espectador, ao mesmo tempo em que o deixa em suspeita quanto às suas ações e convicções (qual o fim do seu "noivo", afinal? Como consegue manter um apartamento tão espaçoso e elegante? Em suma, quais suas atividades?).
Atuação destacadíssima da Patricia Neal, nesse quesito. Outra passagem maravilhosa: aquela sequência na qual
Lucy, ao buscar ajudar na casa, arruma trabalho na fábrica e acaba por levar seu ofício ao lar; todo o estresse de Morgan, virado do avesso já nestes idos do filme (lembremos da grosseria com a Sra. Cooley e da ida ao bar em horário "não-convencional" para si, sem conseguir dormir, a longa noite em claro da boa-esposa que, como vimos no fim do filme, não tem absolutamente nada de submissa: pensa, antes de tudo, no bem-estar da família e das filhas; não aceita o marido envolvido em situações ilegais e, em que pese já conhecer a decadência deste, ainda se prostra ao seu lado e tenta, na medida do possível, ajudá-lo não nas suas atividades ilegais, mas em manter antes a estabilidade sua e das crianças.
E é inevitável não remetermos ao grandioso corte final: Morgan,
agora redimido por ter enfrentado mafiosos perigosíssimos e que deve ter sido recebido como herói para a amputação, e a desolação do filho de seu bom companheiro, Wesley, agora isolado, aparte, no deck portuário.
Sem consolo, sem apoio, sem os amiguinhos da mesma idade, sem a orientação mesmo que mínima de um adulto; em suma, isolado e "sem beijo de namorada" como diria Cazuza, a criança negra parece ser o único a sentir a falta daquele que, em "Breaking Point", é o único prostrado de fato em suas firmes (e boas) convicções. Final maravilhoso, forte, de várias interpretações, recepções e leituras possíveis.
Surpreendente, no mínimo. "Às vezes ele encontra um dia de felicidade [...]. Outras imagens se apresentam, se misturam, no museu que talvez seja o da sua memória".
O formato de montagem da narrativa do(s) filme(s)/fotografia(s), que parecem literalmente uma história em quadrinhos no qual as páginas folheiam-se por si, ao espectador; o roteiro, que não deixa nada a dever às obras de sci-fi que estouravam, desde os anos 1940, no mundo ocidental e que atraíam um público cada vez mais amplo em diversas mídias. A sensibilidade ao falar da memória e de suas permanências, mas também dos seus desafogos e buracos que se fazem presente em seu caminho construído. O figurino dos atores que, apesar de tão simples, passam uma sensação de "futuro-mas-não-tão-distante", que chega a encucar - e aterrorizar - quem assiste; a maestria de Chris Marker que, em um projeto tão ousado, faz cada "cena" ser realçada aos olhos, convidando cada um a montar as sequências que permeiam os espaços em branco dos quadrinhos deste pequeno-grandiosíssimo gibi de quase meia hora, e que constrói um "futuro" aterrorizante a partir de locais como a esquina de um grande centro urbano qualquer ou a pista de um aeroporto que, certamente, não precisa ser nominado.
O medo, tão latente principalmente na década de 1960, de um conflito mundial que, imbuído de um potencial nuclear altamente destrutivo a nível planetário, levou as discussões então restritas aos livros de ficção-científica e suas zines consumidas então por um nicho muito específico de leitores à ordem do dia de intelectuais e pensadores, grandes setores da mídia e mais espaços das demais "artes".
Tremenda distopia, e das mais tocantes, o tal do "La Jetée".
ver a cena do estadunidense pela casa, vasculhando em busca dos moradores de Bacurau, e no qual um letreiro televisivo grita ao seu telespectador - e consequentemente a nós - sobre a execução pública de alguns condenados no Vale do Anhangabaú, São Paulo,
e não lembrar de um certo governador do "Brasil do Sul" que, há pouco mais de dez dias atrás, vibrou pateticamente sobre tal ação semelhante em sua cidade.
Vou fazer o tipo de comentário que mais odeio fazer no Filmow: aquele no seco, após sair de uma sessão no cinema. Primeiro, já pôr que, nessas situações, nunca consigo separar ainda uma cena ou trecho em específico do filme para comentar - como geralmente vinha fazendo aqui. No mais, "Era uma vez em... Hollywood" é realmente uma homenagem ao que é e, principalmente, o que foi Hollywood da década de 1970 pra trás. A homenagem aos grandes astros, a referência aos despontantes diretores e aqueles que, europeus, ainda eram enxergados - como tudo que é estrangeiro aos estadunidenses - inferiores estão presentes. Todo o cotidiano (de uma classe rica e estelar em sua maioria, afinal, mas sustentada por uma verdadeira nação nada glamourosa por trás) e as perturbações da profissão, com uma tremenda concorrência entre atores já famosos e mesmo aqueles que insistem em ver-se como num degrau abaixo às estrelas, também são bem focados aqui. Ponto negativo, infelizmente, é o mal-aproveitamento de uma enxurrada de personagens e situações que só dão as caras uma única vez pra nunca mais, apesar de marcarem por suas participações e situações.
Mas não sou fã de Tarantino: pra mim, o grande filme do homem é o "Django" (e ainda será). Mas "Era uma vez" opta por um viés diferente do que a filmografia do Quentin vinha rumando e, mesmo pra quem não acompanha tão a fundo demais obras do diretor, isso fica explícito. Ecos de "Bastardos" e do "Pulp", que não colocarei mais detalhado aqui, são sentidos principalmente no roteiro e, curiosamente, não tanto na condução das cenas, naquele velho ritmo que deu fama ainda nos 1990 ao Tarantino.
Porque "Era uma vez", pra mim, é o filme mais não-Tarantino do Tarantino. E porra, o sujeito conseguiu algo inacreditável, e inédito pelo menos pra mim, com aquele final:
é o "felizes para sempre", o "final feliz", mais melancólico e triste que me recordo de ter visto, quando paramos para pensar no que foi de fato aquela noite à Tate e aos LaBianca.
E isso - ou essa sensação, não sei ao certo - foi, de fato, o mais marcante de "Era".
Escreve a romancista francesa Marguerite Yourcenar no curto artigo "Para onde vai a alma dos animais?", escrito em 1981 e presente no livro "O tempo, esse grande escultor":
"Narra um conto das Mil e Uma Noites que a Terra e os animais tremeram no dia em que Deus criou o homem. Esta visão admirável de poeta adquire um significado total para nós, que sabemos, bem melhor que o contista árabe da Idade Média, quanto a Terra e os animais tinham razão em tremer. [...] O cavalo, para um parisiense, não passa desse animal mitológico, dopado e arrastado além de suas forças, que nos faz ganhar algum dinheiro quando acertamos no páreo de um 'grande prêmio'. Exposta em fatias cuidadosamente envoltas em papel celofane num supermercado, ou conservada em latas, a carne [de cavalo] deixa de ser sentida como tendo sido a de um animal vivo. Ousamos mesmo dizer que nossos açougues, onde pendem de ganchos quartos de animais que mal se acabaram de abater, de aspecto tão atroz para quem não está acostumado a isso a ponto de certos amigos meus, estrangeiros, mudarem de calçada em Paris, quando os percebem de longe, talvez até sejam um bem, na medida em que testemunham a violência que o homem inflige aos animais".
