Interessante, até um pouco antes da 38Mostra, não havia cadastro deste diretor aqui no Filmow. Tampouco há nada sobre ele na enciclopédia de cinema japonês da Maria Novielli. Fora o obscurantismo, conheci um diretor genial. Daqueles que deixa aquela vontade de querer ver mais filmes. Dos 3 filmes que foram exibidos na Mostra em SP, gostei mais deste e do "Paixão Mórbida". Esses dois filmes têm um traço muito interessante: mulheres em um papel um tanto transgressor. Ou neste caso, dos caminhos e das escolhas de Matsuko. Surpreendi-me bastante com os 3 filmes deste sr. Noboru. Gostaria de rever, um dia. E o título deste filme? Não teria outro melhor.
Discordo completamente do comentário abaixo do sr. Cinema com Crítica, de este filme do Vecchiali ser uma "tentativa de filme". O que eu vi foi uma adaptação particular e própria. Uma adaptação belíssima do conto de Dostoievski. O problema é que muitas pessoas esperam uma adaptação aprisionada e "fiel", e eu , particularmente, já estou farto de discutir isso no Filmow. Se é para montar um tribunal contra uma adaptação livre e própria, esteticamente falando, vamos julgar Sokurov, Shinoda e tantos outros grandes. Por favor, e com todo respeito à divergência, mas dizer que este filme não confere volume ao texto de Dostoievski é um comentário raso em todas as esferas, na da tradução, da estética..
Quanto ao filme, saí arrasado da sala de cinema, como me senti arrasado diante do texto. Um filme que mergulha na ausência, na solidão, no sonho. Um filme que estreita os laços com aquilo que os poetas românticos no séc. XIX tanto perseguiam, o sonho: a vida como um sonho, ou o sonho como única possibilidade, já que a vida é insuficiente. Um sonho que flerta o delírio. Sonho - para lembrar o ontológico personagem sonolento e delirante de Georges Perec - que só "é" na noite, na solidão essencial da noite..Aquilo que o ensaísta francês Maurice Blanchot fala sobre o sonho, como a "intimidade essencial com o centro", parece servir para este filme: quase-teatral, os dois personagens (o sonhador e Nastenka) dialogam dentro da mesma intimidade nocturnal do Igitur de Mallarmé. E o que é mais precioso para o sonhante? O que é mais precioso para os poetas do romantismo? A fagulha da felicidade. A inalcansável felicidade. Relembro dos momentos finais do romance de Dostoievski: "Um minuto inteiro de felicidade! Afinal, não basta isso para encher a vida inteira de um homem?". Relembro também uma frase dita pelo sonhante no filme: "A esperança só ajuda a destruir a nós mesmos".
Para concluir essa prosa - muitas coisas a dizer, mas ando absolutamente sem saco para estender minhas notas: um dos melhores textos (de Dostoievski) para se compreender a poesia do séc. XIX, a solidão existencial e o lugar destes poetas no mundo. E um filme bastante particular em seu modo de tradução. Ainda não vi a tradução que o Visconti fez deste texto, espero ver. E se possível, re-ver este filme, tamanha a simpatia que tive. Recomendo muito.
Interessante que Ichikawa até então , com "Coração" e "O tempo do pavilhão dourado" vem seguindo um curso de adaptações "fiéis" e, segundo a Maria Novielli em seu "História do cinema japonês", Ichikawa é "menos fiel" na adaptação da obra de Junichiro para este "A Chave". Como eu não conheço o texto adaptado, eu vou confiar na citada pesquisadora.
A princípio, este filme pode funcionar como uma maravilhosa crítica à geração cosmética que passamos no século XXI, uma critica a juventude cada vez mais perseguidora da beleza e virilidade. Kenmochi seria, então, o traço de uma juventude escrava da própria juventude. Mas no decorrer do filme, a “estranha obsessão” de Kenmochi passa a ficar nítida, a medida em que os personagens vão participando de um jogo com uma coloração erótica. O que me chamou atenção foi a ação da personagem que é empregada da casa que, no final do filme,
Ora, veja-se que se trata de uma velha daltônica e com facilidade de confusão no campo associativo. Assim como ninguém acredita em sua confissão, nós também podemos perguntar: até que ponto podemos confiar nela? Isso me fez lembrar alguns narradores bêdados do "Tutameia", de Guimarães Rosa, que contam as histórias sob o efeito da cachaça e fica difícil o leitor "confiar" naquilo. O que eu quero dizer é: a empregada joga com essa ideia do confiar e do engano. Sem contar que o 'engano' (acho que "engano" é a melhor definição para as ações desta velha no filme) é um traço típico do gênero cômico. Como disse o Daniel abaixo, e eu concordo plenamente, isso só realça a elasticidade e versatilidade de Kon Ichikawa. Sem dúvidas, um filme muito bonito e interessante.
Esboço uma tese de que este filme é embrionário de uma matéria existencial que Ichikawa consolidará nos filmes seguintes, "Harpa da Birmânia" e "O Templo do Pavilhão Dourado", filmes que giram em torno da existência, solidão e morte. Eu fiquei muito impressionado com este filme e principalmente por ele apresentar dois personagens extremamente peculiares: Nobuchi (sensei), um homem cerrado em si, incapaz de relacionar-se com o mundo a sua volta, um homem que carrega profunda tristeza do ser, que aos poucos vai sendo revelada; e Kaji, que nos é apresentado no plano da memória de Nobuchi, personagem que é o símbolo e inspiração do sensei.
Kaji é um personagem que escolhe seguir a vida ascética e tal como o Buda histórico fez aos seus 29 anos, abandonar as doçuras da vida, liberar-se, desprender-se, e seguir o caminho da iluminação, até o momento em que se vê apaixonado pela jovem Shizu. Interessante nesta narrativa é ver como Kaji e Nobuchi caminham para uma mesma direção,
que é a morte como resultado; aliás, solidão e morte,tão bem operados neste filme, será uma operação presente tanto em "Harpa da Birmânia" quanto em "Pavilhão Dourado"
.
Outro fato interessante é que tanto Nobuchi quanto o harpista de "Harpa da Birmânia" irão deixar seu testemunho, veja-se como Ichikawa toma gosto por operar o recurso da memória. Por isso vejo esse filme como embrionário. uma anotação. uma passagem para... Só tenho a agradecer ao camarada Daniel que, com generosidade, me apresentou diretor e filme. Filme p/ ficar na memória.
Fiquei muito feliz ao ver este filme, adaptação de meu romance favorito na literatura. Muito melhor que a micro-adaptação feita por Paul Schrader em "Mishima: uma vida em quatro capítulos", de 1985. Schrader acerta, em seu trabalho, na trilha sonora do Philip Glass, mas neste filme Ichikawa também faz uso de uma ótima trilha sonora, que transa perfeitamente com o filme.
Eu vejo Mizoguchi e a Macabéa, de Clarice Lispector, os personagens mais interessantes e sofríveis da literatura (nos limites do que já li, claro). Mizoguchi é um personagem que não se encaixa no real e o Templo funciona como um muro entre ele e o mundo, e por isso mesmo sua arquitetura da destruição, onde viver e destruir são a mesma coisa. Claro que o filme não traduz toda a inquietação do livro, que mais parece um tratado de estética, um manual do Belo em forma de diário. Mas o filme se mantém fiel àquilo que busca traduzir (adaptar), e com excelentes atuações do Raizô Ichikawa e do Tatsuya Nakadai. Ichikawa parece se interessar por personagens com esse sentimento de estar-deslocado-no-mundo -- além desta adaptação, o filme "Coração" também persegue esse sentimento de isolamento, essa solidão do Ser. Quando eu dispuser de tempo, quero ler a obra completa do Mishima, mas por hora acho que Mizoguchi e Koochan (personagem do outro romance seu "Confissões de uma máscara") são os personagens que mais traduzem o sentimento de inconformação do Yukio Mishima.
Tudo é cru neste filme, que expõe de forma seca o trágico da vida e o flagelo humano. Outro cineasta japonês, Teruo Ishii, talvez chegue perto desse modo cru, mas Ishii está mais preocupado em expor as vísceras humanas com interesses masoquistas (tenho em mente principalmente "O Horror dos Homens Deformados"). Ichikawa vai mais fundo, até chegar à decadência do humano. Ao terminar o filme, lembrei de uma pequena frase que vi em Bergman, no Ovo da Serpente, que dizia: "Descubro que o real é pior que um pesadelo". E foi bom ter relembrado desta frase, porque diz muito deste filme incendiário. Incendiário porque é puro desastre, desespero e ruínas. Transgressão. Desordem: afinal, sucumbir ao canibalismo é reafirmar a velha tese de que a fome nos arremessa para a desordem.
