“O Indomado” transpira o mesmo desencanto de outra adaptação de um livro de Larry McMurtry, “A Última Sessão de Cinema”. Ambos os filmes trazem, inclusive, referências nostálgicas quanto ao cinema. Martin Ritt, em mais uma parceria frutífera com Paul Newman, apresenta o confronto da tradição e da honestidade encarnadas no velho fazendeiro Homer (Melvyn Douglas) em face ao exato contrário em seu filho dissoluto. No meio do caminho, o jovem Lonnie (Brandon de Wilde), indeciso sobre qual partido tomar. E a empregada Alma (Patricia Neal), mesmo enquanto sucedâneo da figura materna na casa dos Bannon, é alvo dos desejos de Hud e de seu sobrinho. Há também referências enviesadas ao microcosmo do faroeste: o ambiente inóspito, a rudeza nos modos, Elmer Bernstein (“Sete Homens e Um Destino”) na trilha sonora e Brandon de Wilde (precocemente falecido), o célebre menino de “Os Brutos Também Amam”. Resumindo: “O Indomado” é um filme daqueles que deixam um travo na garganta de quem os encarar.
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Leiam também a interpretação de Marcio Sallem para "O Indomado", no Lumi7:
"O Som ao Redor" é um filme em camadas. Não me refiro à estrutura divida em três atos, mas sim aos elementos que se depreendem a cada leitura. Quando assisti ao filme pela primeira vez, impressionei-me com as imagens sendo usadas para realmente contar a história, em vez de meramente ilustrá-la. Não percebi nenhuma cena sobrando. Nada de gratuito, discursivo ou demagogo. E considerando a crítica social a que se presta "O Som ao Redor", o risco dele resultar num estudo sociológico de boteco era patente. Felizmente, Kleber Mendonça Filho soube valer seu histórico enquanto crítico de cinema. Observando o que se deve e o que não se deve fazer, fez uma obra cinematograficamente substanciosa, sem referências óbvias a outros cineastas, tampouco truques baratos. Kleber, ao contrário de outros cineastas inteligentes, não possui aquela necessidade narcisística de esfregar na cara dos outros os lances de gênio com os quais costurou seu longa-metragem. Na primeira vez que assisti a este filme, percebi, de pronto, que o som era, de fato, um personagem com vida própria. O diretor escapa do costume preguiçoso de muitos cineastas que escoram a maior parte das cenas de seus filmes na trilha sonora incidental. As cenas de tensão em "O Som ao Redor" são ressaltadas pela redução do tamanho dos planos, o que denota elegância no modo de filmar. Ainda sobre o som, pude perceber, ao reassistir ao filme, o quanto eles, ora antecipam as ações futuras, ora evocam o passado em certos ambientes. Outro ponto a favor está na homogeneidade das atuações. Não raro, filmes brasileiros com temática social (ou que dela partem) cuidam mais da "mensagem" a ser transmitida do que da direção de atores, motivo pelo qual acabam saindo irregulares, em muitos casos (como aconteceu em vários filmes de Sérgio Bianchi). Nesse aspecto, Kleber soube conduzir seu elenco adequadíssimo com uma sutileza incrível, sem pregar a câmera nos intérpretes nem tratá-los com pouco caso. Aos que reclamaram do som relativamente baixo em alguns diálogos, digo que é uma crítica injusta. Além da intencionalidade na variação de volume, é um elemento a incrementar a verossimilhança das atuações. Até porque um ponto fraco em muitos filmes brasileiros é o excesso de gritaria de seus personagens quando não é necessário fazê-lo. E aqui, os gritos só acontecem quando realmente é preciso. Também louvo a ausência de um cacoete típico de certos filmes construídos como um grande painel humano: a obrigatoriedade de todos os protagonistas conhecerem uns aos outros.
Embora vivam na mesma rua, Bia, a dona de casa entediada vivida por Maeve Jinkings e João, o corretor de imóveis interpretado por Gustavo Jahn nunca se encontram. Se fosse um filme-coral vulgar, haveria algum Deus ex-machina para forçá-los a se encontrar. Outra sutileza admirável é a forma como o final do namoro entre João e Sofia (Irma Brown) é antecipado, quando ela omite a expressão "te amo" ao contar a ele a frase que picharam no asfalto da rua e, principalmente, à casa onde Sofia morava quando criança e João, suspendendo-a no ar, encosta a cabeça no púbis da amada, num gesto carinhoso que não é retribuído.
Há muito mais a dizer sobre "O Som ao Redor". Talvez ajude a explicar sua excelência trata-se de um filme composto por tantas camadas a merecerem análises isoladas e em conjunto.
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Para complementar, indico dois textos escritos sobre "O Som ao Redor" para o site Lumi7.
Gretchen, enquanto ícone popular, já merecia um documentário há tempos. E a proposta de focá-lo na sua tentativa de abandonar a carreira artística para se voltar à política concede ao filme não apenas uma abordagem original, mas também um ótimo retrato das dificuldades vividas por quem se aventura na busca por votos, vindo de um ambiente estranho ao político-partidário. Em cenas emblemáticas, demonstra-se claramente a dificuldade em ser honesto na política brasileira e as tentações para passar para o outro lado. Enquanto isso, Gretchen, mesmo decidida a aposentar sua persona artística, segue rebolando em palcos mambembes para sustentar a própria família e sua campanha eleitoral. Não fosse por alguns sociologismos fora do tom, "Gretchen Filme Estrada" poderia ser um retrato ainda mais intenso de uma personalidade tão forte no imaginário de gerações de brasileiros. Mesmo assim, é um documentário digno. E honesto inclusive na mensagem inicial, informando que sua produção não recorreu a nenhum tipo de incentivo fiscal. Se por princípio ou por falta de escolha, não faço ideia. Mas que serve de bom exemplo, isso serve.
Creio ser injusto desqualificar um filme por conta do hype ao seu redor. Contudo, não tenho por que me intimidar por não elevar "Amor" ao status de obra prima, contrariando os deslumbrados de plantão. Adianto que o problema está no tipo de cinema que Michael Haneke se propõe a fazer. Impressionante o quanto certos críticos, desses com vários seguidores (alguns bastante caolhos), exaltam os truques de circo do Sr. Haneke como se fossem lances geniais. Pior que isso: exaltam a misantropia abjeta do cineasta austríaco, tomando-a apenas por uma fuga do sentimentalismo óbvio. Não que eu seja um defensor dum cinema diametralmente oposto, derramado demais. Apenas não compro o discurso de que, em nome duma pretensa originalidade, tenhamos que encarar a desidratação de sentimentos como um norte para o cinema contemporâneo. A escolha de Haneke em ambientar "Amor" apenas em lugares fechados, quase todos limitados ao apartamento onde vive o casal protagonista, presta-se à sua concepção fria do mundo. No entanto, falta algum respiradouro, algum alento, algo para não botar a perder a ótima premissa baseada nos limites do amor quando uma das partes começa a definhar aos poucos. Boa parte do meu apreço a este filme se deve unicamente a Jean-Louis Trintignant e a Emmanuelle Riva. É graças a eles (e, em menor medida, a Isabelle Huppert) que este filme não chega ao estágio de folha morta. Em tempo: quem nasceu para Haneke nunca chegará a Bresson.