Vi o curta do Gaspar Noé, em certeza, tem mais de ano; li esse textinho ontem. Impossível não se remeter ao universo cruento e, porque não, "realístico" (com todas as aspas e cautela inclusos ao termo) trazido em "Carne" por seu diretor.
Curioso: uma das poucas vezes que me lembro de ter visto uma direção tão boa para um script tão... fraco.
Jordan Peele fez das tripas coração para produzir o "Us" com 20 milhões de dólares. Fotografia, tomadas, a trilha sonora, os atores. Do belo início oitentista, com suas mega-arrecadações filantrópicas (e quase que utópicas) e suas sequentes propagandas cool circulantes na tevê que prometiam erradicar a fome de um país ou continente, passando à moda dominante da época nos EUA, passando pelos belos cortes de cena ambiente que cercam a ainda criança Adelaide naquela que devia ser uma noite divertida num parque quase à beira-mar em Santa Cruz. Até ao "hoje", em que conhecemos a casa de campo na beira de um lago, um ambiente bucólico e que, evidentemente, é cercado por aquela arquitetura contemporânea que domina nosso dia a dia, "pastosa", por exemplo.
Não pensei direito pra escrever esse comentário porque o filme ainda tá bem fresco na cabeça, e mesmo por isso nem aprofundarei alguma cena em específico ou algo do tipo como costumeiramente faço. O que garanto é que o trabalho do Peele, e creio que quem assistiu irá concordar (e pra você que vai assistir, é algo pra encarar sem medo), é correto. Super justo. O produto entregue ao consumidor extrapola aquilo que os mais incautos poderiam pensar por causa do orçamento. "Us" é bonito, não é cansativo, prende o espectador como poucos filmes de terror/suspense de hoje com sua trilha - excepcional, diga-se -. Muitas vezes "eletriza", nos pega incauto, soca um "Good Vibrations" dos Beach Boys numa cena espetacular ao mesmo tempo em que surpreende com uma comédia em um momento inesperado - e que traz uma leveza até naqueles momentos impensáveis para tal manobra, arriscada, mas que já víamos em "Get Out".
"Nenhuma mulher realmente ama um cara que ouve Phil Collins"
é o único erro - gigantesco, por sinal - de Brendan em 106 minutos de um filme que cheira água com açúcar e beira no meio-fio do clichê, mas que nem por isso deixa de ser divertido e, por que não, inspirador nos momentos certos.
A trilha sonora é muito divertida, e juro por Deus que quando terminei o filme vim visitar o Filmow e, de relance, li que o Patrick Carney (Black Keys) fosse o diretor. Menos um mico na vida, afinal; já tava com um comentário engatilhado sobre como o cara supostamente se inspirou em alguns estilos que não aproveita em nada na "outra" vida profissional.
Todo o cenário da espionagem e do terrorismo - quase co-irmãos em sua fase de maturidade ali nos 1970 e 80 - trabalhado de maneira excepcional. Dos medos e das utopias de jovens revolucionários "pequeno-burgueses" da América Latina na Europa ao trabalho sujo, meticuloso e por vezes irresponsável, que não exita em transformar sua crença em antigos inimigos que agora alçam o posto de estandarte na linha de frente contra os "imperialistas" estadunidenses e suas longas raias na Europa, Oriente Médio e África.
"Carlos" tem, disparado, a melhor "reconstituição" da década de 1970 e 1980 que já vi; é absurdo o quão os atores e atrizes tem seus trejeitos, cabelos, sotaques e maneirismos quase que naturais destas duas décadas. Tento me lembrar de alguma produção semelhante, mas agora realmente não me vêm à mente alguma que seja tão fiel quanto aqui. Como já dito um pouco mais abaixo, o Edgar Ramírez está um monstro atuando como o Chacal: além da passagem dos anos, dos quilinhos a mais e dos cavanhaques retirados aos cortes de cabelo adotado,
vemos um Carlos temeroso de suas atitudes no início, totalmente em contraposição ao experiente e consolidado "agente" de décadas depois
, e Ramírez acompanha - com sua atuação magistral em certas cenas - tais transformações que marcaram a vida de seu personagem. Lembremos, à título de exemplo, do Carlos lidando com os franceses para, logo em seguida, agir como agiu na Europa Central.
Por sinal, a fase inicial na Europa é magistral. De sua primeira atividade, quase malfadada
- afinal nosso Illich, em sua primeira missão, está claramente nervoso a ponto de passar por cima da possibilidade de vasculhar a casa do milionário "sionista", além de parar seu carro literalmente em frente ao local de operação, o que o faz quase ser pego -
, até à cena espetacular do apartamento tive uma experiência de suspense que não tinha há muito tempo ao assistir algo.
É ultra-recomendado, verdadeira obra-prima. E uma baita surpresa, pois o vi quase ao acaso. Feliz que, para mim, tal destino tenha sido de bons-ventos. ;)
Documentário super conciso. A produção ressalta, da maneira como é construída, muito do levantamento documental e das fontes por parte da equipe técnica responsável. Da entrevista ao crítico literário alemão na TV, da década de 1960, ao recorte dos trechos do diário que tratam mais à fundo quando da estadia em Hamburgo, bem como o link com a memória - tanto daqueles que foram ajudados pessoalmente quanto àqueles que, de um modo ou outro, guardaram os documentos ou mesmo as lembranças de pais ou familiares ajudados por Guimarães e Aracy, mesmo com
a leitura dos documentos secretos do Reich, que já viam com um olho pregado nas atividades e comentários anti-nazistas do literato,
tudo é otimamente construído.
É um espetáculo sobre uma faceta, pra mim, desconhecida do Guimarães Rosa - sabia de sua passagem enquanto diplomata, mas nunca saberia dessas suas atividades, de seus posicionamentos e das ajudas prestadas em Hamburgo. Só mostra como muita coisa ainda relacionada à História brasileira - e de seus naturais - ainda tem a ser estudada, mesmo descoberta, e exposta.
Star Wars, Episódio IX: A Ascensão Skywalker
3.2 1,3K Assista AgoraAcho que nem tem muito o que se falar. É o filme mais preguiçoso de Star Wars já produzido.
Cenas curtas entupidas de personagens secundários em cima de cenas curtas entupidas de personagens secundários, sem um fio narrativo pra guiar o espectador por cerca de 140 minutos e que prefere, antes, prende-lo por uma ação (ruim) ininterrupta.