Há um livro demasiadamente enciclopédico sobre cinema japonês, pela editora UnB, em que a autora afirma que Kon Ichikawa não é capaz de transgressões nem embates morais. Ora, este filme não é pura transgressão? O fato de Tamura resistir ao canibalismo não é, em si, um embate moral? Penso que a maestria de Ichikawa neste filme é expor a apoteose da miséria humana e da podridão da existência. Digo isso não pensando em Schopenhauer. Mas penso mais no velho e pessimista Cioran, que acho mais incendiário que Schopenhauer. Cioran tem uma efígie do fracassado, em seu livro "Breviário de Decomposição", que é uma epígrafe para este filme: “Essa sensação de cadáver futuro erigindo-se já no presente". Cadáver. Tamura: um carcomido a espera do nada. Este filme é grandioso porque mais parece um poema decadente simbolista que nos faz questionar a própria existência.
Harpa da Birmânia é um filme capaz de causar grande emoção em quem assiste. Vejo dois pontos nucleares neste filme. Primeiro, o lugar da música. Nietzsche tem razão quando diz que sem a música a vida seria um erro, e o velho Cioran quando diz que a música é libertadora, catártica e capaz de êxtases. E a música assume esse papel libertador, tanto neste filme quanto no filme-adaptação posterior, "Templo do Pavilhão dourado". Diante do trágico da vida, a música que envolve o harpista --e os demais personagens-- tem essa função de ser um remédio contra o desespero. Segundo, as escolhas que Mizushima faz. O harpista
faz a escolha de ficar em memória dos mortos, decide renunciar a todas as possibilidades futuras e essa escolha acaba funcionando com um estado meditativo do próprio protagonista
.
Em meu blog pessoal (tem o link no meu perfil, creio que a política do Filmow não permita links em comentários) lancei uma nota mais detalhada deste filme, mas tenho uma tese: a escolha de Mizushima o torna um verdadeiro herói. E concordo inteiramente com o Daniel Chigurh quando, em outro filme do diretor, diz que há uma esperança neste filme, mesmo diante das ruínas da guerra. Mas é essa fagulha de esperança que faz o filme ir do vazio à plenitude. Meu primeiro filme do Ichikawa e foi bom. Foi ótimo. Pra ficar na memória.
Belíssimo filme deste cineasta francês, Olivier Péray, totalmente desconhecido do nosso público brasileiro. Interessante como o filme flerta harmoniosamente com o quadrinho, haja vista que nem todo filme acerta nesse tipo de transa. Baseado em um romance de Georges Arnaud, este "Un Soupçon D'innocence" (a tradução literal seria "Uma suspeita de inocência"), que já brinca desde o título (a suspeita é sempre de um crime), vai muito além de um filme sobre uma menina e seus amigos imaginários. Este filme é uma ode ao fazer literário. Julie vai construindo seus "amigos imaginários" até o momento-limite de um crime. Momento-limite em que sua linha tênue real-ficcional se fragiliza. O ponto alto deste filme é que Julie
pega a matéria histórica e parte dela para a criação literária, quer dizer, é a partir de seus "colegas" que Julie constrói seus "personagens" (no sentido mais literário possível). Julie nos fornece um ótimo exemplo de teoria literária: uma obra (vamos pensar a criação de Julie como "obra") que não é representação do real, mas diz-dele.
. E é no quadrinho (ficção) que Julie-autora pode dizer/desvelar as coisas do mundo, e até tentar denunciá-las,
. Para mim, este filme é um ótimo material para uma Introdução à teoria da literatura, quer dizer, um ótimo filme para pensar o exercício literário e o que pode a literatura. Espero vê-lo outras vezes.
Maravilhoso filme do Kinoshita!! Durante o filme, nutri um grande asco pelo personagem Heibei e suas ações de "baixa índole" (para lembrar Aristóteles), sempre culpando Sadako, que a todo momento ocupa o lugar da vítima, do corpo violado -- e se pensarmos de "modo alargado", veja-se como este filme ainda nos é contemporâneo e quantos Heibeis há por aí. É muito dolorosa (a dor tem presença central neste filme) uma fala da Sadako para Tomoko:
"O que não consigo esquecer não é o seu marido, mas sim o que eu tive de passar".
No livro "História do cinema japonês" (que frequentemente venho consultando pelo seu caráter enciclopédico, mas infelizmente ocasionalmente divergindo de algumas análises), a autora, Maria Novielli, diz que após "Fuefukigawa" (O rio Fuefuki) Kinoshita fez filmes [cito] "qualitativamente menos importantes" (pág. 201,para consulta: Editora UnB, 2007). Não sei se a Novielli teve contato com este filme, mas discordo desta citação e não consigo ver este filme como "menos importante". Arrisco dizer: do que já vi do Kinoshita, penso que "A Balada de Narayama", "Vinte e Quatro Olhos" e este "Amor Imortal" se constituem o tripé fundamental do cinema de Keisuke Kinoshita. Penso também no ajuste de contas: aqui, não temos o experimentalismo visual de "Fuefukigawa", o intimismo e a bela fotografia de "A Balada de Narayama". Temos um drama familiar rodeado de tragédias. Temos um filme sobre Renúncia. A vida de Sadako é uma vida de inteira renúncia e sacrifícios. E justamente por funcionar como uma poética da renúncia que eu vejo esse filme como fundamental no cinema deste diretor. Como eu costumo dizer: filme para ficar na memória.
Para a galera que assistiu ao clássico de 1976 na juventude, como eu, há de concordar que esta releitura é péssima, péssima... Ficou mais rasa que música de Ivete Sangalo.. Dou MEIA ESTRELA porque achei o cúmulo a cena bestial em que o Tommy Ross
Arrisco dizer que todo estudante de cinema ou todo aspirante devia passar pelo cinema de Kinoshita, pelo menos com "Balada de Narayama" e este peculiar "Fuefukigawa" e meditar com mais afinco sobre a semiótica e o experimentalismo cinematográfico. Mas, ao mesmo tempo, todos deviam ver os filmes do Kinoshita. Aprende-se muito aqui. A delicada relação pai-filho de Sadahei e Sozo, ou um pai que tenta proteger seu filho na concha (a mesma poesia das relações pai-filho de "A Balada de Narayama", que temos o oposto, o filho tentando proteger a mãe Orin no seu ninho). A recepção e efeito da guerra (mais neste e menos em "Vinte e Quatro Olhos"). O rio, ou a travessia do rio que é a travessia da vida (ou, como diz o off: a travessia do véu da vida). Os encontros e os desencontros (uma fala extremamente brilhante neste filme é: "O encontro já é separação").
Concordo com uma pesquisadora do cinema japonês, Maria Novielli (livro "História do Cinema Japonês", Editora UnB), quando diz que Kinoshita recorre à pintura para compor este filme, assim como ele recorre ao teatro para compor o "Balada de Narayama". Quando eu falo em semiótica neste filme não é por mero acaso. Basta ver como a cor azul
está sempre em torno dos cadáveres ( e se eu não estiver louco, como isso dialoga com o tom azulado dos filmes experimentais do georgiano Sergei Paradjanov).
. Certamente este filme é grandioso, só não me encantei tanto quanto os filmes anteriores que vi. Não consegui entrar em sintonia com as muitas gerações que foram passando nas modulações da guerra. Mas não tira a beleza do filme nem minha simpatia por ele.
Este filme é uma perfeita afirmação da vida. Dorota Kedzierzawska já tem uma experiência com filmes existenciais, digo: mais intimistas. E esse não difere. Ao terminar a exibição, muita coisa me veio à mente, mas em especial, um verso do poeta gaúcho Carlos Nejar, um verso que sempre tenho em mente: "Envelhecer é como a memória nos pune" (do livro: Odysseus, O Velho, 2010).. QUando o assunto é velhice, o tempo, a memória, eu sempre digo: tenho muito medo. E uma interrogação da Dona Aniela me fez cair por terra, me desmoronou: "o que eu vim fazer aqui?" Obra de arte,sem dúvidas.