A cena inicial, uma das melhores conjunções entre cinema e artes plásticas que vi até hoje, pressentia um possível clássico. O retrato dos costumes na Europa do século XV também indicava algo nesse rumo. Contudo, a despeito do grande apuro visual, da ausência de firulas cinematográficas e das atuações homogêneas (destaque óbvio para o vivido Rutger Hauer), algo parece ter desandado na meia hora final. A busca pela fidedignidade tanto histórica quanto pictórica se sobrepôs a outros elementos. Mesmo assim, "O Moinho e a Cruz" é um entretenimento elevado, cujas concepções visuais são, no mínimo, honestas.
Ainda comentarei sobre o filme. Mas preciso confessar a vocês: por não prestar atenção nos créditos, tampouco ter lido muito sobre o filme antes de vê-lo, tomei um susto quando descobri que a turista inglesa era a Gillian Anderson! Quanta diferença! Bem que eu achei familiar aquele rosto!
Se o mundo vier mesmo a acabar, poderia ser conforme a vida dos habitantes da cidade quase-fantasma deste filme. A rotina do lugar segue tão monótona quanto bem entrosada. E a padeira da região é um desses elementos remanescentes dum tempo em que os trens avivavam parte do interior do país. "Histórias que..." aproveita bem o contexto para ser lento e contemplativo quando necessário. A presença da jovem fotógrafa, mais parecida com uma fugitiva dum show do Strokes, cria um contraste às vezes incômodo, em especial porque ela, ao mesmo tempo em que representa o novo por sua pouca idade, é dessas nostálgicas de tempos que não viveu. Embora tenha alguns momentos em que o tempo parece passar mais devagar que o normal, o filme mantém-se graças aos excelentes Sônia Guedes e Luiz Serra, à fotografia que aproveita bem a luz vinda de lampiões e a trilha sonora dosada com equilíbrio no mais das vezes. Para desacelerar deste mundo urbano e aloprado.
"Para onde você passa? Para onde as coisas passam? Quando o orgulho esmaga as asas O tempo é um pássaro de natureza vaga" ("Orgulho", Paulinho da Viola e Capinam)
Mesmo antes deste filme, já considerava Ugo Giorgetti um cineasta cujo discurso não destoava da sua representação audiovisual. Em "O Príncipe", ele leva sua visão abrangente da sociedade brasileira ao paroxismo por meio da trajetória de um (auto?)exilado retomando contato com a família e os amigos após uma geração inteira fora do seu país natal. Impressionante o quanto Giorgetti é habilidoso ao enviar pequenos e grandes recados ao Brasil do começo do século XXI, época do lançamento deste filme, sem recorrer a nenhum didatismo. E, como é de costume em sua filmografia, há um espaço considerável para os atores brilharem. E embora todos estejam mais do que adequados aos seus papeis, Otávio Augusto, em sua caracterização etilicamente doce-amargurada, é quem mais cria impacto ao aparecer na tela. Outro ponto válido é a crítica ao ensino por meio de um professor aparentemente lunático (Ricardo Blat), por quem acabamos criando simpatia, se comparados com seus colegas de profissão aqui retardado.
E mesmo o mote da trama, que é a procura por Maria Cristina, consuma-se numa cena a um só tempo dotada de crítica social, ternura e desencanto.
Eu poderia dizer mais coisas por aqui. Mas o impacto que esse filme me causou só não é maior do que minha tristeza por não terem oferecido o devido valor a esta obra-prima do cinema brasileiro deste século.
Não basta dizer que este é o mais bem elaborado dos filmes dos Trapalhões, em termos dramatúrgicos. Em vez de usarem a peça de Ariano Suassuna como veículo para exporem suas facetas habituais dos programas de televisão e em boa parte de seus filmes, o então quarteto tratou o texto original com respeito e dignidade mil vezes maiores do que a famigerada versão de Guel Arraes, que nem cinema chega a ser, embora (infelizmente) seja mais conhecida pelo grande público. Em certos momentos, chama a atenção o modo como Didi, Dedé, Mussum e Zacarias comprovam a velha máxima, às vezes exagerada, de que todo humorista se sobressai quando em momentos dramáticos.
A presença de Raul Cortez interpretando o major e o Diabo é um achado dos mais dignos, bem como a atuação também dupla de Mussum, nos papéis do sacristão e do próprio Jesus Cristo.
Os demais coadjuvantes não fazem feio, com destaque para José Dumont encarnando o líder dos cangaceiros. E, por fim, é importante destacar o trabalho eficiente de Roberto Farias na direção. A ambientação realmente nos situa em uma cidade do interior nos confins do Nordeste, aliando a aridez do clima com a leveza de momentos feito a narração do palhaço vivido por Luiz Armando Queiroz. Podem esfregar na cara todos os milhões de bilheteria, as reprises exautivas na "Sessão da Tarde" e o colorido que for da versão com Mateus Nachtergale e Selton Mello, mas não troco a versão "trapalhona" d'O Auto da Compadecida por nenhuma outra que já tenha sido feita para o cinema. Muito menos para a televisão.
A sinceridade de um documentarista quanto aos seus ideais torna seus filmes mais críveis. Em "Os EUA x John Lennon", embora constem depoimentos de ex-agentes do FBI e de um ex-chefe de gabinete do governo Richard Nixon, há uma simpatia explícita quanto aos ativistas políticos dos loucos anos 60 e 70, em particular os Panteras Negras e os Yippies. Mesmo com esse direcionamento ideológico, o filme cumpre sua função em mostrar o mal que um governante paranoico feito Nixon pode causar não apenas ao seu país, mas também ao sentido da palavra democracia. Afinal, como classificar um governo mais preocupado com as opiniões de um músico pacifista do que com as vidas dos jovens que mandou para a inglória guerra no Vietnã? O uso das músicas dos Beatles e da carreira solo de John é uma das maiores qualidades aqui presentes. Até mesmo as letras selecionadas combinam com o contexto. No entanto, o ritmo do documentário cai reiteradas vezes, o que é um perigo em se tratando de uma premissa tão empolgante. Mesmo assim, "Os EUA vs. John Lennon" é importante para conhecermos melhor um lado menos visado desse lendário cantor. E para provar que consciência política e arte, apesar de ser uma mistura perigosa, não raro indigesta, às vezes funciona.
