Partidarismos à parte, Maria Augusta Ramos é uma documentarista sensacional. As contribuições dela para o cinema documental brasileiro (de "Juízo" a "Futuro Junho") são absurdas e aqui ela faz o que já se era esperado dela: trazer um olhar clínico para as mazelas sociais brasileiras sem se colocar como um personagem da narrativa. Por mais que a trama mostre seu viés a partir da edição de imagem, sobretudo naquilo que diz respeito às cenas que contemplam Gleisi Hoffmann e Janaína Paschoal, não deixa de ser um documento audiovisual importantíssimo à memória historiográfica brasileira. Seu tom didático, o que denuncia o seu foco em um possível público estrangeiro, pode também ser um fator auxiliador na sua longevidade, algo que, infelizmente, pode ter faltado aos também muito bons "Peões" e "Entreatos".
Um filme de fervura lenta que só entra propriamente em chamas quando uma centelha incendeia seu ato final e leva seus personagens a se rebelarem em atos extremos. A tensão social, a disputa pela atenção de uma garota livre e excêntrica (a novata Jong-seo Jeon em um desempenho apaixonante e irretocável) que transita entre os dois homens que habitam realidades distintas e um segredo entre os três que se torna cada vez mais urgente e grave é o que faz de Burning uma trama misteriosa e que nunca se revela por completo ao espectador, o qual, por sua vez, deve permanecer pensativo por muito tempo depois de terminada a sessão.
Filme assombrosamente atual no impacto de sua crítica e no sua verve militante. Chega a ser inacreditável que um roteiro tão próximo em suas ponderações das vivências de um negro na sociedade brasileira, possa ter sido escrito por Antunes Filho, que é branco e cresceu em um contexto muito diferente de seu protagonista aqui. Alias, a defesa deste por Zózimo Bulbul é tão passional e palpável que eu podia jurar que o argumento tinha pelo menos o dedo do ator, mas não, é a pura identificação de um homem negro com a realidade dura e sem concessões por aqui apresentada. Absurdamente genial, e mais do que isso, é um filme que precisa ser redescoberto pelas novas gerações.
Desde que vi esta obra-prima altmaniana, há algumas semanas, estas palavras do saudoso Roger Ebert não me saem da cabeça: "Pobre McCabe. Ele tinha poesia nele. Pena que entrou em uma cidade onde ninguém sabia o que era poesia, exceto uma pessoa, e esta já a havia perdido."
A intimidade de um casal comum norte-americano é, pela primeira vez, destrinchada em frente às câmeras, em um processo que aos poucos converge para o colapso do próprio casamento. É claro que muito daquilo que é mostrado deve inevitavelmente ser encenação, e é verdade que o despudoramento excessivo do casal diante das equipes de filmagem em determinados momentos mais atrapalha do que contribui para a ilusão de realidade criada por Allan King e pelo casal Edwards, mas nem por isto A Married Couple deixa de ser um dos mais interessantes pedaços de cinéma vérité já feitos, se tornando talvez um precursor daquilo que viriam a ser os reality shows largamente produzidos pelas emissoras de televisão nos dias de hoje.
O que mais impressiona aqui é o respeito com que Dumont trata da vida da célebre Camille Claudel, para além do aspecto de tragédia que a própria história de vida da artista adquiriu, o cineasta vê na escultora um ser humano, representando-a da forma mais honesta o possível, livre de todos os fetichismos e mistificações com os quais sua personalidade foi atrelada, de mera amante do "grande Auguste Rodin" ao gênio atormentado. Tal como Dreyer fez com Joana d'Arc em "O Martírio de...", Dumont faz aqui com Claudel, evidentemente, sem a mesma grandiosidade e potência dramática de uma das maiores obras-primas que o cinema já produziu, mas ainda assim com grandeza e um grande coração que nos faz sentir a mesma dor de Camille através dos olhos marcantes e repletos de sofrimento de Binoche. "Camille Claudel, 1915" é, na verdade, "O Martírio de Camille Claudel".