Um filme que todo professor e aspirante devia assistir. Um filme completo em suas quase 3h de duração, pegando um Japão antes e pós-guerra. Uma professora atemporal -- já nos primeiros minutos vemos como Hisako causa um "estranhamento" pelo modo de se vestir e pela bicicleta -- e consequentemente perseguida (por comunismo e anti-patriotismo) por fazer seus alunos questionarem a realidade. Hisako corporaliza a figura do professor que está quase totalmente perdida neste século: a do professor que faz seus alunos des-cobrirem o mundo, fazer do aluno um descobridor (lembro sempre do filósofo alemão M. Heidegger, que diz que o homem é essencialmente des-cobridor-no-mundo, que está sempre em um buscar e questionar). E aí Kinoshita acerta em cheio neste filme: nos leva a entrar no mundo. E nele descobrir e desvelar as coisas. Digo: Kinoshita nos direciona para o essencial do homem pelas vias daquilo que é primordial ao homem: pelas vias da educação e do conhecimento (que é expressa dentro e fora de uma sala de aula).
Outra coisa interessante neste filme: Hisako é acusada de comunismo por ensinar coisas "impróprias" (segundo o diretor da escola) aos alunos. Não vejo muito Hisako como comunista. Lembrei muito de "um certo" Platão, de sua clássica e mal lida "A República", que direciona a todos de sua pólis ao civismo, pois só o civismo interessa (por isso, alguns poetas seriam "expulsos"). Hisako se aproxima mais de um tipo de poeta mimético que não interessa ao cívico. Digo "Um tipo de poeta", porque, pensando com Platão, a poesia é sempre belicosa. E Hisako parece ser essa representação da poesia belicosa. Porque leva o ser ao desvelamento e ao questionamento do mundo.
E mire veja: nesta época de pouco ou nenhum questionamento, nesta época em que a escola parece ser tudo menos escola, este filme se faz urgente, ainda. Mantém-se atual e necessário. Só tenho visto coisas boas do Keisuke Kinoshita. Só preciosidades.
Era pra ser um filme? Podre, podre, podre... Daqueles filmes que tentar ir, mas não toca na coisa como "estado de arte". Mais superficial que música de Michel Teló.
Interessante: se juntarmos algumas entrevistas podemos ver uma tese bastanta clara neste documentário: o brincar ( e a ausência do brincar na infância) como originário e determinante para o niilismo e a melancolia do contemporâneo. Em uma das falas isso fica claro quando a entrevistada fala dos limites que cerceiam o lúdico na escola (que hoje, me desculpem, é tudo menos escola), como a escola "molda" a criança. Tem uma senhorinha mui simpática que diz uma frase lapidar e que eu muito gostei: "o brincar é a afirmação da vida". Nossa, lindo, lindo. Este documentário é uma lufada contra a seriedade e o caretismo disfarçado de cafajestismo que vêm rondando este século XXI. Uma obra que nos direciona para o simples da vida...Sai do cinema com os olhos marejando! E o título... já é autoexplicativo: sem restrições. Já recomendei para uns colegas que gostam do poeta Manoel de Barros (que adoraria ver esta obra). Mais brincadeiras, por favor.
Que belo documentário sobre a vida e obra do Susumu Shingu. Em muito, lembra o filme "Aquiles e a tartaruga", do Takeshi Kitano, na busca do artista pela realização dos sonhos. Uma coisa podemos dizer tanto para o filme do Kitano quanto para este: a fotografia de um homem à serviço da arte!! Este documentário sobre o Shingu é uma genuina afirmação da vida. Uma afirmação em estado de arte..
Filme maravilhoso!!! Primeiro filme que vi do Kinoshita e aconteceu a mesma coisa quando conheci o cinema do Masahiro Shinoda: deslumbre! Um cinema de grande sensibilidade. A morte, o tempo, o silêncio, parecem ser os temas nucleares deste peculiar “Balada de Narayama”. A tradição de recolher-se ao monte Narayama aos 70 anos já indica a maneira sensível e bergmaniana que o diretor trata da velhice. Uma velhice vista de modo bastante epicurista. Digo isto lembrando de uma máxima bastante clássica do filósofo helênico Epicuro, em suas “Sentencias Vaticanas”, que diz que “não é o jovem que merece ser felicitado, mas o velho que tem passado uma vida bela”, pois o velho atinge a velhice como se chega a um porto seguro, pleno de suas satisfações. Ora, o diálogo deste filme com o filósofo grego não se resume a esta máxima. O próprio Epicuro era conhecido como o “filósofo que viva no jardim” e refugiava-se nele. O monte Narayama é este local de refúgio, de abrigo, de hospitalidade (no sentido mesmo derridiano).
A resistência do filho traz à tona um sentimento de perda. De solidão. De vazio. Afinal, o encontro com o monte Narayama é um encontro com a morte. A morte nos traz esse sentimento de nada, de vacuidade. Uma leitura mais atenta na cultura japonesa revela com os japoneses, em sua tradição, souberam lidar com a morte. A olhar de frente a morte. Não vê-la como uma “intrusa”, ou inimiga. Se os poetas simbolistas, franceses e brasileiros, viam a morte como intrusa e fugiam para o sonho, os japoneses não precisaram sonhar. E como Orin corporaliza tudo isto... Um encontro com a morte, com o vazio, com o silêncio. E não é a toa que Orin sobe o morro em total silêncio. Um silêncio quase em estado de meditação. Durante o filme, lembrei-me de uma tese do crítico literário francês Maurice Blanchot, que a arte diz respeito ao silêncio do mundo. Sim. Não parece que tudo neste filme é silêncio? Silêncio do mundo?
Concordo com o Adson lá abaixo, que diz que o Kinoshita faz ver com maestria o arcaismo das tradições (principalmente quando falamos de um Japão antes e pós-guerra). Lembro sempre de uma frase do Claude Levi-Strauss, que dizia que as culturas são incomensuráveis. Não são estáticas. Mas digo mais: entre Orin e o monte Narayama, o filme acerta ao fotografar uma vida de silêncio, sacrifício e renúncia. Aí o filme se entrelaça de vez com o poético!!! Cinema e literatura em perfeita transa.... Digo isto com os olhos marejando: um filme para ficar na memória e para toda uma vida!!!
mais um filme de um tecido visual belíssimo do Ishii. E mais um filme em que o dançarino e criador do Butô, Tatsumi Hijikata, aparece com sua "dança das trevas". O que eu digo em relação ao filme anterior do Teruo Ishii, "O horror dos Homens deformados", parece dizer respeito a este filme também: por trás de todo sangue e sadismo, por trás do palco de crueldade que Ishii constrói, parece circular uma sensibilidade genuína. Não é por acaso que essa sensibilidade geralmente se "faz ver", pra usar uma expressão cara à fenomenologia, nos
finais do filme, nos momentos apoteóticos, como no final de "O horror dos homens deformados" e no final deste filme, em que a Akio perdoa a Akemi.
. Aliás, Ishii prova que é mestre em provocar a catarse. E embora o seu filme de 1969 seja mais visual, graças ao Hijikata, este filme vem carregado de símbolos, como o gato preto... Mais um bom filme do Ishii que me cativou...
Olhe: não é fácil assistir aos filmes de Teruo Ishii. Posso até notar um diálogo entre Ishii e outro cineasta nipônico, Susumu Hani: filmes que alternam entre a beleza e a crueza. Neste filme, que foi proibido por algumas décadas no Japão, há algo extremamente interessante na chegada de Hirosuke à ilha. E chega mesmo a lembrar de "Salò ou os 120 dias de Sodoma" (1975), clássico de Pier Paolo Pasolini. O cenário (ou a diferença em relação a Pasolini) aqui é de mulheres e homens presos e expostos a experimentos pelo louco Sr. Jogoro Komoda que habita a ilha. Não tarda muito para Hirosuke também ser prisioneiro. O peculiar dos prisioneiros da ilha é que todos eles estão envolvidos em uma espécie de dança, carregada de visualidade e surrealismo. Ao pesquisar sobre essa dança, descobri que esta intrigante dança é conhecida no Japão como "Butô" e tem como mestre o dançarino Tatsumi Hijikata, que estrategicamente faz o papel do velho louco e sádico Jogoro Komoda. O próprio criador do Butô define-o: “Butô é um cadáver levantando, desesperadamente, em busca de um pouco de vida”. O interessante neste filme é a operação de Teruo Ishii juntamente do dançarino-ator Hijikata em dar movimento àquilo que nos é mórbido. E, claro, basta recorrermos ao campo da Estética para levantar questões como: qual a fronteira do belo e do mórbido? Até que ponto o mórbido não pode ser belo?