Aqui, Burman consegue equacionar de forma eficiente a visão ampla do contexto social de seu país com as qualidades dos tais "filmes de ator". Porque a concentração da narrativa na relação instável entre os irmãos Marcos e Susana, já passados da meia-idade, poderia fazer com que os méritos se reduzissem ao deleitoso duelo de atuações entre Graciela Borges e Antonio Gasalla. Felizmente, Daniel Burman apresenta elementos discretos de modo a manter a sua visão político-social da Argentina, dum modo mais sutil do que nunca. Drama e comédia se aliam com naturalidade, embora o resultado pudesse ser mais sólido se a duração do filme fosse um pouco menor.
Outro ponto elogiável é a forma como aborda a homossexualidade de Marcos, tanto pelo flerte com o professor de teatro quanto pela discussão com a irmã, na qual a sua condição vem à tona.
No fim, "Dois Irmãos" é um filme adorável, digno do melhor do cinema argentino.
"As Leis de Família" encerra uma trilogia incomum. Embora este e os filmes anteriores de Daniel Burman, "Esperando o Messias" e "O Abraço Partido", contem com um protagonista chamado Ariel, interpretado por Daniel Hendler nas três produções, os demais personagens diferem dum filme para o outro. Não obstante, é possível delimitar uma sequência de amadurecimento na vida de um jovem argentino em meio à crise financeira de seu país e à sua própria crise interna. Em "As Leis da Família", o retrato é mais intimista que nos demais. O Ariel da vez agora lida com processos judiciais, seguindo a carreira do pai, além de ser professor numa faculdade. A paixão por uma aluna, a subsequente união e, o fator novo na história, a paternidade inédita concedem um olhar menos tenso e mais gracioso, se comparado com os títulos passados. Um filme terno, capaz de falar até mesmo a quem não se identificaria, a princípio, com a situação de Ariel.
As qualidades de "Esperando o Messias" sem os seus defeitos. Falando assim, fica fácil demais definir "O Abraço Partido". Contudo, irei além. Aqui, a crise econômica argentina na década passada ganha um retrato mais elaborado. A pretensão do protagonista de emigrar para a Polônia dos seus antepassados serve de pretexto para falar de outras questões, ligadas também à sua relação com o pai que abandonou a família para lutar no exército de Israel, radicando-se por ali. Sua relação sem futuro com a namorada e o modo como lida com sua mãe e seu irmão combinam muito bem com a sensação de cerramento de portas que predomina neste filme. Apesar disso, há um ou outro alívio cômico, ao modo sutil dos argentinos. E alguma poesia em meio ao cotidiano desalentador. Tudo isso justifica a onda feita em torno de "O Abraço Partido", que certamente está na lista dos melhores filmes argentinos dos anos 2000, até agora.
Drama melancólico, como acontece com todos aqueles realizados em tempos de crise financeira. Os ótimos desempenhos do elenco multinacional são irrepreensíveis. Contudo, o ritmo do filme desanda em vários momentos, eclipsando o clima de desencanto que perpassa a trama. Daniel Burman faria melhor em outros filmes.
Ótima peça, adaptada para o cinema com alguma eficiência. O desempenho do elenco é a melhor qualidade deste filme. Contudo, acaba meio aquém do esperado. Especialmente por quem esperava mais arroubos cinematográficos. A reconferir.
Daquela espécie de documentário que já seria fundamental apenas pelo tema abordado. Claro que somente o assunto não justifica a valorização de qualquer filme. Porém, é difícil não resistir à ideia de um museu construído em meio à opressão da União Soviética, onde exemplares da cultura milenar da região escaparam da sanha totalitária do governo de Moscou. Igor Savitsky, o visionário fundador do Museu de Nukus, nos confins do Uzbequistão, é retratado tanto quanto um apaixonado pela arte quanto um obcecado que arriscou a vida inúmeras vezes apenas para que a mão pesada do Estado soviético não arruinasse o que conseguiu preservar da arte local. O uso das imagens de arquivo, combinado com os depoimentos precisos e bem selecionados, configura um trabalho elogiável, capaz de cativar até mesmo os possíveis defensores de certas ideologias, certamente cegos e surdos perante trajetórias corajosas quanto a de Savitstky. Recomendável a todos os espíritos livres.
Mais uma comédia estilizada de François Ozon. Ou seja: uma cenografia detalhista, figurinos bem combinados, atuações no limite do farsesco e alguma subversão sexual. Digamos que Ozon, talvez pela experiência acumulada nos últimos tempos, esteja apurando suas arestas para melhor dizer o que pretende. Até mesmo o viés gay que é uma constante em sua obra aparece bastante mitigado neste filme. Por sua vez, a origem teatral do roteiro às vezes consegue ser bem camuflada. Contudo, talvez por isso e por falta agilidade ao filme, "Potiche" resulte menor do que poderia ser. Ao menos o elenco parece atuar com um prazer genuíno. Em especial Catherine Deneuve, visivelmente agradecida por um papel tão fabuloso. Por ela e por alguns outros poucos méritos, "Potiche" consegue ser mais do que um mero enfeite cinematográfico.
Embora não alcance o nível preciso de comédia atingido por "Na Mira do Chefe", o trabalho anterior do cineasta Martin McDonaugh, "Sete Psicopatas" consegue divertir em muitos momentos, tanto pelos diálogos espirituosos quanto pelas referências à cultura pop que aparecem de forma sutil ao longo da projeção.
Do sequestro de Patty Heart ao filme "Paris, Texas" (vide o cenário onde o personagem de Christopher Walken morre).
O excesso de metalinguagem no roteiro às vezes incomoda, como se Martin, seu autor, tivesse a necessidade de se afirmar a todo instante. Contudo, o elenco eficiente e os bons enquadramentos, parodiando os clichês de vários filmes de ação, compensa. Afinal, cinema também se presta à diversão.
As imagens iniciais pareciam auspiciosas. O granulado da imagem ajuda o espectador a mergulhar no espírito da época em que este filme foi produzido. Além dos elementos de cena muito bem escolhidos, em especial o fliperama. Contudo, embora os personagens sejam mais cativantes do que em "Sangue Ruim", por exemplo, o roteiro acaba perdido em momentos cruciais. E, assim como aconteceu no filme seguinte, não há grandes chances de nos emocionarmos com a história de amor aqui apresentada. Aliás, pude perceber, ao ver os três primeiros longas de Leos Carax, elementos em comum que fazem pensá-las como uma trilogia.
Senão, vejamos: em ambos, há cenas ambientadas no metrô de Paris e em suas estações; o Rio Sena e a Pont Neuf são uma constante; Denis Levant, o ator preferido de Carax, interpreta nas três produções jovens desajustados que se apaixona por mulheres que não correspondem ao seu sentimento na mesma medida, ao menos aparentemente; etc.
É muito agradável notar essa preocupação de Carax em buscar uma marca autoral, a qual pretendo conferir nos seus filmes seguintes a "Os Amantes da Pont Neuf" para saber se persistiram. Por ora, considero "Boy Meets Girl" uma bela tentativa.