Impressionante como nem um filme bom de ação/aventura, o marcante da trilogia original de SW, conseguiram fazer. As cenas de ação não empolgam em sua grande maioria
- sendo, pra mim, a exceção a cena das batalhas aéreas de Poe já ao fim -
Mesmo o roteiro parece ter sido feito às pressas. A construção narrativa é inexistente, com fatos novos sendo adicionados a outros fatos novos seguidamente (e sem explicação anterior alguma!), e não existe nem uma "solidificação" da história narrada: simplesmente não há tempo para pensar, porque a escalonada que o filme entrega assusta até aqueles que já curtiam o universo Star Wars.
É assustador parar pra pensar que não se precisaria nem de nada muito elaborado pra fazer um bom filme: à exemplo do VII, que chupa inteiramente o roteiro do IV - e que, convenhamos, roteiro nunca foi o forte dos filmes de SW em geral, até diferentemente das outras obras produzidas em mídias diferentes sobre esse universo -, ou mesmo do VIII, que decide seguir por uma história minimamente original - que seja aceitável ou não como produto final é outra questão -, e que acabam por entregar pelo menos um mínimo aceitável de narrativa, a "Ascensão Skywalker" é incrivelmente um filme sem história alguma.
O
"inexplicavelmente, Palpatine sobreviveu" (que no original creio que seja "somehow, Palpatine lives")
Os Renegados
4.1 86 Assista Agora"Por mais mesquinha que seja sua vida, aceite-a e viva-a; não se esquive a ela nem a trate com termos duros. Ela não é tão ruim quanto você. Ela parece tanto mais pobre quanto mais rico você é. Quem vê defeito em tudo verá defeitos até no paraíso. Ame sua vida, por pobre que seja. Talvez você possa ter algumas horas agradáveis, emocionantes, gloriosas, mesmo num asilo de pobres. O poente se reflete nas janelas do albergue de mendigos com o mesmo fulgor com que brilha na morada dos ricos; a neve se dissolve em ambas as portas na mesma época da primavera.
Não vejo por que um espírito sereno não possa viver com o mesmo contentamento e com pensamentos alegres num asilo ou num palácio. Muitas vezes me parece que os pobres da cidade são o que vivem a vida mais independente de todas".
Salvo ressalvas, esta passagem do Walden, escrito pelo Henry David Thoreau em 1854, me parece um daqueles casamentos perfeitos com o que vemos em uma obra de uma mídia completamente distinta, a nível de recorte temporal, temática e veículo, com aquela outra a qual decidimos comparar.
Não sei se a Agnès Varda chegou a ler Thoreau - e, no fim, isso não importa em absolutamente nada -, mas me foi dificílimo não assistir a jornada de Mona e associá-la (em partes, verdade) com a do estadunidense que, cem anos antes, decidiu dar um basta naquilo que chamava de "vida civilizada" na sua América do Norte oitocentista.
Ao fim, ambas as jornadas, cada qual no seu ritmo, estilo e meio, que acabam por movimentar várias questões sobre o mundo em que vivemos e, principalmente, a sociedade que nos cerca - em todos os seus aspectos e particularidades, tão díspares e, às vezes, completamente inesperados.
Ambas as obras, também, fantásticas no seu story-telling.
Danton: O Processo da Revolução
3.8 73A Revolução de 1789 - ou, mais especificamente, o estabelecimento de suas bases legais no decorrer do chamado processo, tão distantes dos ideais "libertários" memorizados e repetidos a esmo, tal como vemos com o irmão da governanta de Robespierre - sem romantização alguma.
Wajda, malandramente, se utiliza das histórias iniciadas no 1789 em diante para fazer sua nem tão sutil crítica ao cenário político do Leste Europeu neste momento: em entrevista ao Le Matin, o diretor polonês chegou a dizer que "Robespierre é o mundo do Leste, Danton é o mundo ocidental. [...] A atitude e os argumentos [de Danton] estão muito próximos de nós. O choque entre esses dois homens é exatamente o momento pelo qual estamos passando hoje".
Era a conjuntura de crise do chamado "socialismo real" europeu, e Wajda, fervoroso apoiador do "Solidariedade" polonês, quis passar seu olhar traçando paralelos entre estes dois recortes históricos. Aquele de fins do setecentos, em que uma revolução inicialmente popular descambou para o terror; este, de fins do século XX, com sua narrativa do legado socialista.
Acusações e farpas dos dois lados não poderiam faltar, afinal. Sobre "Danton", o historiador estadunidense Robert Darnton escreve que algumas escolhas do polonês para o filme "chocaram os críticos não por causa de sua imprecisão, mas por darem aos líderes da Revolução um ar mais familiar e menos heroico do que as figuras dos livros de história. [...] O retrato de um Robespierre gélido, neurótico, desumano, de Wojciech Pszoniak, era particularmente ofensivo, pois Robespierre era a pedra de toque da ortodoxia nas interpretações da Revolução. Igualmente importante, ele era o modelo do intelectual moderno. Personificava o [...] teórico que virou homem de ação", que estabelecia linhas partidaristas e se lia como um estrategista das "massas".
Um filme, recepcionado (e lido) de maneiras completamente diferentes. Como a própria História, no fim das contas.
Exemplo disso? Certeza que Wajda não pensou a situação política de um certo país sul-americano que fala português quando pôs, na boca
de um exaustíssimo Robespierre, que tudo aquilo que se construiu poderia se colapsar num piscar de olhos: "se você tiver razão de que o país realmente precisa de um ditador, então, o país não é uma república, e a democracia é apenas uma ilusão".
Raoni
3.5 4 Assista Agora"O civilizado não têm uma vida como a de vocês [indígenas]. Ele não sabe o que ele é; ele vive dentro de um mundo que não tem explicação, uma confusão total. Cada um quer viver por si; não é como a sociedade sua em que todos são irmãos, em que tudo entre vocês, cada um quer ajudar o outro. Vocês formam uma grande família.
Vocês, de certa maneira, são mais homens do que nós".
Documentário muito bem construído, ainda durante o regime militar. Não conhecia a figura do Raoni. Interessante a "deixada-no-ar" de um possível diálogo entre os povos originários do Xingu e aqueles seus verdadeiros irmãos do Norte.
Curiosa a condição humana, também, que parece não extrair nada de velhas lições - até mesmo daquelas, em que tudo já vem mastigado (no caso aqui ao telespectador). Marlon Brando arremata
com um como "todos pensam que alguém os está ajudando. Mas é simples, na verdade: se não você, quem?".
Hoje, temos um maluco na pasta do meio-ambiente, e a Amazônia - com todos os seus povos, até o "caraíba" na reta - se encontra mais ameaçada do que nunca.
41 anos do alerta, mas seguimos majoritariamente escanteando o tema, pondo em xeque estudos, transformando as discussões em algo periférico, por vezes até rindo daqueles que põe esta causa em primeiro lugar.
Suspíria: A Dança do Medo
3.7 1,2K Assista Agora"Movimento nunca é mudo; é uma linguagem. É uma série de formas enérgicas escritas no ar, como palavras formando sentenças.
Como poemas. Como orações.
Feitiços?"