Outro fato interessante deste filme é que por trás de todo palco de horror instalado na ilha e por trás das cenas bizarras da Srª Toki
comendo os insetos que estavam a comer o corpo putrefato do seu amante
, há um limite muito tênue neste filme de Teruo Ishii entre amor e dor na relação do sádico Jogoro e sua esposa infiel. Ora, basta darmos uma olhadinha no mito da mãe Gaia que presenteia o filho mais novo, Chronos, com uma foice, e este, segundo a mitologia, corta o órgão genital de seu pai Urano para impossibilitá-lo de procriar mais filhos. Da mutilação, o falo de Urano cai no mar, mas, na queda, o sêmen do falo decepado mistura-se com as brumas do mar, dali nascendo, então, Afrodite..É o amor nascendo da dor, ou amor e dor caminhando juntos...E isso é muito próprio neste filme, quando se volta os olhos para o Jogoro e sua esposa infiel, Toki. Jogoro parece abrir uma ferida na relação entre paixão e sofrimento
(no final apocalíptico do filme, parece haver um perdão e arrependimento por parte de Jogoro).
. Jogoro também testa os limites da dor no corpo humano, quer ver o sofrimento (sadismo) e até onde vai a resistência de seu princípio de crueldade. Uma frase de Jogoro esclarece:
“Depois de ter os deixado lá por 5 dias, vi que as pessoas não morrem facilmente....”
.
Sem dúvida, este é um filme apocalíptico, pensando mesmo naquilo que o filósofo romeno Emil Cioran chamou de "banho de chamas" como próprio do ato apocaliptico de uma vida incendiária onde o homem, enfermo, mergulha de cabeça na miséria da humanidade. E mais uma vez, isso é muito próprio nesse filme, Cioran e este filme dialogam. E me desculpe o rapaz abaixo que achou este filme um "Lixo detestável". Discordo completamente. O que eu vi foi um filme grandioso, belo e provocante.
Primeiro filme do Hani que vejo, e o único que encontrei disponível para nosso idioma. Esse filme é uma dinamite!! Dinamite é a palavra ideal para definir este filme. Neste filme demasiadamente cru, impactante, e sob uma belíssima trilha sonoridade, Shun é a corporalização do jovem inocente, ou da inocência juvenil, sempre com um olhar tímido, com um sorriso quase forçado. Mas não são só flores a vida e trajetória de Shun. O filme começa com
uma tentativa mal sucedida de relação sexual entre Shun e Nanami
e com o relato de nosso protagonista de ter uma infância rebelde, tendo consequências familiares de abandono por parte dos pais. Shun é acusado de tentar molestar uma garotinha no cemitério que, segundo ele, era sua única amiga. Jogado em sessões de hipnose, ficamos sabendo que Shun também era assediado pelo padrasto. Sua válvula de escape era o seu amor por Nanami: uma garota tipicamente flauberiana que muito se assemelha a Emma Bovary, antológico personagem de Gustav Flaubert. Nanami, uma modelo que trabalha em uma espécie de agência nudista que mistura em si uma experiência de lesbianismo e sadismo. O que lhe assemelha o ar flauberiano é que Nanami, dividida entre os gracejos de Shun e o tédio da realidade, projeta o desejo em um homem casado e pai de dois filhos que frequenta o seu local de trabalho a fim de vê-la nua.
Lucia Nagib, em seu livro "Em torno da nouvelle vague japonesa" (1993), classifica Nanami como prostituta. Não concordo com a classificação de Nanami como prostituta feita por Nagib. Nanami é flauberianamente a corporalização de uma mulher que deseja... Ler Nanami como prostituta é cair no velho lugar abominável de ler Emma Bovary, mulher à frente de seu tempo, como mulher desqualificada. Mas a Lucia Nagib acerta ao tratar das "experiências pervertidas" e da "experiência homossexual" de Shun com o padrasto, e mesmo assim sua imagem continuar sendo a da inocência. A inocência, aqui, não é sinônimo de virgindade e pureza, mas está mais ligada a um campo de descobertas .
Shun e Nanami, mishimianamente pensando, são jovens que querem abrir a porta fechada que os separa do mundo, jovens tateando nas savanas de um mundo em ruínas. Ironicamente Shun, ao fim de sua trajetória turva e acinzentada,
Um dos filmes mais bonitos que já vi na vida!! Muito mais que um filme sobre o autismo.. Mas um filme completo, em suas quase 3h de duração, que expõe o desastre de uma comunidade alemã da década de 60 e de uma escola em lidar com as diferenças. Um pouco parecido com o filme polonês "Quero Viver", do Maciej Pieprzyca, com a diferença que no filme do Pieprzyca não há nenhum apoio e crença da família para com o jovem Mateusz. Neste filme, a mãe de Felix, atemporal e até flauberiana, luta com todas as forças pelo filho e contra uma comunidade interiorana ilhada em preconceito. Sem dúvida, é um dos pontos altos do filme a maestria como ela luta pelo filho, a ponto de sucumbir a todos os “valores” morais que aprendera em sua região,
chegando a trabalhar em um prostíbulo para poder custear o tratamento às cegas do filho; às cegas, sim, mas na esperança.
. Ela faz do filme um hino de amor entre mãe e filho, digno de estar à altura de cineastas como Alexsandr Sokurov e Yasujiro Ozu, que tão bem filmaram hinos de amor assim (cada qual à sua maneira, claro).
Por muito tempo eu senti um asco enorme em como as pessoas da comunidade tratavam as limitações do Felix como “doença” e como um “mal” que precisava ser “curado”; fora um fundamentalismo e machismo horrorosos de um pequeno grupo religioso
até capaz de expulsar uma mulher que veio ocupar um cargo “masculino” dentro da igreja.
. É então que o Johannes Fabrick constrói com maestria o espaço da narrativa (um espaço sufocante para o protagonista, digamos..) e é neste espaço que o protagonista lida com as limitações, pois ele não oferece desafios para o jovem Felix.
Felix, incompreensível. Felix, uma incógnita. Para muitos, um objeto. Mas esse é o desejo de Felix: voar. Ou pôr o objeto para voar, eis a sua luta. Um menino-gênio que deseja voar --- como ele mesmo diz: "um pássaro-número". Essa é uma das falas de Felix: “Sou um pássaro-número. Sei fazer números e voar”. Lindo!! O que digo sobre o filme do polonês Pieprzyca, repito aqui, pois serve perfeitamente para ambos: um filme que nos mostra as coisas mais simples da vida, uma luta com o corpo, com as palavras, com o olhar – sua comunicação. Uma luta pela compreensão, pelo amor, pela vida. Porque de certo modo todos nós temos um pouquinho do Felix em sua luta pela vida, pela afirmação da vida. Este é um filme raro, cheio de poesia e sensibilidade. Seria muito bom se esse filme circulasse mais. Um filme que mostra que viver ainda vale a pena. Que a vida ainda vale a pena.
Desses filmes que ficam na memória e só têm a acrescentar!!! Um filme sobre a linguagem do silêncio, sobre falar o indizível, sobre sonhos e principalmente: sobre a linguagem do corpo. Em muitos momentos do filme, em que silêncio e música se encontravam, me lembrei muito de uma passagem do filósofo Nietzsche, que diz que "Sem música, a vida seria um erro". Um poeta curitibano, Paulo Leminski, que também muito gostava de Nietzsche, tem um ensaio que diz assim: "Se filosofar é perguntar, o homem só é filósofo porque é músico". Sem dúvidas, um filme de muitos encontros. De desejos de encontros. Tem um versinho de um poema do Mário Jorge, um poeta aracajuano, que sintetiza e traduz de forma perfeita este filme: "Quero, logo existo"!!!
Bem mais interessante que o primeiro filme da trilogia, este filme é até nuclear na própria proposta da trilogia budista de Akio Jissoji. Os temas aqui estão bem entrelaçados: amor, finitude, existência, tempo. E vai da filosofia da existência para desaguar no corpo,na sexualidade. A proposta da seita nos lega uma frase lapidar:
"Apenas aqueles que negam o tempo e a história se juntam a nós".
.