Não aprecio filmes que, apesar de esteticamente bem apurados, são desprovidos de clima. Apesar do termo genérico, considero climático todo filme que não apenas me prenda a atenção, mas que permaneça na minha lembrança por algum tempo após visto. Eis uma razão para não ter apreciado "Sangue Ruim". O bom mote, uma alusão à epidemia de aids da década de 80, acaba desperdiçado num roteiro sem rumo, onde a única linha digna de nota é a relação do jovem Alex com sua namorada e com a mulher do homem que o chama para participar do roubo da vacina para a STBO. Porém, até mesmo a visão do amor neste filme acaba prejudicada. Dificilmente se poderia imaginar que, no seu longa-metragem seguinte, "Os Amantes da Ponte Neuf", ele apresentaria esse sentimento de um modo mais bem resolvido. Outro problema em "Sangue Ruim" está na falta de empatia com os personagens principais. Nem mesmo pelo amoroso protagonista. Em dado ponto, cheguei a não querer mais saber que destino teriam. E esse é um defeito próximo do intolerável em qualquer filme. Apenas a fotografia estilizada e alguns planos-detalhes restam de aproveitáveis em "Sangue Ruim". E isso é pouco.
Este é o primeiro filme do Carax a que assisti na vida. Sabendo tanto do deslumbre com o qual é tratado por certos cinéfilos quanto do desprezo que causa noutros, conferi "Os Amantes da Pont Neuf" na tela grande, como se deve. E o resultado? Gostei demasiado! O uso constante de planos-detalhe encontra abrigo em um roteiro emocionalmente dolorido, onde o amor tanto serve de tábua de salvação quanto de aprisionamento. A fotografia límpida a retratar as tristes cenas do abrigo para indigentes ao qual Alex é recolhido no começo do filme não tenta mascarar a situação deprimente em que vivem os que já nada possuem. O modo como os inserts são apresentados ao longo da projeção combina com a trilha sonora muito bem selecionada entre composições eruditas, as indefectíveis chansons francesas e David Bowie. Quase impossível não se identificar com os sentimentos do desencaminhado Alex pela pintora Michele, igualmente à deriva. Porém, os seus motivos são mais delineados: uma paixão falhada e sua progressiva cegueira. Mostrar o quanto as circunstâncias a princípio desfavoráveis, o ambiente hostil para os moradores de rua e a falta de perspectivas em destaque, podem levar ao amor, apesar de, ou talvez por causa delas. A entrega dos intérpretes principais deste filme é outro ponto positivo. Conseguem ser convincentes sem aquela afetação típica de quem "mergulha" no personagem a qualquer custo. Todo filme que consegue causar as emoções mais díspares ao longo de sua trama merece, desde já, alguma consideração. E quando esse feito vem acompanhado de uma concepção visual à altura, temos "Os Amantes da Ponte Neuf", uma obra que conseguiu sobreviver bem ao hype que acompanhou seu surgimento.
Talvez em resposta ao hype excessivo que a trilogia "Matrix" obteve, ou mesmo à grande onda que fizeram para "Corra, Lola, Corra", as expectativas de muitas pessoas, inclusive as minhas, quanto a "Cloud Atlas" (nada desse título nacional apelando à novela espírita homônima) não eram animadoras. Felizmente, enganei-me. "Cloud Atlas" se vale da estrutura de super produção para apresentar um mosaico de personagens, linhas temporais, conceitos metafísicos e apuro estético irreprovável. Como se não bastasse, aproveita o melhor da versatilidade de um grupo de atores que proporcionam o divertimento paralelo de adivinhar quem está por baixo da intensa maquiagem e efeitos deste ou daquele personagem. Descontada a trilha sonora por vezes óbvia e excessiva, o filme consegue capturar a atenção durante quase três horas de projeção. Um feito e tanto, em tempos de déficit de atenção generalizado. Em particular, chama a atenção o modo como apresenta direta e elegantemente a relação amorosa entre o compositor Robert Frobisher e o físico Rufus Sixsmith. Ou mesmo o modo como Sonmi-451 e Hae-Joo Im se unem, descobrindo o amor de uma forma poética em meio a um contexto hostil. Mais importante, contudo, é a ótima sensação de ter aproveitado muito bem o tempo na sala de cinema. Torço para que o futuro seja mais grato com esse filme.
Bergman é um desses nomes incontornáveis para quem se diz cinéfilo. Contudo, não se pode avaliar tudo o que ele fez como genial, até porque isso seria virtualmente impossível para qualquer pessoa. Até mesmo para um mestre. Reconhecer as limitações da sua estreia no cinema ajuda a valorizar suas maiores qualidades. É natural que todo interessado em analisar a alma humana com profundidade, nas primeiras tentativas, resvale no sentimentalismo. Em "Crise", temos o conflito inicial da jovem Nelly entre permanecer na aldeia com sua amorosa e dependente mãe de criação e seguir para a cidade grande com sua genitora biológica, ela mesma saída do interior em circunstâncias outrora desmoralizantes. Não fosse a presença insólita do malandro Jack, em especial no diálogo travado com a sofrida Ingeborg, a mãe postiça de Nelly, "Crise" não envelheceria muito bem. Os enquadramentos seguem eficazes, bem como a concepção visual. Contudo, vez ou outra, paga-se mais tributo ao teatro do que ao cinema neste filme. Ainda é um filme válido, mesmo que não seja uma carta de intenções completa do estilo bergmaniano.
Não se deve deixar levar pelo culto dedicado a certos filmes ao se avaliá-los. "Mad Max" é tomado por uma memorável ficção científica de baixo orçamento, que revelou Mel Gibson a Hollywood (para o bem ou para o mal?) e levou muita gente a prestar atenção ao cinema australiano. Nada disso, porém, impediu que eu sentisse um tédio profundo em boa parte desse filme. Se é para retratar um futuro apocalíptico, necessário criar alguma empatia no espectador, em vez de fazer um desfile de carros e motos se batendo na estrada por puro virtuosismo. Quanto aos personagens, não há um grande delineamento de praticamente nenhum deles. Até mesmo as poucas cenas dignas de maior interesse empalidecem perante o resto. As únicas qualidades de "Mad Max" são justamente as suas restrições orçamentárias e o modo como foram contornadas. De resto, a fama é menor do que a fortuna.
O Indomado
4.0 52 Assista Agora“O Indomado” transpira o mesmo desencanto de outra adaptação de um livro de Larry McMurtry, “A Última Sessão de Cinema”. Ambos os filmes trazem, inclusive, referências nostálgicas quanto ao cinema. Martin Ritt, em mais uma parceria frutífera com Paul Newman, apresenta o confronto da tradição e da honestidade encarnadas no velho fazendeiro Homer (Melvyn Douglas) em face ao exato contrário em seu filho dissoluto. No meio do caminho, o jovem Lonnie (Brandon de Wilde), indeciso sobre qual partido tomar. E a empregada Alma (Patricia Neal), mesmo enquanto sucedâneo da figura materna na casa dos Bannon, é alvo dos desejos de Hud e de seu sobrinho. Há também referências enviesadas ao microcosmo do faroeste: o ambiente inóspito, a rudeza nos modos, Elmer Bernstein (“Sete Homens e Um Destino”) na trilha sonora e Brandon de Wilde (precocemente falecido), o célebre menino de “Os Brutos Também Amam”. Resumindo: “O Indomado” é um filme daqueles que deixam um travo na garganta de quem os encarar.