Que resgate do clássico do filme do Argento, bixo. Que coisa linda da porra.
Num primeiro momento, quando saíram as primeiras informações de um "remake" do "Suspiria", logo imaginei que seria como aquelas versões hollywoodianas pasteurizadas, aquele CTRL C + CTRL V horroroso que a grande indústria estadunidense ama fazer, por vezes.
Como fiquei feliz em estar enganado.
As próprias
adições à nível de roteiro
Alguns comentaram abaixo sobre a duração, mas não vi como empecilho. Esse "Suspiria", em especial, te prende da melhor forma possível; uso o "esse" porque é algo muito distinto do original. Da trilha sonora à estética, do roteiro aos desenrolares, é literalmente uma experiência nova a oferecida aqui.
A "construção" é digna de nota, e cada cena apresenta algo literalmente "fantástico" em sua feitura. O jogo de luzes, a contraposição de cenas, a solidão; cada minuto parece se destacar por seus cenários e situações, e terminam por manter uma originalidade que é proposta.
E, o que é essencial, a homenagem tá lá, e vem num clímax que lembra algo não uma citação daqueles mestres que gostamos tanto, mas mais como um novo olhar, um novo texto, construído em cima daquilo que já era muito bom.
Fico com a sensação, muito forte, inclusive, de que esse aluno talvez tenha superado o professor em sua matéria.
A Noite Amarela
2.7 51Remoí muito sobre o que eu queria escrever aqui, sobre o que achei de "Noite Amarela". De verdade.
Não por crítica ao filme e seus aspectos e escolhas - mesmo porque o Filmow não é o espaço mais adequado pra isso (até porque nem me acho qualificado para isso - ninguém aqui é, verdade seja dita), muito menos para uma ofensa aos envolvidos na sua produção, em algo tão gratuito e comum hoje nas redes sociais.
Antes, dei um breque porque sabia que acabaria por escrever algo fugindo de um visão sobre o filme em si (coisa de que brincamos, neste site) pra remoer, no fim, sobre uma das características mais intrínsecas e mágicas do consumo do cinema como um todo que, vez ou outra, sempre merece uma pontinha nos artigos, críticas especializadas e demais textos que abordam o universo cinematográfico e que lemos.
E que, no fundo, é um puta clichê - e eu odeio clichês. Mas acho que, pela primeira vez na vida, fui aberto a novos "imaginários" e olhares para o espaço, urbano nesse caso, que me cerca. E, bixo, o mérito disso tá muito nesse filme aqui.
Que sensação maravilhosa é você consumir uma produção que aborde a cidade que você conhece tão bem. Uma abordagem que foge por completo da raia comum.
Desde aquele entroncamento que sobe em direção ao Catolé, com o Dallas sendo palco de "balbúrdia" e disputa entre as "tribos" da cidade que em tempos campinenses de outrora fora tão comum, e a avenida Brasília - filmada à contramão!
Ou mesmo os bancos de pedra no interior do Colégio das Damas, em uma cena no qual só um ex-aluno dali poderia sacar todas as referências - saquei a homenagem a uma certa professora de Geografia ali, quando geral manda tudo se foder hein -, até ao conhecido monumento de Jackson às beiras do Açude Velho.
Vi "Noite" sem pretensão alguma. Como a única sessão legendada daquele palhacinho que dá bilhão no único cinema da nossa querida e amada cidade estava entupida, decidi dar o tiro pro único filme cujo horário era semelhante. Sem ver trailer, sem ler roteiro, adentrando literalmente o escuro.
E, pow! Me deparo até com o auditório José Farias, da UFCG, sendo palco para uma palestra e debate sobre "fotografia quântica".
Em suma, já havia lido sobre a "Boca do Lixo" paulistana, sobre o Rio de Janeiro privilegiado da indústria cinematográfica nacional na "era de ouro" nos anos 1950, ou mesmo o Recife recuperado por diretores nordestinos mais recente. Sem comentar sobre, sei lá, a Nova York de Scorsese, a Paris de Godard e Truffaut.
Quase que por tabela, entrei em contato com memórias de pessoas que vivem estas e outras cidades e, por verem os filmes (icônicos ou não, bons ou ruins, de grandes ou pequenos espaços e diretores, isso aqui literalmente não interessa) que se rodam ali, criam uma relação mais íntima e profunda com o cinema e, num jogo duplo, também com suas comunidades.
Só agora, só depois de "Noite", é que finalmente posso dizer que descobri essa sensação de um "outro olhar" para aquele espaço, completamente ressignificado, que você habita e que vive diariamente, que lhe estressa e irrita, mas também pelo qual às vezes sente saudade e compartilha daquele sentimento de que "só nós, daqui, é que podemos falar mal!".
E que puta sentimento legal esse que, agora, também posso dizer que tenho.
Catarina, A Grande
3.2 17 Assista AgoraQue decepção: como é triste de ver uma empreitada desta (que honra o chamado legado da HBO de produção, com cenários grandiosos, figurinos fiéis ao que era da nobreza europeia-ocidental à época) dar literalmente um tiro n'água.
Cada episódio parece, literalmente, repetir o outro. A "História" ("real", em que pese todo o problema desse conceito) da Catarina certamente oferece, ainda, bons "causos" para roteiros e demais tentativas de adaptação para filmes, séries e demais mídias.
Dito isto, é inacreditável como "Catarina" é literalmente insosso, sem ter um "clinch", clímax ou gancho que seja pra segurar o espectador; parece, antes de tudo, um projeto que de início foi pensado para ser algo de maior fôlego mas que, no meio do caminho, esqueceram que se tratava de um tiro curto de menos de cinco episódios.
Erro bobo, óbvio; como duvido que existam showrunners (e respectivos staffs) tão estúpidos a esse ponto que trabalhem com a marca HBO e com o montante (exorbitante) de dinheiro destinado às suas atividades, só posso presumir - infelizmente mesmo, porque pessoalmente esperava muito mais - como "Catherine" será rapidamente esquecido por não conter absolutamente nada de inovador (em seu contar de história, mesmo aspectos de direção) ou memorável.
Eles Não Envelhecerão
4.3 49Que restauração - das filmagens, sonoras, entrevistas - e construção de filme impressionante. A imersão, às vezes, é quase que total. Sem espaço pra alívios, é o horror real da guerra desfilando em todas as suas dimensões estéticas, visuais e psicológicas por pouco mais de hora e meia - entrecortadas por tiradas interessantíssimas sobre o dia-a-dia das trincheiras e dos (raros) cotidianos fora dela.
A
passagem da filmagem no original, com seu ritmo picotado (em que seus "atores" parecem pulando e andando à Chaplin), ao remasterizado - em todas as suas cores e ritmos recuperados -
"Dizem que quando você está próximo de morrer consegue enxergar seu passado, mas aos 19 anos de idade eu não tinha muito passado; e quando vi as balas chegando, tudo que pensava era: 'vou sair vivo'?".
A Pele de Vênus
4.0 218 Assista Agora"A vida nos faz do que somos em um momento inesperado".