Um filme que desloca as coisas de lugar,que perturba as linhas de curso. Por isso a leitura de ser este um filme "genuinamente" japonês (gosto da palavra genuíno, mas ao mesmo tempo a olho deleuzianamente com desconfiança, é possivel pensar a origem?). Prefiro ver o filme como traço de uma tradição, e mais como desafio ao pensamento (que ai sim, segue um fio condutor desde o primeiro filme da trilogia).
Que trilha sonora maravilhosa, hein? Daqueles filmes que você sempre quis realizar e daqueles protagonistas que traduzem completamente você. Esse filme veio em minha direção e me traduziu. Não entendi o porquê da tradução em português para um "homem meio esquisito". Qual a esquisitice de ser-no-mundo ? Parodiando Flaubert : eu sou monsieur Hire!!!! Filme para ficar na memória..
Quando a Chuva Cai
4.1 2Interessante, até um pouco antes da 38Mostra, não havia cadastro deste diretor aqui no Filmow. Tampouco há nada sobre ele na enciclopédia de cinema japonês da Maria Novielli. Fora o obscurantismo, conheci um diretor genial. Daqueles que deixa aquela vontade de querer ver mais filmes. Dos 3 filmes que foram exibidos na Mostra em SP, gostei mais deste e do "Paixão Mórbida". Esses dois filmes têm um traço muito interessante: mulheres em um papel um tanto transgressor. Ou neste caso, dos caminhos e das escolhas de Matsuko. Surpreendi-me bastante com os 3 filmes deste sr. Noboru. Gostaria de rever, um dia. E o título deste filme? Não teria outro melhor.
Noites Brancas no Píer
3.3 6Discordo completamente do comentário abaixo do sr. Cinema com Crítica, de este filme do Vecchiali ser uma "tentativa de filme". O que eu vi foi uma adaptação particular e própria. Uma adaptação belíssima do conto de Dostoievski. O problema é que muitas pessoas esperam uma adaptação aprisionada e "fiel", e eu , particularmente, já estou farto de discutir isso no Filmow. Se é para montar um tribunal contra uma adaptação livre e própria, esteticamente falando, vamos julgar Sokurov, Shinoda e tantos outros grandes. Por favor, e com todo respeito à divergência, mas dizer que este filme não confere volume ao texto de Dostoievski é um comentário raso em todas as esferas, na da tradução, da estética..
Quanto ao filme, saí arrasado da sala de cinema, como me senti arrasado diante do texto. Um filme que mergulha na ausência, na solidão, no sonho. Um filme que estreita os laços com aquilo que os poetas românticos no séc. XIX tanto perseguiam, o sonho: a vida como um sonho, ou o sonho como única possibilidade, já que a vida é insuficiente. Um sonho que flerta o delírio. Sonho - para lembrar o ontológico personagem sonolento e delirante de Georges Perec - que só "é" na noite, na solidão essencial da noite..Aquilo que o ensaísta francês Maurice Blanchot fala sobre o sonho, como a "intimidade essencial com o centro", parece servir para este filme: quase-teatral, os dois personagens (o sonhador e Nastenka) dialogam dentro da mesma intimidade nocturnal do Igitur de Mallarmé. E o que é mais precioso para o sonhante? O que é mais precioso para os poetas do romantismo? A fagulha da felicidade. A inalcansável felicidade. Relembro dos momentos finais do romance de Dostoievski: "Um minuto inteiro de felicidade! Afinal, não basta isso para encher a vida inteira de um homem?". Relembro também uma frase dita pelo sonhante no filme: "A esperança só ajuda a destruir a nós mesmos".
Para concluir essa prosa - muitas coisas a dizer, mas ando absolutamente sem saco para estender minhas notas: um dos melhores textos (de Dostoievski) para se compreender a poesia do séc. XIX, a solidão existencial e o lugar destes poetas no mundo. E um filme bastante particular em seu modo de tradução. Ainda não vi a tradução que o Visconti fez deste texto, espero ver. E se possível, re-ver este filme, tamanha a simpatia que tive. Recomendo muito.
Alucinação Sensual/ Estranha Obsessão
4.0 5Interessante que Ichikawa até então , com "Coração" e "O tempo do pavilhão dourado" vem seguindo um curso de adaptações "fiéis" e, segundo a Maria Novielli em seu "História do cinema japonês", Ichikawa é "menos fiel" na adaptação da obra de Junichiro para este "A Chave". Como eu não conheço o texto adaptado, eu vou confiar na citada pesquisadora.
A princípio, este filme pode funcionar como uma maravilhosa crítica à geração cosmética que passamos no século XXI, uma critica a juventude cada vez mais perseguidora da beleza e virilidade. Kenmochi seria, então, o traço de uma juventude escrava da própria juventude. Mas no decorrer do filme, a “estranha obsessão” de Kenmochi passa a ficar nítida, a medida em que os personagens vão participando de um jogo com uma coloração erótica. O que me chamou atenção foi a ação da personagem que é empregada da casa que, no final do filme,
envenena a todos.
Ora, veja-se que se trata de uma velha daltônica e com facilidade de confusão no campo associativo. Assim como ninguém acredita em sua confissão, nós também podemos perguntar: até que ponto podemos confiar nela? Isso me fez lembrar alguns narradores bêdados do "Tutameia", de Guimarães Rosa, que contam as histórias sob o efeito da cachaça e fica difícil o leitor "confiar" naquilo. O que eu quero dizer é: a empregada joga com essa ideia do confiar e do engano. Sem contar que o 'engano' (acho que "engano" é a melhor definição para as ações desta velha no filme) é um traço típico do gênero cômico. Como disse o Daniel abaixo, e eu concordo plenamente, isso só realça a elasticidade e versatilidade de Kon Ichikawa. Sem dúvidas, um filme muito bonito e interessante.
Coração
4.3 3Esboço uma tese de que este filme é embrionário de uma matéria existencial que Ichikawa consolidará nos filmes seguintes, "Harpa da Birmânia" e "O Templo do Pavilhão Dourado", filmes que giram em torno da existência, solidão e morte. Eu fiquei muito impressionado com este filme e principalmente por ele apresentar dois personagens extremamente peculiares: Nobuchi (sensei), um homem cerrado em si, incapaz de relacionar-se com o mundo a sua volta, um homem que carrega profunda tristeza do ser, que aos poucos vai sendo revelada; e Kaji, que nos é apresentado no plano da memória de Nobuchi, personagem que é o símbolo e inspiração do sensei.
Kaji é um personagem que escolhe seguir a vida ascética e tal como o Buda histórico fez aos seus 29 anos, abandonar as doçuras da vida, liberar-se, desprender-se, e seguir o caminho da iluminação, até o momento em que se vê apaixonado pela jovem Shizu. Interessante nesta narrativa é ver como Kaji e Nobuchi caminham para uma mesma direção,
que é a morte como resultado; aliás, solidão e morte,tão bem operados neste filme, será uma operação presente tanto em "Harpa da Birmânia" quanto em "Pavilhão Dourado"
Outro fato interessante é que tanto Nobuchi quanto o harpista de "Harpa da Birmânia" irão deixar seu testemunho, veja-se como Ichikawa toma gosto por operar o recurso da memória. Por isso vejo esse filme como embrionário. uma anotação. uma passagem para... Só tenho a agradecer ao camarada Daniel que, com generosidade, me apresentou diretor e filme. Filme p/ ficar na memória.
O Templo do Pavilhão Dourado
3.9 4Fiquei muito feliz ao ver este filme, adaptação de meu romance favorito na literatura. Muito melhor que a micro-adaptação feita por Paul Schrader em "Mishima: uma vida em quatro capítulos", de 1985. Schrader acerta, em seu trabalho, na trilha sonora do Philip Glass, mas neste filme Ichikawa também faz uso de uma ótima trilha sonora, que transa perfeitamente com o filme.
Eu vejo Mizoguchi e a Macabéa, de Clarice Lispector, os personagens mais interessantes e sofríveis da literatura (nos limites do que já li, claro). Mizoguchi é um personagem que não se encaixa no real e o Templo funciona como um muro entre ele e o mundo, e por isso mesmo sua arquitetura da destruição, onde viver e destruir são a mesma coisa. Claro que o filme não traduz toda a inquietação do livro, que mais parece um tratado de estética, um manual do Belo em forma de diário. Mas o filme se mantém fiel àquilo que busca traduzir (adaptar), e com excelentes atuações do Raizô Ichikawa e do Tatsuya Nakadai. Ichikawa parece se interessar por personagens com esse sentimento de estar-deslocado-no-mundo -- além desta adaptação, o filme "Coração" também persegue esse sentimento de isolamento, essa solidão do Ser. Quando eu dispuser de tempo, quero ler a obra completa do Mishima, mas por hora acho que Mizoguchi e Koochan (personagem do outro romance seu "Confissões de uma máscara") são os personagens que mais traduzem o sentimento de inconformação do Yukio Mishima.