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Leiam também a interpretação de Marcio Sallem para "O Indomado", no Lumi7:
O Som ao Redor
3.8 1,1K Assista Agora"O Som ao Redor" é um filme em camadas.
Não me refiro à estrutura divida em três atos, mas sim aos elementos que se depreendem a cada leitura.
Quando assisti ao filme pela primeira vez, impressionei-me com as imagens sendo usadas para realmente contar a história, em vez de meramente ilustrá-la.
Não percebi nenhuma cena sobrando. Nada de gratuito, discursivo ou demagogo.
E considerando a crítica social a que se presta "O Som ao Redor", o risco dele resultar num estudo sociológico de boteco era patente.
Felizmente, Kleber Mendonça Filho soube valer seu histórico enquanto crítico de cinema. Observando o que se deve e o que não se deve fazer, fez uma obra cinematograficamente substanciosa, sem referências óbvias a outros cineastas, tampouco truques baratos. Kleber, ao contrário de outros cineastas inteligentes, não possui aquela necessidade narcisística de esfregar na cara dos outros os lances de gênio com os quais costurou seu longa-metragem.
Na primeira vez que assisti a este filme, percebi, de pronto, que o som era, de fato, um personagem com vida própria. O diretor escapa do costume preguiçoso de muitos cineastas que escoram a maior parte das cenas de seus filmes na trilha sonora incidental. As cenas de tensão em "O Som ao Redor" são ressaltadas pela redução do tamanho dos planos, o que denota elegância no modo de filmar.
Ainda sobre o som, pude perceber, ao reassistir ao filme, o quanto eles, ora antecipam as ações futuras, ora evocam o passado em certos ambientes.
Outro ponto a favor está na homogeneidade das atuações.
Não raro, filmes brasileiros com temática social (ou que dela partem) cuidam mais da "mensagem" a ser transmitida do que da direção de atores, motivo pelo qual acabam saindo irregulares, em muitos casos (como aconteceu em vários filmes de Sérgio Bianchi).
Nesse aspecto, Kleber soube conduzir seu elenco adequadíssimo com uma sutileza incrível, sem pregar a câmera nos intérpretes nem tratá-los com pouco caso.
Aos que reclamaram do som relativamente baixo em alguns diálogos, digo que é uma crítica injusta. Além da intencionalidade na variação de volume, é um elemento a incrementar a verossimilhança das atuações. Até porque um ponto fraco em muitos filmes brasileiros é o excesso de gritaria de seus personagens quando não é necessário fazê-lo. E aqui, os gritos só acontecem quando realmente é preciso.
Também louvo a ausência de um cacoete típico de certos filmes construídos como um grande painel humano: a obrigatoriedade de todos os protagonistas conhecerem uns aos outros.
Embora vivam na mesma rua, Bia, a dona de casa entediada vivida por Maeve Jinkings e João, o corretor de imóveis interpretado por Gustavo Jahn nunca se encontram. Se fosse um filme-coral vulgar, haveria algum Deus ex-machina para forçá-los a se encontrar.
Outra sutileza admirável é a forma como o final do namoro entre João e Sofia (Irma Brown) é antecipado, quando ela omite a expressão "te amo" ao contar a ele a frase que picharam no asfalto da rua e, principalmente, à casa onde Sofia morava quando criança e João, suspendendo-a no ar, encosta a cabeça no púbis da amada, num gesto carinhoso que não é retribuído.
Há muito mais a dizer sobre "O Som ao Redor". Talvez ajude a explicar sua excelência trata-se de um filme composto por tantas camadas a merecerem análises isoladas e em conjunto.
§§§§§§§
Para complementar, indico dois textos escritos sobre "O Som ao Redor" para o site Lumi7.
Gretchen: Filme Estrada
3.8 115Gretchen, enquanto ícone popular, já merecia um documentário há tempos.
E a proposta de focá-lo na sua tentativa de abandonar a carreira artística para se voltar à política concede ao filme não apenas uma abordagem original, mas também um ótimo retrato das dificuldades vividas por quem se aventura na busca por votos, vindo de um ambiente estranho ao político-partidário.
Em cenas emblemáticas, demonstra-se claramente a dificuldade em ser honesto na política brasileira e as tentações para passar para o outro lado.
Enquanto isso, Gretchen, mesmo decidida a aposentar sua persona artística, segue rebolando em palcos mambembes para sustentar a própria família e sua campanha eleitoral.
Não fosse por alguns sociologismos fora do tom, "Gretchen Filme Estrada" poderia ser um retrato ainda mais intenso de uma personalidade tão forte no imaginário de gerações de brasileiros.
Mesmo assim, é um documentário digno. E honesto inclusive na mensagem inicial, informando que sua produção não recorreu a nenhum tipo de incentivo fiscal.
Se por princípio ou por falta de escolha, não faço ideia.
Mas que serve de bom exemplo, isso serve.
Amor
4.2 2,2K Assista AgoraCreio ser injusto desqualificar um filme por conta do hype ao seu redor.
Contudo, não tenho por que me intimidar por não elevar "Amor" ao status de obra prima, contrariando os deslumbrados de plantão.
Adianto que o problema está no tipo de cinema que Michael Haneke se propõe a fazer.
Impressionante o quanto certos críticos, desses com vários seguidores (alguns bastante caolhos), exaltam os truques de circo do Sr. Haneke como se fossem lances geniais.
Pior que isso: exaltam a misantropia abjeta do cineasta austríaco, tomando-a apenas por uma fuga do sentimentalismo óbvio.
Não que eu seja um defensor dum cinema diametralmente oposto, derramado demais.
Apenas não compro o discurso de que, em nome duma pretensa originalidade, tenhamos que encarar a desidratação de sentimentos como um norte para o cinema contemporâneo.
A escolha de Haneke em ambientar "Amor" apenas em lugares fechados, quase todos limitados ao apartamento onde vive o casal protagonista, presta-se à sua concepção fria do mundo.
No entanto, falta algum respiradouro, algum alento, algo para não botar a perder a ótima premissa baseada nos limites do amor quando uma das partes começa a definhar aos poucos.
Boa parte do meu apreço a este filme se deve unicamente a Jean-Louis Trintignant e a Emmanuelle Riva.
É graças a eles (e, em menor medida, a Isabelle Huppert) que este filme não chega ao estágio de folha morta.
Em tempo: quem nasceu para Haneke nunca chegará a Bresson.