"A Pele..." me parece um Polanski digno dos seus melhores anos, ali na década de 1960. É surpreendente, na medida em que explora não uma "auto-crítica" do próprio Polanski (como comentado mais abaixo) no meu ver mas, antes, mergulha em vieses de interpretação que, por sua construção, nada mais são do que uma das palavras mais repetidas ao longo da pouca mais de hora e meia daqui: ambiguidade.
É inevitável não assistir o Mathieu Amalric interpretando Thomas e não lembrar o próprio jovem-Polanski: o corte de cabelo, os trejeitos nervosos, até o tamanho! Mas, definitivamente, não é isso que faz disso um filme interessante. Muito mais se esconde aqui, e o cast enxuto em nada prejudica o andamento da proposta: do contrário, acentua e faz estridente a voz polanskiana que, já há um bom tempo, não ousava exclamar algo desse tipo - e, principalmente, dessa maneira.
Provocador, "Pele..." faz um jogo muito esperto (e nada sutil) sobre arte, cria um jogo narrativo sobre direção, atuação, expõe os vários significados que podem escorrer de um roteiro - e que dão um bom debate sociológico e antropológico, em que pese a ênfase de Thomas em afirmar o contrário ao conversar com Vanda sobre os rumos de uma boa história.
"Mas essa peça é sexista, eu quero gritar! [...] o livro é sexista: [...] é uma luta de classes, e sexos!"
RoboCop: O Policial do Futuro
3.6 683 Assista AgoraRevi o "RoboCop" ontem. Não poderia acrescentar muita coisa, e a análise do Luís Carlos um pouco mais abaixo é basicamente o que eu diria sobre esse "quase-slasher" com boas pitadas de gore do Verhoeven.
Porém, uma coisa ficou martelando na minha cabeça assim que terminei de reassistir: é impressão minha ou tem uma pegada muito forte do "Cavaleiro das Trevas", quadrinho do Batman escrito por Frank Miller em 1986, na estilística e roteiro deste "RoboCop"?
A mídia e a exploração de sua programação jornalística em certos momentos pontuais, a programação da tevê - com boas doses de mulheres seminuas e sujeitos nem tão engraçados assim - que anestesia todos aqueles que a assistem, a visão de uma grande cidade estadunidense - aqui Detroit, com sonhos de uma literal nova cidade que corte cirurgicamente a parte pobre/perigosa desta nova projeção citadina, no "Batman" milleriano a Gotham que simula NY - entupida na violência urbana que, pelo fato de uma força institucional distante (as grandes corporações no "RoboCop", a desilução da GCPD no "Cavaleiro..."), assiste a ascensão de um verdadeiro Estado paralelo em todas as zonas citadinas, por exemplo, me pareceram muito semelhantes da perspectiva da Gotham-de-um-futuro-nem-tão-distante do Frank nos quadrinhos.
O Monstro ao Lado (1ª Temporada)
4.0 34 Assista Agora... o (ainda) assustador é: e quantos senhores Demjanjuk não existem por aí? Sujeitos que, acobertados pelo Estado (seja aquele de sua origem, seja aquele adotado como seu "Novo Mundo"), tiveram participação criminosa num conflito e usufruem de um confortável anonimato?
Pensando mais no pé-no-chão e na nossa realidade: quantos sujeitos colaboraram com as longas ditaduras que assolaram todo Ocidente (Alemanha e Itália lá atrás, Brasil, Chile e Argentina mais recentemente na nossa América) ao longo de todo o XX e hoje estão livres e aproveitando sua vida confortavelmente - e por vezes nem escondidos - nas nossas cidades, bairros e ruas?
Quantas memórias - e histórias - acabaremos perdendo ainda, destes tempos nada distantes de exceção e violência terrorista das instituições que deveriam proteger seus cidadãos? E, o principal: quanta justiça ainda há de não ser feita?
À Procura de Sugar Man
4.5 180 Assista AgoraQue história inspiradora. Acho que "inspirador" é o que move todo o documental. Um sem-teto, "homeless-person" como repetido à exaustão por um dos primeiros entrevistados, que carrega toda a aura de um cronista musical, um cara que canta o que vê e sente ao seu redor. A Detroit deprimente, quebrada desde a crise de 1929, sem as grandes indústrias, distante e seca.
Mas que, mesmo assim, canta também esperança. Um estadunidense com todas as marcas de um "latin", hispânico mesmo, que cantando a sua Detroit inspirou a rebeldia e contra-cultura afrikânder do auge do Apartheid, perguntando o número de suas transas e a distância de amigos, versando sobre drogas e insurreição.
E que hombridade por se manter, mesmo sabendo das injustiças que o cercam bem como daqueles que até hoje, imagino, simplesmente o devem um puta dinheiro.
Infelizmente demorei muito pra ver o "Searching...", mas felizmente finalmente o vi. E não podia ser uma experiência melhor.
O Outro Lado do Vento
3.6 36 Assista AgoraÉ esquisito. Quando saíram as primeiras informações do "Other Side", me animei na expectativa do que poderia vir - como fã de Orson Welles e, acima de tudo, como apreciador de cinema; ora, mesmo que você não seja fã do sacaninha que pregou uma baita pegadinha pelo rádio estadunidense nos 1940, não dá pra negar sua importância cultural: o legado wellesiano no cinema , impactou não apenas Hollywood da primeira metade do século XX, mas mesmo as produções de nossos dias; revolucionário, sua utilização do rádio e da comunicação de massa, também, é mesmo uma aula ainda hoje sobre a difusão e alcance daquilo que é passado e, mais importante, do como é transmitido, por exemplo.
Dito isso, não esperava nada muito "sofisticado". Sabia que isso aqui não seria algo como o "Eyes Wide Shut" do Stanley Kubrick que, lançado em 1999 sem passar pelo crivo final do diretor, foi levado às telonas com aquela marca do "vejam a última obra do grande diretor do século XX!" - mas que, por sua vez, já se encontrava de fato em uma reta final de produção, sendo uma obra quase "no prelo" que, infelizmente (e por ocasião do destino que fulminou o coração do grande gênio), saiu sem o carimbo do autor.
"Other...", aqui trazido pela Netflix, nada mais é do que um grande esboço, um sketchbook de desenhistas daqueles que encontramos muitas vezes em edições de luxo das nossas revistas favoritas, ou mesmo uma versão demo, uma primeira gravação de estúdio, daquela música que gostamos tanto.
Projeto que bateu, voltou, foi trabalhado, retrabalhado e, ao fim, não finalizado (para, na primeira década do século XXI, ser recuperado por um serviço inovador de consumo de tv/cinema que o levou, por streaming, a todos os seus assinantes. Que tempos).
É tudo muito primal, parece até estágio inicial mesmo. Não há, como no "Eyes..." kubrickiano, um segmento, um fio narrativo de "direção". Oxalá fosse como o filme do casal do momento do fim dos anos 90. É quase uma bagunça, pra falarmos a verdade; e, conhecendo a filmografia wellesiana, podemos quase asseverar que isso não seria nunca a versão final. Muito longe disso, diga-se.