Fogo na Planície
4.3 15Tudo é cru neste filme, que expõe de forma seca o trágico da vida e o flagelo humano. Outro cineasta japonês, Teruo Ishii, talvez chegue perto desse modo cru, mas Ishii está mais preocupado em expor as vísceras humanas com interesses masoquistas (tenho em mente principalmente "O Horror dos Homens Deformados"). Ichikawa vai mais fundo, até chegar à decadência do humano. Ao terminar o filme, lembrei de uma pequena frase que vi em Bergman, no Ovo da Serpente, que dizia: "Descubro que o real é pior que um pesadelo". E foi bom ter relembrado desta frase, porque diz muito deste filme incendiário. Incendiário porque é puro desastre, desespero e ruínas. Transgressão. Desordem: afinal, sucumbir ao canibalismo é reafirmar a velha tese de que a fome nos arremessa para a desordem.
Há um livro demasiadamente enciclopédico sobre cinema japonês, pela editora UnB, em que a autora afirma que Kon Ichikawa não é capaz de transgressões nem embates morais. Ora, este filme não é pura transgressão? O fato de Tamura resistir ao canibalismo não é, em si, um embate moral? Penso que a maestria de Ichikawa neste filme é expor a apoteose da miséria humana e da podridão da existência. Digo isso não pensando em Schopenhauer. Mas penso mais no velho e pessimista Cioran, que acho mais incendiário que Schopenhauer. Cioran tem uma efígie do fracassado, em seu livro "Breviário de Decomposição", que é uma epígrafe para este filme: “Essa sensação de cadáver futuro erigindo-se já no presente". Cadáver. Tamura: um carcomido a espera do nada. Este filme é grandioso porque mais parece um poema decadente simbolista que nos faz questionar a própria existência.
A Harpa da Birmânia
4.3 35Harpa da Birmânia é um filme capaz de causar grande emoção em quem assiste. Vejo dois pontos nucleares neste filme. Primeiro, o lugar da música. Nietzsche tem razão quando diz que sem a música a vida seria um erro, e o velho Cioran quando diz que a música é libertadora, catártica e capaz de êxtases. E a música assume esse papel libertador, tanto neste filme quanto no filme-adaptação posterior, "Templo do Pavilhão dourado". Diante do trágico da vida, a música que envolve o harpista --e os demais personagens-- tem essa função de ser um remédio contra o desespero. Segundo, as escolhas que Mizushima faz. O harpista
faz a escolha de ficar em memória dos mortos, decide renunciar a todas as possibilidades futuras e essa escolha acaba funcionando com um estado meditativo do próprio protagonista
Em meu blog pessoal (tem o link no meu perfil, creio que a política do Filmow não permita links em comentários) lancei uma nota mais detalhada deste filme, mas tenho uma tese: a escolha de Mizushima o torna um verdadeiro herói. E concordo inteiramente com o Daniel Chigurh quando, em outro filme do diretor, diz que há uma esperança neste filme, mesmo diante das ruínas da guerra. Mas é essa fagulha de esperança que faz o filme ir do vazio à plenitude. Meu primeiro filme do Ichikawa e foi bom. Foi ótimo. Pra ficar na memória.
Un Soupçon D'innocence
3.5 5Belíssimo filme deste cineasta francês, Olivier Péray, totalmente desconhecido do nosso público brasileiro. Interessante como o filme flerta harmoniosamente com o quadrinho, haja vista que nem todo filme acerta nesse tipo de transa. Baseado em um romance de Georges Arnaud, este "Un Soupçon D'innocence" (a tradução literal seria "Uma suspeita de inocência"), que já brinca desde o título (a suspeita é sempre de um crime), vai muito além de um filme sobre uma menina e seus amigos imaginários. Este filme é uma ode ao fazer literário. Julie vai construindo seus "amigos imaginários" até o momento-limite de um crime. Momento-limite em que sua linha tênue real-ficcional se fragiliza. O ponto alto deste filme é que Julie
pega a matéria histórica e parte dela para a criação literária, quer dizer, é a partir de seus "colegas" que Julie constrói seus "personagens" (no sentido mais literário possível). Julie nos fornece um ótimo exemplo de teoria literária: uma obra (vamos pensar a criação de Julie como "obra") que não é representação do real, mas diz-dele.
E é no quadrinho (ficção) que Julie-autora pode dizer/desvelar as coisas do mundo, e até tentar denunciá-las,
já que um dos meninos tenta violentá-la.
Para mim, este filme é um ótimo material para uma Introdução à teoria da literatura, quer dizer, um ótimo filme para pensar o exercício literário e o que pode a literatura. Espero vê-lo outras vezes.
Amor Imortal
4.0 6Maravilhoso filme do Kinoshita!! Durante o filme, nutri um grande asco pelo personagem Heibei e suas ações de "baixa índole" (para lembrar Aristóteles), sempre culpando Sadako, que a todo momento ocupa o lugar da vítima, do corpo violado -- e se pensarmos de "modo alargado", veja-se como este filme ainda nos é contemporâneo e quantos Heibeis há por aí. É muito dolorosa (a dor tem presença central neste filme) uma fala da Sadako para Tomoko:
"O que não consigo esquecer não é o seu marido, mas sim o que eu tive de passar".
No livro "História do cinema japonês" (que frequentemente venho consultando pelo seu caráter enciclopédico, mas infelizmente ocasionalmente divergindo de algumas análises), a autora, Maria Novielli, diz que após "Fuefukigawa" (O rio Fuefuki) Kinoshita fez filmes [cito] "qualitativamente menos importantes" (pág. 201,para consulta: Editora UnB, 2007). Não sei se a Novielli teve contato com este filme, mas discordo desta citação e não consigo ver este filme como "menos importante". Arrisco dizer: do que já vi do Kinoshita, penso que "A Balada de Narayama", "Vinte e Quatro Olhos" e este "Amor Imortal" se constituem o tripé fundamental do cinema de Keisuke Kinoshita. Penso também no ajuste de contas: aqui, não temos o experimentalismo visual de "Fuefukigawa", o intimismo e a bela fotografia de "A Balada de Narayama". Temos um drama familiar rodeado de tragédias. Temos um filme sobre Renúncia. A vida de Sadako é uma vida de inteira renúncia e sacrifícios. E justamente por funcionar como uma poética da renúncia que eu vejo esse filme como fundamental no cinema deste diretor. Como eu costumo dizer: filme para ficar na memória.
Carrie, a Estranha
2.8 3,5K Assista AgoraPara a galera que assistiu ao clássico de 1976 na juventude, como eu, há de concordar que esta releitura é péssima, péssima... Ficou mais rasa que música de Ivete Sangalo.. Dou MEIA ESTRELA porque achei o cúmulo a cena bestial em que o Tommy Ross
morre atingido por um balde na cabeça!!! Agora vai!!!!.
O Rio Fuefuki
3.9 3Arrisco dizer que todo estudante de cinema ou todo aspirante devia passar pelo cinema de Kinoshita, pelo menos com "Balada de Narayama" e este peculiar "Fuefukigawa" e meditar com mais afinco sobre a semiótica e o experimentalismo cinematográfico. Mas, ao mesmo tempo, todos deviam ver os filmes do Kinoshita. Aprende-se muito aqui. A delicada relação pai-filho de Sadahei e Sozo, ou um pai que tenta proteger seu filho na concha (a mesma poesia das relações pai-filho de "A Balada de Narayama", que temos o oposto, o filho tentando proteger a mãe Orin no seu ninho). A recepção e efeito da guerra (mais neste e menos em "Vinte e Quatro Olhos"). O rio, ou a travessia do rio que é a travessia da vida (ou, como diz o off: a travessia do véu da vida). Os encontros e os desencontros (uma fala extremamente brilhante neste filme é: "O encontro já é separação").
Concordo com uma pesquisadora do cinema japonês, Maria Novielli (livro "História do Cinema Japonês", Editora UnB), quando diz que Kinoshita recorre à pintura para compor este filme, assim como ele recorre ao teatro para compor o "Balada de Narayama". Quando eu falo em semiótica neste filme não é por mero acaso. Basta ver como a cor azul
está sempre em torno dos cadáveres ( e se eu não estiver louco, como isso dialoga com o tom azulado dos filmes experimentais do georgiano Sergei Paradjanov).