O Moinho e a Cruz
4.0 37A cena inicial, uma das melhores conjunções entre cinema e artes plásticas que vi até hoje, pressentia um possível clássico.
O retrato dos costumes na Europa do século XV também indicava algo nesse rumo.
Contudo, a despeito do grande apuro visual, da ausência de firulas cinematográficas e das atuações homogêneas (destaque óbvio para o vivido Rutger Hauer), algo parece ter desandado na meia hora final.
A busca pela fidedignidade tanto histórica quanto pictórica se sobrepôs a outros elementos.
Mesmo assim, "O Moinho e a Cruz" é um entretenimento elevado, cujas concepções visuais são, no mínimo, honestas.
Minha Irmã
3.7 97 Assista AgoraAinda comentarei sobre o filme. Mas preciso confessar a vocês: por não prestar atenção nos créditos, tampouco ter lido muito sobre o filme antes de vê-lo, tomei um susto quando descobri que a turista inglesa era a Gillian Anderson!
Quanta diferença!
Bem que eu achei familiar aquele rosto!
Histórias Que Só Existem Quando Lembradas
4.1 283 Assista AgoraSe o mundo vier mesmo a acabar, poderia ser conforme a vida dos habitantes da cidade quase-fantasma deste filme.
A rotina do lugar segue tão monótona quanto bem entrosada. E a padeira da região é um desses elementos remanescentes dum tempo em que os trens avivavam parte do interior do país.
"Histórias que..." aproveita bem o contexto para ser lento e contemplativo quando necessário.
A presença da jovem fotógrafa, mais parecida com uma fugitiva dum show do Strokes, cria um contraste às vezes incômodo, em especial porque ela, ao mesmo tempo em que representa o novo por sua pouca idade, é dessas nostálgicas de tempos que não viveu.
Embora tenha alguns momentos em que o tempo parece passar mais devagar que o normal, o filme mantém-se graças aos excelentes Sônia Guedes e Luiz Serra, à fotografia que aproveita bem a luz vinda de lampiões e a trilha sonora dosada com equilíbrio no mais das vezes.
Para desacelerar deste mundo urbano e aloprado.
O Príncipe
3.4 9"Para onde você passa?
Para onde as coisas passam?
Quando o orgulho esmaga as asas
O tempo é um pássaro de natureza vaga"
("Orgulho", Paulinho da Viola e Capinam)
Mesmo antes deste filme, já considerava Ugo Giorgetti um cineasta cujo discurso não destoava da sua representação audiovisual.
Em "O Príncipe", ele leva sua visão abrangente da sociedade brasileira ao paroxismo por meio da trajetória de um (auto?)exilado retomando contato com a família e os amigos após uma geração inteira fora do seu país natal.
Impressionante o quanto Giorgetti é habilidoso ao enviar pequenos e grandes recados ao Brasil do começo do século XXI, época do lançamento deste filme, sem recorrer a nenhum didatismo.
E, como é de costume em sua filmografia, há um espaço considerável para os atores brilharem. E embora todos estejam mais do que adequados aos seus papeis, Otávio Augusto, em sua caracterização etilicamente doce-amargurada, é quem mais cria impacto ao aparecer na tela.
Outro ponto válido é a crítica ao ensino por meio de um professor aparentemente lunático (Ricardo Blat), por quem acabamos criando simpatia, se comparados com seus colegas de profissão aqui retardado.
E mesmo o mote da trama, que é a procura por Maria Cristina, consuma-se numa cena a um só tempo dotada de crítica social, ternura e desencanto.
Eu poderia dizer mais coisas por aqui. Mas o impacto que esse filme me causou só não é maior do que minha tristeza por não terem oferecido o devido valor a esta obra-prima do cinema brasileiro deste século.
Os Trapalhões no Auto da Compadecida
3.4 62 Assista AgoraNão basta dizer que este é o mais bem elaborado dos filmes dos Trapalhões, em termos dramatúrgicos.
Em vez de usarem a peça de Ariano Suassuna como veículo para exporem suas facetas habituais dos programas de televisão e em boa parte de seus filmes, o então quarteto tratou o texto original com respeito e dignidade mil vezes maiores do que a famigerada versão de Guel Arraes, que nem cinema chega a ser, embora (infelizmente) seja mais conhecida pelo grande público.
Em certos momentos, chama a atenção o modo como Didi, Dedé, Mussum e Zacarias comprovam a velha máxima, às vezes exagerada, de que todo humorista se sobressai quando em momentos dramáticos.
A presença de Raul Cortez interpretando o major e o Diabo é um achado dos mais dignos, bem como a atuação também dupla de Mussum, nos papéis do sacristão e do próprio Jesus Cristo.
Os demais coadjuvantes não fazem feio, com destaque para José Dumont encarnando o líder dos cangaceiros.
E, por fim, é importante destacar o trabalho eficiente de Roberto Farias na direção. A ambientação realmente nos situa em uma cidade do interior nos confins do Nordeste, aliando a aridez do clima com a leveza de momentos feito a narração do palhaço vivido por Luiz Armando Queiroz.
Podem esfregar na cara todos os milhões de bilheteria, as reprises exautivas na "Sessão da Tarde" e o colorido que for da versão com Mateus Nachtergale e Selton Mello, mas não troco a versão "trapalhona" d'O Auto da Compadecida por nenhuma outra que já tenha sido feita para o cinema. Muito menos para a televisão.
Os EUA X John Lennon
4.1 77 Assista AgoraA sinceridade de um documentarista quanto aos seus ideais torna seus filmes mais críveis.
Em "Os EUA x John Lennon", embora constem depoimentos de ex-agentes do FBI e de um ex-chefe de gabinete do governo Richard Nixon, há uma simpatia explícita quanto aos ativistas políticos dos loucos anos 60 e 70, em particular os Panteras Negras e os Yippies.
Mesmo com esse direcionamento ideológico, o filme cumpre sua função em mostrar o mal que um governante paranoico feito Nixon pode causar não apenas ao seu país, mas também ao sentido da palavra democracia.
Afinal, como classificar um governo mais preocupado com as opiniões de um músico pacifista do que com as vidas dos jovens que mandou para a inglória guerra no Vietnã?
O uso das músicas dos Beatles e da carreira solo de John é uma das maiores qualidades aqui presentes.
Até mesmo as letras selecionadas combinam com o contexto.
No entanto, o ritmo do documentário cai reiteradas vezes, o que é um perigo em se tratando de uma premissa tão empolgante.
Mesmo assim, "Os EUA vs. John Lennon" é importante para conhecermos melhor um lado menos visado desse lendário cantor. E para provar que consciência política e arte, apesar de ser uma mistura perigosa, não raro indigesta, às vezes funciona.
Dois Irmãos
3.4 44 Assista AgoraAqui, Burman consegue equacionar de forma eficiente a visão ampla do contexto social de seu país com as qualidades dos tais "filmes de ator".