Portanto, pra mim - um simples fã de cinema, longe de ser um estudante/estudioso profundo da arte e sem legitimidade alguma no "campo" - "Other..." funciona como um grande prefácio daquilo que nunca veremos em sua forma final. A melhor maneira de abordar (e pensar) esse último passo do Welles seria, por conseguinte, analisando suas ideias e propostas que, pinçadas com tremendo esforço, nos são oferecidas nesta versão que saiu à luz.
Mais especificamente: me atrai, no roteiro, ver como um diretor experiente lidou com as transformações que atravessavam o "grande cinema" estadunidense na década de 1970: as influências das filmagens europeias, a sensação de deslocamento na "metodologia" em meio a onda de novidades que vinha arrastando tudo, até uma marginalização que, como uma novidade, atingia os agora "dinossauros" das câmeras que tiveram grande sucesso outrora e agora se viam em posição diferente na hierarquia que agora se apresentava no novo cenário dos diretores hollywoodianos.
Mesmo na reta de caos que é o "Other" me parece que esse é um registro pessoal demais do Welles. Sua leitura do cinema àquele momento.
É uma pena, reafirmo, que os cacos juntados não sirvam pra cobrir - em parte minimamente aceitável - o que seria o produto final; por outro lado, é divertido ver a produção de um dos grandes caras da arte em estágio tão "seco", tão inicial, e que dá àqueles que não são do campo uma perspectiva totalmente diferente de como se vai dando uma edição, decupagem e construção de um filme.
Enfim, é uma aventura cinematográfica. E daquelas bem esquisitas mesmo.
A Voz da Lua
3.5 26 Assista Agora"Como eu gosto de lembrar, ao invés de viver".
Um onirismo, de duas horas fechadas; mas como isso parece ser basicamente um clichê pra qualquer produção que carregue o nome de Federico Fellini na direção, podemos ir um pouco mais além no "A Voz da Lua".
A pluralidade de vozes, situações, cenários e personagens marcam definitivamente a "Voz", e algumas cenas certamente alcançam aquele "quê" de mágico e belo pela sua condução e, principalmente, apresentação.
Por exemplo, em uma casa típica daquilo que alguns ainda insistem em classificar como pertencentes de uma certa classe "burguesa" - nesta cena vemos um piano encostado à parede, na nossa direita, enquanto à nossa frente está uma mesinha redonda de duas cadeiras, com café, partitura, cigarro e luminária a ocupando, enquanto ao fundo apenas observamos a parte de uma cozinha; não menos importante, evidentemente, um relógio de parede de estilo cuco clássico, amadeirado, está presente na sala -, um senhor pratica no seu clarinete uma peça musical que, em sua leitura, é amaldiçoada; a sequência diabolus, como a diz a todos aqueles que insistem em ouvi-lo, quando invocada musicalmente faria móveis se mexerem. Ora, o armário (grande e robusto, entupido de quinquilharias) é o primeiro a arrarstar-se; "sou um lunático, um vidente?", questiona-se ainda atônito logo após a sua prática musical.
Esse auto-questionamento parece, antes, ser o leitmotiv que move essa "Voz" felliniana. O próprio absurdo desta cena em específico, com o móvel movendo-se, parece bobeira ao atentarmos a como seu enunciador encontra-se dormindo em um cemitério (!) e a relata a pouco mais de três pessoas que, por motivos diferentes, também encontram-se ali (!).
"Mas nada é verdade [...]; é apenas uma ficção, pura representação", como chega a comentar um personagem um tanto misterioso, "gordo", "nervoso" e de duras expressões faciais - e que "se recusa até ao diálogo" - conforme letras frias certamente assinadas por observadores terceiros.
A mim, salvo a grande direção em algumas cenas e a boa-sacada do Fellini à condução de algumas temáticas (tão díspares mas, né, estamos numa narrativa que beira o quase alucinatório) que, pelos próprios rumos e ideia da "Voz" veem, para si, as portas abertas para serem abordadas, me parece uma empreitada, antes, mal "armada".
Não que o filme seja ruim, ou mal-feito (quem somos nós para criticar qualquer produção aqui, afinal?), muito longe disso mas, em alguns momentos, a "Voz" felliniana, que perpassa situações escabrosas das mais diversas, indo de questões matrimoniais (em que algumas esposas são quase uma locomotiva no que se refere ao sexo) às políticas ("não somos uma nação de idiotas?" parece ser o questionamento italiano desde, vejamos, sempre?), parece se perder na condução das situações.
Ou, no fim, por que não, essa pode também ter sido a intenção ao cabo da coisa.
Último destaque: o maravilhoso desfecho final, em que um Ivo,
com pretensões de Pinóquio na personalidade, conforme visto, chega a um poço muito semelhante àquele da cena inicial e desfere uma das frases mais lindas que já me lembro de ter visto em qualquer mídia:
Um pontinho brilhante (como alguns outros, conforme visto nos comentários abaixo também) no grande emaranhado de situações plurais que perpassam a singular, e última, "Voz" felliniana.
Redenção Sangrenta
4.0 10Uma narrativa creio que quase inédita à época no cinema (em que pese já uma enxurrada de abordagens da mesma principalmente em outras artes, como a literatura e o teatro - como não lembrar de Dostoiévski que, já na metade do século anterior, abordava tais situações?) e que sobreveria ao chamado "desafio do tempo", tornando-se atemporal: no fim das contas, "Breaking Point" me surpreende como, em meios da década de 1950, levou às grandes telas a história do anti-herói que, provavelmente, deveria ser o tipo mais comum na sociedade americana após duas guerras de escala mundial e uma outra de intervenção violenta no Pacífico nesta mesma década: aquela do homem de fortes convicções morais que, pelos apuros financeiros não-raros na chamada "década de ressurgimento" do "American way-of-life", vê nos
trabalhos ilegais e criminosos o meio de sustentar sua família, "clássica" aqui - de uma Lucy dona-de-casa (e até submissa, ao menos no início) e das duas filhinhas -
"Vocês são todos iguais, falam sobre sua grande honestidade; afastam-se quando veem gente como eu. Mas quando estão em apuros, são como todos os outros: aves de rapina", é o que diz o picareta Duncan ao amigo e personagem principal Harry Morgan; afinal, o "pai legal", como chega a se auto-intitular, se encontra no emaranhado das dívidas e na não-saída da situação financeira: em que pese os planos da esposa de irem ao campo e tornarem-se agricultores, na propriedade do sogro, a única atividade que o grande bastião da moral e herói de guerra de "Breaking" sabe cumprir é a de navegar um barco.
E, vejam que situação: nem ao menos o seu Sea Queen é adquirido; antes, alugado, é usado para a pesca (atividade nada rentável,como podemos observar) em águas próximas.