Certamente este filme é grandioso, só não me encantei tanto quanto os filmes anteriores que vi. Não consegui entrar em sintonia com as muitas gerações que foram passando nas modulações da guerra. Mas não tira a beleza do filme nem minha simpatia por ele.
Hora de Morrer
4.3 61Este filme é uma perfeita afirmação da vida. Dorota Kedzierzawska já tem uma experiência com filmes existenciais, digo: mais intimistas. E esse não difere. Ao terminar a exibição, muita coisa me veio à mente, mas em especial, um verso do poeta gaúcho Carlos Nejar, um verso que sempre tenho em mente: "Envelhecer é como a memória nos pune" (do livro: Odysseus, O Velho, 2010).. QUando o assunto é velhice, o tempo, a memória, eu sempre digo: tenho muito medo. E uma interrogação da Dona Aniela me fez cair por terra, me desmoronou: "o que eu vim fazer aqui?" Obra de arte,sem dúvidas.
Vinte e Quatro Olhos
4.4 15Um filme que todo professor e aspirante devia assistir. Um filme completo em suas quase 3h de duração, pegando um Japão antes e pós-guerra. Uma professora atemporal -- já nos primeiros minutos vemos como Hisako causa um "estranhamento" pelo modo de se vestir e pela bicicleta -- e consequentemente perseguida (por comunismo e anti-patriotismo) por fazer seus alunos questionarem a realidade. Hisako corporaliza a figura do professor que está quase totalmente perdida neste século: a do professor que faz seus alunos des-cobrirem o mundo, fazer do aluno um descobridor (lembro sempre do filósofo alemão M. Heidegger, que diz que o homem é essencialmente des-cobridor-no-mundo, que está sempre em um buscar e questionar). E aí Kinoshita acerta em cheio neste filme: nos leva a entrar no mundo. E nele descobrir e desvelar as coisas. Digo: Kinoshita nos direciona para o essencial do homem pelas vias daquilo que é primordial ao homem: pelas vias da educação e do conhecimento (que é expressa dentro e fora de uma sala de aula).
Outra coisa interessante neste filme: Hisako é acusada de comunismo por ensinar coisas "impróprias" (segundo o diretor da escola) aos alunos. Não vejo muito Hisako como comunista. Lembrei muito de "um certo" Platão, de sua clássica e mal lida "A República", que direciona a todos de sua pólis ao civismo, pois só o civismo interessa (por isso, alguns poetas seriam "expulsos"). Hisako se aproxima mais de um tipo de poeta mimético que não interessa ao cívico. Digo "Um tipo de poeta", porque, pensando com Platão, a poesia é sempre belicosa. E Hisako parece ser essa representação da poesia belicosa. Porque leva o ser ao desvelamento e ao questionamento do mundo.
E mire veja: nesta época de pouco ou nenhum questionamento, nesta época em que a escola parece ser tudo menos escola, este filme se faz urgente, ainda. Mantém-se atual e necessário. Só tenho visto coisas boas do Keisuke Kinoshita. Só preciosidades.
Delicada Relação
3.2 133Era pra ser um filme? Podre, podre, podre... Daqueles filmes que tentar ir, mas não toca na coisa como "estado de arte". Mais superficial que música de Michel Teló.
Tarja Branca - A Revolução que Faltava
4.3 123 Assista AgoraInteressante: se juntarmos algumas entrevistas podemos ver uma tese bastanta clara neste documentário: o brincar ( e a ausência do brincar na infância) como originário e determinante para o niilismo e a melancolia do contemporâneo. Em uma das falas isso fica claro quando a entrevistada fala dos limites que cerceiam o lúdico na escola (que hoje, me desculpem, é tudo menos escola), como a escola "molda" a criança. Tem uma senhorinha mui simpática que diz uma frase lapidar e que eu muito gostei: "o brincar é a afirmação da vida". Nossa, lindo, lindo. Este documentário é uma lufada contra a seriedade e o caretismo disfarçado de cafajestismo que vêm rondando este século XXI. Uma obra que nos direciona para o simples da vida...Sai do cinema com os olhos marejando! E o título... já é autoexplicativo: sem restrições. Já recomendei para uns colegas que gostam do poeta Manoel de Barros (que adoraria ver esta obra). Mais brincadeiras, por favor.
A Terra que Respira
4.3 1Que belo documentário sobre a vida e obra do Susumu Shingu. Em muito, lembra o filme "Aquiles e a tartaruga", do Takeshi Kitano, na busca do artista pela realização dos sonhos. Uma coisa podemos dizer tanto para o filme do Kitano quanto para este: a fotografia de um homem à serviço da arte!! Este documentário sobre o Shingu é uma genuina afirmação da vida. Uma afirmação em estado de arte..
A Balada de Narayama
4.3 31Filme maravilhoso!!! Primeiro filme que vi do Kinoshita e aconteceu a mesma coisa quando conheci o cinema do Masahiro Shinoda: deslumbre! Um cinema de grande sensibilidade. A morte, o tempo, o silêncio, parecem ser os temas nucleares deste peculiar “Balada de Narayama”. A tradição de recolher-se ao monte Narayama aos 70 anos já indica a maneira sensível e bergmaniana que o diretor trata da velhice. Uma velhice vista de modo bastante epicurista. Digo isto lembrando de uma máxima bastante clássica do filósofo helênico Epicuro, em suas “Sentencias Vaticanas”, que diz que “não é o jovem que merece ser felicitado, mas o velho que tem passado uma vida bela”, pois o velho atinge a velhice como se chega a um porto seguro, pleno de suas satisfações. Ora, o diálogo deste filme com o filósofo grego não se resume a esta máxima. O próprio Epicuro era conhecido como o “filósofo que viva no jardim” e refugiava-se nele. O monte Narayama é este local de refúgio, de abrigo, de hospitalidade (no sentido mesmo derridiano).
A resistência do filho traz à tona um sentimento de perda. De solidão. De vazio. Afinal, o encontro com o monte Narayama é um encontro com a morte. A morte nos traz esse sentimento de nada, de vacuidade. Uma leitura mais atenta na cultura japonesa revela com os japoneses, em sua tradição, souberam lidar com a morte. A olhar de frente a morte. Não vê-la como uma “intrusa”, ou inimiga. Se os poetas simbolistas, franceses e brasileiros, viam a morte como intrusa e fugiam para o sonho, os japoneses não precisaram sonhar. E como Orin corporaliza tudo isto... Um encontro com a morte, com o vazio, com o silêncio. E não é a toa que Orin sobe o morro em total silêncio. Um silêncio quase em estado de meditação. Durante o filme, lembrei-me de uma tese do crítico literário francês Maurice Blanchot, que a arte diz respeito ao silêncio do mundo. Sim. Não parece que tudo neste filme é silêncio? Silêncio do mundo?
Concordo com o Adson lá abaixo, que diz que o Kinoshita faz ver com maestria o arcaismo das tradições (principalmente quando falamos de um Japão antes e pós-guerra). Lembro sempre de uma frase do Claude Levi-Strauss, que dizia que as culturas são incomensuráveis. Não são estáticas. Mas digo mais: entre Orin e o monte Narayama, o filme acerta ao fotografar uma vida de silêncio, sacrifício e renúncia. Aí o filme se entrelaça de vez com o poético!!! Cinema e literatura em perfeita transa.... Digo isto com os olhos marejando: um filme para ficar na memória e para toda uma vida!!!
A Maldição da Mulher Cega
3.4 10mais um filme de um tecido visual belíssimo do Ishii. E mais um filme em que o dançarino e criador do Butô, Tatsumi Hijikata, aparece com sua "dança das trevas". O que eu digo em relação ao filme anterior do Teruo Ishii, "O horror dos Homens deformados", parece dizer respeito a este filme também: por trás de todo sangue e sadismo, por trás do palco de crueldade que Ishii constrói, parece circular uma sensibilidade genuína. Não é por acaso que essa sensibilidade geralmente se "faz ver", pra usar uma expressão cara à fenomenologia, nos
finais do filme, nos momentos apoteóticos, como no final de "O horror dos homens deformados" e no final deste filme, em que a Akio perdoa a Akemi.