Porque a concentração da narrativa na relação instável entre os irmãos Marcos e Susana, já passados da meia-idade, poderia fazer com que os méritos se reduzissem ao deleitoso duelo de atuações entre Graciela Borges e Antonio Gasalla.
Felizmente, Daniel Burman apresenta elementos discretos de modo a manter a sua visão político-social da Argentina, dum modo mais sutil do que nunca.
Drama e comédia se aliam com naturalidade, embora o resultado pudesse ser mais sólido se a duração do filme fosse um pouco menor.
Outro ponto elogiável é a forma como aborda a homossexualidade de Marcos, tanto pelo flerte com o professor de teatro quanto pela discussão com a irmã, na qual a sua condição vem à tona.
No fim, "Dois Irmãos" é um filme adorável, digno do melhor do cinema argentino.
As Leis de Família
3.6 25"As Leis de Família" encerra uma trilogia incomum.
Embora este e os filmes anteriores de Daniel Burman, "Esperando o Messias" e "O Abraço Partido", contem com um protagonista chamado Ariel, interpretado por Daniel Hendler nas três produções, os demais personagens diferem dum filme para o outro.
Não obstante, é possível delimitar uma sequência de amadurecimento na vida de um jovem argentino em meio à crise financeira de seu país e à sua própria crise interna.
Em "As Leis da Família", o retrato é mais intimista que nos demais.
O Ariel da vez agora lida com processos judiciais, seguindo a carreira do pai, além de ser professor numa faculdade.
A paixão por uma aluna, a subsequente união e, o fator novo na história, a paternidade inédita concedem um olhar menos tenso e mais gracioso, se comparado com os títulos passados.
Um filme terno, capaz de falar até mesmo a quem não se identificaria, a princípio, com a situação de Ariel.
O Abraço Partido
3.6 28As qualidades de "Esperando o Messias" sem os seus defeitos.
Falando assim, fica fácil demais definir "O Abraço Partido".
Contudo, irei além.
Aqui, a crise econômica argentina na década passada ganha um retrato mais elaborado.
A pretensão do protagonista de emigrar para a Polônia dos seus antepassados serve de pretexto para falar de outras questões, ligadas também à sua relação com o pai que abandonou a família para lutar no exército de Israel, radicando-se por ali.
Sua relação sem futuro com a namorada e o modo como lida com sua mãe e seu irmão combinam muito bem com a sensação de cerramento de portas que predomina neste filme.
Apesar disso, há um ou outro alívio cômico, ao modo sutil dos argentinos.
E alguma poesia em meio ao cotidiano desalentador.
Tudo isso justifica a onda feita em torno de "O Abraço Partido", que certamente está na lista dos melhores filmes argentinos dos anos 2000, até agora.
Esperando o Messias
3.5 8 Assista AgoraDrama melancólico, como acontece com todos aqueles realizados em tempos de crise financeira.
Os ótimos desempenhos do elenco multinacional são irrepreensíveis.
Contudo, o ritmo do filme desanda em vários momentos, eclipsando o clima de desencanto que perpassa a trama.
Daniel Burman faria melhor em outros filmes.
O Que Você Faria?
3.7 113Ótima peça, adaptada para o cinema com alguma eficiência.
O desempenho do elenco é a melhor qualidade deste filme.
Contudo, acaba meio aquém do esperado. Especialmente por quem esperava mais arroubos cinematográficos.
A reconferir.
O Deserto da Arte Proibida
4.4 2Daquela espécie de documentário que já seria fundamental apenas pelo tema abordado.
Claro que somente o assunto não justifica a valorização de qualquer filme.
Porém, é difícil não resistir à ideia de um museu construído em meio à opressão da União Soviética, onde exemplares da cultura milenar da região escaparam da sanha totalitária do governo de Moscou.
Igor Savitsky, o visionário fundador do Museu de Nukus, nos confins do Uzbequistão, é retratado tanto quanto um apaixonado pela arte quanto um obcecado que arriscou a vida inúmeras vezes apenas para que a mão pesada do Estado soviético não arruinasse o que conseguiu preservar da arte local.
O uso das imagens de arquivo, combinado com os depoimentos precisos e bem selecionados, configura um trabalho elogiável, capaz de cativar até mesmo os possíveis defensores de certas ideologias, certamente cegos e surdos perante trajetórias corajosas quanto a de Savitstky.
Recomendável a todos os espíritos livres.
Potiche - Esposa Troféu
3.5 162Mais uma comédia estilizada de François Ozon.
Ou seja: uma cenografia detalhista, figurinos bem combinados, atuações no limite do farsesco e alguma subversão sexual.
Digamos que Ozon, talvez pela experiência acumulada nos últimos tempos, esteja apurando suas arestas para melhor dizer o que pretende.
Até mesmo o viés gay que é uma constante em sua obra aparece bastante mitigado neste filme.
Por sua vez, a origem teatral do roteiro às vezes consegue ser bem camuflada. Contudo, talvez por isso e por falta agilidade ao filme, "Potiche" resulte menor do que poderia ser.
Ao menos o elenco parece atuar com um prazer genuíno. Em especial Catherine Deneuve, visivelmente agradecida por um papel tão fabuloso.
Por ela e por alguns outros poucos méritos, "Potiche" consegue ser mais do que um mero enfeite cinematográfico.
Sete Psicopatas e um Shih Tzu
3.4 600Embora não alcance o nível preciso de comédia atingido por "Na Mira do Chefe", o trabalho anterior do cineasta Martin McDonaugh, "Sete Psicopatas" consegue divertir em muitos momentos, tanto pelos diálogos espirituosos quanto pelas referências à cultura pop que aparecem de forma sutil ao longo da projeção.
Do sequestro de Patty Heart ao filme "Paris, Texas" (vide o cenário onde o personagem de Christopher Walken morre).
O excesso de metalinguagem no roteiro às vezes incomoda, como se Martin, seu autor, tivesse a necessidade de se afirmar a todo instante.
Contudo, o elenco eficiente e os bons enquadramentos, parodiando os clichês de vários filmes de ação, compensa.
Afinal, cinema também se presta à diversão.
Boy Meets Girl
3.9 40 Assista AgoraAs imagens iniciais pareciam auspiciosas.
O granulado da imagem ajuda o espectador a mergulhar no espírito da época em que este filme foi produzido.
Além dos elementos de cena muito bem escolhidos, em especial o fliperama.
Contudo, embora os personagens sejam mais cativantes do que em "Sangue Ruim", por exemplo, o roteiro acaba perdido em momentos cruciais. E, assim como aconteceu no filme seguinte, não há grandes chances de nos emocionarmos com a história de amor aqui apresentada.
Aliás, pude perceber, ao ver os três primeiros longas de Leos Carax, elementos em comum que fazem pensá-las como uma trilogia.