Um amplo leque de questões é aberto aqui, também: afinal, até onde se vale ir por dinheiro? É justo arrastar aqueles que o prezam neste caminho? E, pra mim, o grande ponto do fim: como se dá este caminho escolhido?
Curioso: "Breaking Point", ao final, parece aquele primo mais velho e legal, mas meio desconhecido, que todos nós temos, em contraposição àquele mais famoso: a similaridade com "Taxi Driver" do Scorsese que, pouco mais de vinte anos depois, levantaria a bola de maneira magnífica para tais questões, também merece ser levada em conta - e que ressalta, evidentemente, a qualidade e importância dessa empreitada do Michael Curtiz.
Algumas cenas espetaculares, que merecem ao menos citação rápida: a
rápida estadia no México (estereotipado, de mariachis caricatos), no qual conhecemos melhor aquela personagem feminina completamente oposta a Lucy; Leona, quase que "femme-fatale" pelo seu poder de cativar o espectador, ao mesmo tempo em que o deixa em suspeita quanto às suas ações e convicções (qual o fim do seu "noivo", afinal? Como consegue manter um apartamento tão espaçoso e elegante? Em suma, quais suas atividades?).
Outra passagem maravilhosa: aquela sequência na qual
Lucy, ao buscar ajudar na casa, arruma trabalho na fábrica e acaba por levar seu ofício ao lar; todo o estresse de Morgan, virado do avesso já nestes idos do filme (lembremos da grosseria com a Sra. Cooley e da ida ao bar em horário "não-convencional" para si, sem conseguir dormir, a longa noite em claro da boa-esposa que, como vimos no fim do filme, não tem absolutamente nada de submissa: pensa, antes de tudo, no bem-estar da família e das filhas; não aceita o marido envolvido em situações ilegais e, em que pese já conhecer a decadência deste, ainda se prostra ao seu lado e tenta, na medida do possível, ajudá-lo não nas suas atividades ilegais, mas em manter antes a estabilidade sua e das crianças.
E é inevitável não remetermos ao grandioso corte final: Morgan,
agora redimido por ter enfrentado mafiosos perigosíssimos e que deve ter sido recebido como herói para a amputação, e a desolação do filho de seu bom companheiro, Wesley, agora isolado, aparte, no deck portuário.
Sem consolo, sem apoio, sem os amiguinhos da mesma idade, sem a orientação mesmo que mínima de um adulto; em suma, isolado e "sem beijo de namorada" como diria Cazuza, a criança negra parece ser o único a sentir a falta daquele que, em "Breaking Point", é o único prostrado de fato em suas firmes (e boas) convicções.
Final maravilhoso, forte, de várias interpretações, recepções e leituras possíveis.
A Pista
4.4 185 Assista AgoraSurpreendente, no mínimo.
"Às vezes ele encontra um dia de felicidade [...]. Outras imagens se apresentam, se misturam, no museu que talvez seja o da sua memória".
O formato de montagem da narrativa do(s) filme(s)/fotografia(s), que parecem literalmente uma história em quadrinhos no qual as páginas folheiam-se por si, ao espectador; o roteiro, que não deixa nada a dever às obras de sci-fi que estouravam, desde os anos 1940, no mundo ocidental e que atraíam um público cada vez mais amplo em diversas mídias.
A sensibilidade ao falar da memória e de suas permanências, mas também dos seus desafogos e buracos que se fazem presente em seu caminho construído.
O figurino dos atores que, apesar de tão simples, passam uma sensação de "futuro-mas-não-tão-distante", que chega a encucar - e aterrorizar - quem assiste; a maestria de Chris Marker que, em um projeto tão ousado, faz cada "cena" ser realçada aos olhos, convidando cada um a montar as sequências que permeiam os espaços em branco dos quadrinhos deste pequeno-grandiosíssimo gibi de quase meia hora, e que constrói um "futuro" aterrorizante a partir de locais como a esquina de um grande centro urbano qualquer ou a pista de um aeroporto que, certamente, não precisa ser nominado.
O medo, tão latente principalmente na década de 1960, de um conflito mundial que, imbuído de um potencial nuclear altamente destrutivo a nível planetário, levou as discussões então restritas aos livros de ficção-científica e suas zines consumidas então por um nicho muito específico de leitores à ordem do dia de intelectuais e pensadores, grandes setores da mídia e mais espaços das demais "artes".
Tremenda distopia, e das mais tocantes, o tal do "La Jetée".
Bacurau
4.3 2,8K Assista AgoraImpossível
ver a cena do estadunidense pela casa, vasculhando em busca dos moradores de Bacurau, e no qual um letreiro televisivo grita ao seu telespectador - e consequentemente a nós - sobre a execução pública de alguns condenados no Vale do Anhangabaú, São Paulo,
Era Uma Vez em... Hollywood
3.8 2,3K Assista Agora"Não chore na frente dos mexicanos".
Vou fazer o tipo de comentário que mais odeio fazer no Filmow: aquele no seco, após sair de uma sessão no cinema.
Primeiro, já pôr que, nessas situações, nunca consigo separar ainda uma cena ou trecho em específico do filme para comentar - como geralmente vinha fazendo aqui. No mais, "Era uma vez em... Hollywood" é realmente uma homenagem ao que é e, principalmente, o que foi Hollywood da década de 1970 pra trás.
A homenagem aos grandes astros, a referência aos despontantes diretores e aqueles que, europeus, ainda eram enxergados - como tudo que é estrangeiro aos estadunidenses - inferiores estão presentes. Todo o cotidiano (de uma classe rica e estelar em sua maioria, afinal, mas sustentada por uma verdadeira nação nada glamourosa por trás) e as perturbações da profissão, com uma tremenda concorrência entre atores já famosos e mesmo aqueles que insistem em ver-se como num degrau abaixo às estrelas, também são bem focados aqui.
Ponto negativo, infelizmente, é o mal-aproveitamento de uma enxurrada de personagens e situações que só dão as caras uma única vez pra nunca mais, apesar de marcarem por suas participações e situações.
Mas não sou fã de Tarantino: pra mim, o grande filme do homem é o "Django" (e ainda será). Mas "Era uma vez" opta por um viés diferente do que a filmografia do Quentin vinha rumando e, mesmo pra quem não acompanha tão a fundo demais obras do diretor, isso fica explícito.
Ecos de "Bastardos" e do "Pulp", que não colocarei mais detalhado aqui, são sentidos principalmente no roteiro e, curiosamente, não tanto na condução das cenas, naquele velho ritmo que deu fama ainda nos 1990 ao Tarantino.
Porque "Era uma vez", pra mim, é o filme mais não-Tarantino do Tarantino.
E porra, o sujeito conseguiu algo inacreditável, e inédito pelo menos pra mim, com aquele final:
é o "felizes para sempre", o "final feliz", mais melancólico e triste que me recordo de ter visto, quando paramos para pensar no que foi de fato aquela noite à Tate e aos LaBianca.