O Horror dos Homens Deformados
3.1 16Olhe: não é fácil assistir aos filmes de Teruo Ishii. Posso até notar um diálogo entre Ishii e outro cineasta nipônico, Susumu Hani: filmes que alternam entre a beleza e a crueza. Neste filme, que foi proibido por algumas décadas no Japão, há algo extremamente interessante na chegada de Hirosuke à ilha. E chega mesmo a lembrar de "Salò ou os 120 dias de Sodoma" (1975), clássico de Pier Paolo Pasolini. O cenário (ou a diferença em relação a Pasolini) aqui é de mulheres e homens presos e expostos a experimentos pelo louco Sr. Jogoro Komoda que habita a ilha. Não tarda muito para Hirosuke também ser prisioneiro. O peculiar dos prisioneiros da ilha é que todos eles estão envolvidos em uma espécie de dança, carregada de visualidade e surrealismo. Ao pesquisar sobre essa dança, descobri que esta intrigante dança é conhecida no Japão como "Butô" e tem como mestre o dançarino Tatsumi Hijikata, que estrategicamente faz o papel do velho louco e sádico Jogoro Komoda. O próprio criador do Butô define-o: “Butô é um cadáver levantando, desesperadamente, em busca de um pouco de vida”. O interessante neste filme é a operação de Teruo Ishii juntamente do dançarino-ator Hijikata em dar movimento àquilo que nos é mórbido. E, claro, basta recorrermos ao campo da Estética para levantar questões como: qual a fronteira do belo e do mórbido? Até que ponto o mórbido não pode ser belo?
Outro fato interessante deste filme é que por trás de todo palco de horror instalado na ilha e por trás das cenas bizarras da Srª Toki
comendo os insetos que estavam a comer o corpo putrefato do seu amante
(no final apocalíptico do filme, parece haver um perdão e arrependimento por parte de Jogoro).
“Depois de ter os deixado lá por 5 dias, vi que as pessoas não morrem facilmente....”
Sem dúvida, este é um filme apocalíptico, pensando mesmo naquilo que o filósofo romeno Emil Cioran chamou de "banho de chamas" como próprio do ato apocaliptico de uma vida incendiária onde o homem, enfermo, mergulha de cabeça na miséria da humanidade. E mais uma vez, isso é muito próprio nesse filme, Cioran e este filme dialogam. E me desculpe o rapaz abaixo que achou este filme um "Lixo detestável". Discordo completamente. O que eu vi foi um filme grandioso, belo e provocante.
Nanami: The Inferno of First Love
3.7 4Primeiro filme do Hani que vejo, e o único que encontrei disponível para nosso idioma. Esse filme é uma dinamite!! Dinamite é a palavra ideal para definir este filme. Neste filme demasiadamente cru, impactante, e sob uma belíssima trilha sonoridade, Shun é a corporalização do jovem inocente, ou da inocência juvenil, sempre com um olhar tímido, com um sorriso quase forçado. Mas não são só flores a vida e trajetória de Shun. O filme começa com
uma tentativa mal sucedida de relação sexual entre Shun e Nanami
Lucia Nagib, em seu livro "Em torno da nouvelle vague japonesa" (1993), classifica Nanami como prostituta. Não concordo com a classificação de Nanami como prostituta feita por Nagib. Nanami é flauberianamente a corporalização de uma mulher que deseja... Ler Nanami como prostituta é cair no velho lugar abominável de ler Emma Bovary, mulher à frente de seu tempo, como mulher desqualificada. Mas a Lucia Nagib acerta ao tratar das "experiências pervertidas" e da "experiência homossexual" de Shun com o padrasto, e mesmo assim sua imagem continuar sendo a da inocência. A inocência, aqui, não é sinônimo de virgindade e pureza, mas está mais ligada a um campo de descobertas .
Shun e Nanami, mishimianamente pensando, são jovens que querem abrir a porta fechada que os separa do mundo, jovens tateando nas savanas de um mundo em ruínas. Ironicamente Shun, ao fim de sua trajetória turva e acinzentada,
tal como Macabéa, antológico personagem de Clarice Lispector, vira estrela, e aos pés de sua amada!
“este é o primeiro amor!!!”
Céu Congelado
4.4 1Um dos filmes mais bonitos que já vi na vida!! Muito mais que um filme sobre o autismo.. Mas um filme completo, em suas quase 3h de duração, que expõe o desastre de uma comunidade alemã da década de 60 e de uma escola em lidar com as diferenças. Um pouco parecido com o filme polonês "Quero Viver", do Maciej Pieprzyca, com a diferença que no filme do Pieprzyca não há nenhum apoio e crença da família para com o jovem Mateusz. Neste filme, a mãe de Felix, atemporal e até flauberiana, luta com todas as forças pelo filho e contra uma comunidade interiorana ilhada em preconceito. Sem dúvida, é um dos pontos altos do filme a maestria como ela luta pelo filho, a ponto de sucumbir a todos os “valores” morais que aprendera em sua região,
chegando a trabalhar em um prostíbulo para poder custear o tratamento às cegas do filho; às cegas, sim, mas na esperança.
Por muito tempo eu senti um asco enorme em como as pessoas da comunidade tratavam as limitações do Felix como “doença” e como um “mal” que precisava ser “curado”; fora um fundamentalismo e machismo horrorosos de um pequeno grupo religioso
até capaz de expulsar uma mulher que veio ocupar um cargo “masculino” dentro da igreja.
Felix, incompreensível. Felix, uma incógnita. Para muitos, um objeto. Mas esse é o desejo de Felix: voar. Ou pôr o objeto para voar, eis a sua luta. Um menino-gênio que deseja voar --- como ele mesmo diz: "um pássaro-número". Essa é uma das falas de Felix: “Sou um pássaro-número. Sei fazer números e voar”. Lindo!! O que digo sobre o filme do polonês Pieprzyca, repito aqui, pois serve perfeitamente para ambos: um filme que nos mostra as coisas mais simples da vida, uma luta com o corpo, com as palavras, com o olhar – sua comunicação. Uma luta pela compreensão, pelo amor, pela vida. Porque de certo modo todos nós temos um pouquinho do Felix em sua luta pela vida, pela afirmação da vida. Este é um filme raro, cheio de poesia e sensibilidade. Seria muito bom se esse filme circulasse mais. Um filme que mostra que viver ainda vale a pena. Que a vida ainda vale a pena.
Filhos do Silêncio
3.6 80 Assista AgoraDesses filmes que ficam na memória e só têm a acrescentar!!! Um filme sobre a linguagem do silêncio, sobre falar o indizível, sobre sonhos e principalmente: sobre a linguagem do corpo. Em muitos momentos do filme, em que silêncio e música se encontravam, me lembrei muito de uma passagem do filósofo Nietzsche, que diz que "Sem música, a vida seria um erro". Um poeta curitibano, Paulo Leminski, que também muito gostava de Nietzsche, tem um ensaio que diz assim: "Se filosofar é perguntar, o homem só é filósofo porque é músico". Sem dúvidas, um filme de muitos encontros. De desejos de encontros. Tem um versinho de um poema do Mário Jorge, um poeta aracajuano, que sintetiza e traduz de forma perfeita este filme: "Quero, logo existo"!!!
Mandala
4.2 7Bem mais interessante que o primeiro filme da trilogia, este filme é até nuclear na própria proposta da trilogia budista de Akio Jissoji. Os temas aqui estão bem entrelaçados: amor, finitude, existência, tempo. E vai da filosofia da existência para desaguar no corpo,na sexualidade. A proposta da seita nos lega uma frase lapidar:
"Apenas aqueles que negam o tempo e a história se juntam a nós".
Um filme que desloca as coisas de lugar,que perturba as linhas de curso. Por isso a leitura de ser este um filme "genuinamente" japonês (gosto da palavra genuíno, mas ao mesmo tempo a olho deleuzianamente com desconfiança, é possivel pensar a origem?). Prefiro ver o filme como traço de uma tradição, e mais como desafio ao pensamento (que ai sim, segue um fio condutor desde o primeiro filme da trilogia).
Um Homem Meio Esquisito
3.8 15Que trilha sonora maravilhosa, hein? Daqueles filmes que você sempre quis realizar e daqueles protagonistas que traduzem completamente você. Esse filme veio em minha direção e me traduziu. Não entendi o porquê da tradução em português para um "homem meio esquisito". Qual a esquisitice de ser-no-mundo ? Parodiando Flaubert : eu sou monsieur Hire!!!! Filme para ficar na memória..