Senão, vejamos: em ambos, há cenas ambientadas no metrô de Paris e em suas estações; o Rio Sena e a Pont Neuf são uma constante; Denis Levant, o ator preferido de Carax, interpreta nas três produções jovens desajustados que se apaixona por mulheres que não correspondem ao seu sentimento na mesma medida, ao menos aparentemente; etc.
Por ora, considero "Boy Meets Girl" uma bela tentativa.
Sangue Ruim
4.0 83 Assista AgoraNão aprecio filmes que, apesar de esteticamente bem apurados, são desprovidos de clima.
Apesar do termo genérico, considero climático todo filme que não apenas me prenda a atenção, mas que permaneça na minha lembrança por algum tempo após visto.
Eis uma razão para não ter apreciado "Sangue Ruim".
O bom mote, uma alusão à epidemia de aids da década de 80, acaba desperdiçado num roteiro sem rumo, onde a única linha digna de nota é a relação do jovem Alex com sua namorada e com a mulher do homem que o chama para participar do roubo da vacina para a STBO.
Porém, até mesmo a visão do amor neste filme acaba prejudicada. Dificilmente se poderia imaginar que, no seu longa-metragem seguinte, "Os Amantes da Ponte Neuf", ele apresentaria esse sentimento de um modo mais bem resolvido.
Outro problema em "Sangue Ruim" está na falta de empatia com os personagens principais. Nem mesmo pelo amoroso protagonista.
Em dado ponto, cheguei a não querer mais saber que destino teriam.
E esse é um defeito próximo do intolerável em qualquer filme.
Apenas a fotografia estilizada e alguns planos-detalhes restam de aproveitáveis em "Sangue Ruim". E isso é pouco.
Os Amantes de Pont Neuf
4.2 129 Assista AgoraEste é o primeiro filme do Carax a que assisti na vida.
Sabendo tanto do deslumbre com o qual é tratado por certos cinéfilos quanto do desprezo que causa noutros, conferi "Os Amantes da Pont Neuf" na tela grande, como se deve.
E o resultado?
Gostei demasiado!
O uso constante de planos-detalhe encontra abrigo em um roteiro emocionalmente dolorido, onde o amor tanto serve de tábua de salvação quanto de aprisionamento.
A fotografia límpida a retratar as tristes cenas do abrigo para indigentes ao qual Alex é recolhido no começo do filme não tenta mascarar a situação deprimente em que vivem os que já nada possuem.
O modo como os inserts são apresentados ao longo da projeção combina com a trilha sonora muito bem selecionada entre composições eruditas, as indefectíveis chansons francesas e David Bowie.
Quase impossível não se identificar com os sentimentos do desencaminhado Alex pela pintora Michele, igualmente à deriva. Porém, os seus motivos são mais delineados: uma paixão falhada e sua progressiva cegueira.
Mostrar o quanto as circunstâncias a princípio desfavoráveis, o ambiente hostil para os moradores de rua e a falta de perspectivas em destaque, podem levar ao amor, apesar de, ou talvez por causa delas.
A entrega dos intérpretes principais deste filme é outro ponto positivo. Conseguem ser convincentes sem aquela afetação típica de quem "mergulha" no personagem a qualquer custo.
Todo filme que consegue causar as emoções mais díspares ao longo de sua trama merece, desde já, alguma consideração. E quando esse feito vem acompanhado de uma concepção visual à altura, temos "Os Amantes da Ponte Neuf", uma obra que conseguiu sobreviver bem ao hype que acompanhou seu surgimento.
A Viagem
3.7 2,5K Assista AgoraTalvez em resposta ao hype excessivo que a trilogia "Matrix" obteve, ou mesmo à grande onda que fizeram para "Corra, Lola, Corra", as expectativas de muitas pessoas, inclusive as minhas, quanto a "Cloud Atlas" (nada desse título nacional apelando à novela espírita homônima) não eram animadoras.
Felizmente, enganei-me.
"Cloud Atlas" se vale da estrutura de super produção para apresentar um mosaico de personagens, linhas temporais, conceitos metafísicos e apuro estético irreprovável.
Como se não bastasse, aproveita o melhor da versatilidade de um grupo de atores que proporcionam o divertimento paralelo de adivinhar quem está por baixo da intensa maquiagem e efeitos deste ou daquele personagem.
Descontada a trilha sonora por vezes óbvia e excessiva, o filme consegue capturar a atenção durante quase três horas de projeção. Um feito e tanto, em tempos de déficit de atenção generalizado.
Em particular, chama a atenção o modo como apresenta direta e elegantemente a relação amorosa entre o compositor Robert Frobisher e o físico Rufus Sixsmith. Ou mesmo o modo como Sonmi-451 e Hae-Joo Im se unem, descobrindo o amor de uma forma poética em meio a um contexto hostil.
Mais importante, contudo, é a ótima sensação de ter aproveitado muito bem o tempo na sala de cinema.
Torço para que o futuro seja mais grato com esse filme.
Crise
3.5 37Bergman é um desses nomes incontornáveis para quem se diz cinéfilo.
Contudo, não se pode avaliar tudo o que ele fez como genial, até porque isso seria virtualmente impossível para qualquer pessoa. Até mesmo para um mestre.
Reconhecer as limitações da sua estreia no cinema ajuda a valorizar suas maiores qualidades.
É natural que todo interessado em analisar a alma humana com profundidade, nas primeiras tentativas, resvale no sentimentalismo.
Em "Crise", temos o conflito inicial da jovem Nelly entre permanecer na aldeia com sua amorosa e dependente mãe de criação e seguir para a cidade grande com sua genitora biológica, ela mesma saída do interior em circunstâncias outrora desmoralizantes.
Não fosse a presença insólita do malandro Jack, em especial no diálogo travado com a sofrida Ingeborg, a mãe postiça de Nelly, "Crise" não envelheceria muito bem.
Os enquadramentos seguem eficazes, bem como a concepção visual.
Contudo, vez ou outra, paga-se mais tributo ao teatro do que ao cinema neste filme.
Ainda é um filme válido, mesmo que não seja uma carta de intenções completa do estilo bergmaniano.
Mad Max
3.6 723 Assista AgoraNão se deve deixar levar pelo culto dedicado a certos filmes ao se avaliá-los.
"Mad Max" é tomado por uma memorável ficção científica de baixo orçamento, que revelou Mel Gibson a Hollywood (para o bem ou para o mal?) e levou muita gente a prestar atenção ao cinema australiano.
Nada disso, porém, impediu que eu sentisse um tédio profundo em boa parte desse filme.
Se é para retratar um futuro apocalíptico, necessário criar alguma empatia no espectador, em vez de fazer um desfile de carros e motos se batendo na estrada por puro virtuosismo.
Quanto aos personagens, não há um grande delineamento de praticamente nenhum deles.
Até mesmo as poucas cenas dignas de maior interesse empalidecem perante o resto.
As únicas qualidades de "Mad Max" são justamente as suas restrições orçamentárias e o modo como foram contornadas.
De resto, a fama é menor do que a fortuna.