Carne
3.7 98Escreve a romancista francesa Marguerite Yourcenar no curto artigo "Para onde vai a alma dos animais?", escrito em 1981 e presente no livro "O tempo, esse grande escultor":
"Narra um conto das Mil e Uma Noites que a Terra e os animais tremeram no dia em que Deus criou o homem. Esta visão admirável de poeta adquire um significado total para nós, que sabemos, bem melhor que o contista árabe da Idade Média, quanto a Terra e os animais tinham razão em tremer.
[...] O cavalo, para um parisiense, não passa desse animal mitológico, dopado e arrastado além de suas forças, que nos faz ganhar algum dinheiro quando acertamos no páreo de um 'grande prêmio'. Exposta em fatias cuidadosamente envoltas em papel celofane num supermercado, ou conservada em latas, a carne [de cavalo] deixa de ser sentida como tendo sido a de um animal vivo. Ousamos mesmo dizer que nossos açougues, onde pendem de ganchos quartos de animais que mal se acabaram de abater, de aspecto tão atroz para quem não está acostumado a isso a ponto de certos amigos meus, estrangeiros, mudarem de calçada em Paris, quando os percebem de longe, talvez até sejam um bem, na medida em que testemunham a violência que o homem inflige aos animais".
Vi o curta do Gaspar Noé, em certeza, tem mais de ano; li esse textinho ontem. Impossível não se remeter ao universo cruento e, porque não, "realístico" (com todas as aspas e cautela inclusos ao termo) trazido em "Carne" por seu diretor.
Nós
3.8 2,3K Assista AgoraCurioso: uma das poucas vezes que me lembro de ter visto uma direção tão boa para um script tão... fraco.
Jordan Peele fez das tripas coração para produzir o "Us" com 20 milhões de dólares. Fotografia, tomadas, a trilha sonora, os atores.
Do belo início oitentista, com suas mega-arrecadações filantrópicas (e quase que utópicas) e suas sequentes propagandas cool circulantes na tevê que prometiam erradicar a fome de um país ou continente, passando à moda dominante da época nos EUA, passando pelos belos cortes de cena ambiente que cercam a ainda criança Adelaide naquela que devia ser uma noite divertida num parque quase à beira-mar em Santa Cruz. Até ao "hoje", em que conhecemos a casa de campo na beira de um lago, um ambiente bucólico e que, evidentemente, é cercado por aquela arquitetura contemporânea que domina nosso dia a dia, "pastosa", por exemplo.
Não pensei direito pra escrever esse comentário porque o filme ainda tá bem fresco na cabeça, e mesmo por isso nem aprofundarei alguma cena em específico ou algo do tipo como costumeiramente faço.
O que garanto é que o trabalho do Peele, e creio que quem assistiu irá concordar (e pra você que vai assistir, é algo pra encarar sem medo), é correto. Super justo.
O produto entregue ao consumidor extrapola aquilo que os mais incautos poderiam pensar por causa do orçamento. "Us" é bonito, não é cansativo, prende o espectador como poucos filmes de terror/suspense de hoje com sua trilha - excepcional, diga-se -.
Muitas vezes "eletriza", nos pega incauto, soca um "Good Vibrations" dos Beach Boys numa cena espetacular ao mesmo tempo em que surpreende com uma comédia em um momento inesperado - e que traz uma leveza até naqueles momentos impensáveis para tal manobra, arriscada, mas que já víamos em "Get Out".
Mas, rapaz, a tal da história...
Sing Street - Música e Sonho
4.1 714 Assista Agora"Nenhuma mulher realmente ama um cara que ouve Phil Collins"
A trilha sonora é muito divertida, e juro por Deus que quando terminei o filme vim visitar o Filmow e, de relance, li que o Patrick Carney (Black Keys) fosse o diretor.
Menos um mico na vida, afinal; já tava com um comentário engatilhado sobre como o cara supostamente se inspirou em alguns estilos que não aproveita em nada na "outra" vida profissional.
Carlos, o Chacal
4.2 50 Assista AgoraSério, que produção do caralho.
Todo o cenário da espionagem e do terrorismo - quase co-irmãos em sua fase de maturidade ali nos 1970 e 80 - trabalhado de maneira excepcional.
Dos medos e das utopias de jovens revolucionários "pequeno-burgueses" da América Latina na Europa ao trabalho sujo, meticuloso e por vezes irresponsável, que não exita em transformar sua crença em antigos inimigos que agora alçam o posto de estandarte na linha de frente contra os "imperialistas" estadunidenses e suas longas raias na Europa, Oriente Médio e África.
"Carlos" tem, disparado, a melhor "reconstituição" da década de 1970 e 1980 que já vi; é absurdo o quão os atores e atrizes tem seus trejeitos, cabelos, sotaques e maneirismos quase que naturais destas duas décadas. Tento me lembrar de alguma produção semelhante, mas agora realmente não me vêm à mente alguma que seja tão fiel quanto aqui.
Como já dito um pouco mais abaixo, o Edgar Ramírez está um monstro atuando como o Chacal: além da passagem dos anos, dos quilinhos a mais e dos cavanhaques retirados aos cortes de cabelo adotado,
vemos um Carlos temeroso de suas atitudes no início, totalmente em contraposição ao experiente e consolidado "agente" de décadas depois
Por sinal, a fase inicial na Europa é magistral. De sua primeira atividade, quase malfadada
- afinal nosso Illich, em sua primeira missão, está claramente nervoso a ponto de passar por cima da possibilidade de vasculhar a casa do milionário "sionista", além de parar seu carro literalmente em frente ao local de operação, o que o faz quase ser pego -
É ultra-recomendado, verdadeira obra-prima. E uma baita surpresa, pois o vi quase ao acaso. Feliz que, para mim, tal destino tenha sido de bons-ventos. ;)
True Detective (3ª Temporada)
4.0 285Infelizmente, temporada tão perdida quanto Hayes em suas memórias - apesar dos (poucos) bons momentos. Uma pena.
Outro Sertão
4.2 9Documentário super conciso. A produção ressalta, da maneira como é construída, muito do levantamento documental e das fontes por parte da equipe técnica responsável.
Da entrevista ao crítico literário alemão na TV, da década de 1960, ao recorte dos trechos do diário que tratam mais à fundo quando da estadia em Hamburgo, bem como o link com a memória - tanto daqueles que foram ajudados pessoalmente quanto àqueles que, de um modo ou outro, guardaram os documentos ou mesmo as lembranças de pais ou familiares ajudados por Guimarães e Aracy, mesmo com
a leitura dos documentos secretos do Reich, que já viam com um olho pregado nas atividades e comentários anti-nazistas do literato,
É um espetáculo sobre uma faceta, pra mim, desconhecida do Guimarães Rosa - sabia de sua passagem enquanto diplomata, mas nunca saberia dessas suas atividades, de seus posicionamentos e das ajudas prestadas em Hamburgo.
Só mostra como muita coisa ainda relacionada à História brasileira - e de seus naturais - ainda tem a ser estudada, mesmo descoberta, e exposta.