Desde Sundance o burburinho a respeito de Hereditário tem sido grande, mas nada poderia ter me preparado para uma experiência tão assustadora e sufocante quanto esta que o Ari Aster nos entrega. Para aqueles que estiverem procurando por um filme cheio de jump scares e entretenimento fácil a minha dica é: passem longe deste aqui. A primeira hora do filme é em marcha lenta e tem pouquíssimo de terror, mas o ritmo da narrativa e a maneira como ela é conduzida é hábil em construir gradualmente uma atmosfera opressiva e cheia de tensão que perdura até os últimos minutos, que alias, só não são melhores por conta de um defeito que os roteiristas norte-americanos têm mostrado cada vez mais: uma necessidade absurda em tentar explicar absolutamente tudo da forma mais didática e detalhada o possível, mesmo quando não o é necessário, e principalmente, quando o excesso de informação só serve para prejudicar. Com exceção do meu problema com as resoluções finais do roteiro, todo o argumento de Aster é excelente, e inclusive, muito mais inteligente do que aparenta ser a uma primeira vista,
as menções diretas do professor de Peter nas aulas de literatura à autores como Shakespeare e Eurípedes não são a toa, a própria trama é uma verdadeira tragédia grega. A família Graham vê-se refém de um destino terrível do qual não se pode fugir, ser a oferenda de um ritual satânico para um demônio mitológico, tal como Ifigênia é incapaz de fugir do próprio destino de ser sacrificada pela própria família a mando de uma divindade na tragédia de Eurípedes. Tudo isto faz parte da lógica fatalista que Aster cria para a própria obra: não há como escapar ao destino, e sendo assim, algumas vezes coisas ruins simplesmente vão acontecer a pessoas que não as merecem, e não há nada que possa ser feito.
Nunca me interessei muito pelo cinema do Hal Hartley, mas este aqui é uma verdadeira "hidden gem". É delicioso do começo ao fim ao mesmo tempo que é belíssimo quando deseja "ser sério". A personagem de Isabelle Huppert, por mais excêntrica e inusitada, é de uma complexidade impressionante, o que Hartley conseguiu aqui, de pegar esta ex-freira ninfomaníaca virgem e transformá-la numa poetisa em busca de um amor tão idealizado, é surpreendente. Eu até diria que o filme decai um pouco toda vez que ela sai de cena, é um dos melhores momentos da atriz. É engraçado também notar que este filme foi lançado exatamente no mesmo ano que Pulp Fiction, outro pastiche de filmes de ação/policial com grande verve cômica e uma femme fatale com corte chanel no centro da trama. Este com certeza foi um excelente ano para o cinema...
Jim Jarmusch, um dos últimos poetas do cinema estadunidense, faz mágica aqui nesta jornada de autodescoberta de um homem de meia-idade. É impressionante a alta sensibilidade do autor com o microcosmo que ele mesmo cria, uma reprodução do "mundo real" que às vezes parece flertar com o caricatural, mas nunca perde o contato com a humanidade dos personagens que retrata. É fascinante também perceber a reverência que o Jarmusch tem com as suas próprias influências artísticas, sempre inserindo homenagens veladas a estas, como Nabokov e o cinema de Wim Wenders e Yasujiro Ozu.
A velhice e o processo de envelhecimento é algo que é visto raramente com olhar complacente pelos cineastas, mas eu não lembro jamais de qualquer outro filme que tenha me apresentado um olhar tão devastador e deprimente desta fase da vida. Até mesmo 'medalhões' do gênero, notórios pela melancolia, como Amour e Era Uma Vez em Tóquio apresentam seus personagens idosos com suas várias limitações e dramas sem nunca fazê-los perder a dignidade, o que não ocorre aqui. Jacques Nolot se desnuda de forma tão completamente na tela que muitas vezes a obra torna-se desconfortável e incômoda. A busca desesperada por um sentido quando se toma consciência do fim de seus melhores e mais saudáveis anos de vida é ilustrada de forma tão crua e sem concessões pelo cineasta que fica impossível para mim não admitir: é um dos mais brilhantes e sinceros filmes já feitos a respeito do universo LGBT. Os anseios e fraquezas de um homossexual adentrando a terceira idade nunca antes foram expostos de forma tão aberta e direta.
É assustador rever este filme no dia de hoje e atestar o quão não só atual ele permanece, mas terrivelmente profético para a realidade brasileira. Gregoris Lambrakis, Marielle Franco, são apenas dois nomes em uma interminável lista de pessoas envolvidas no âmbito político que ousaram desafiar as "regras do jogo", e por isto, pagaram com suas vidas.
Coming-of-ages, por algum motivo, têm abundado no cinema ultimamente, o que obriga jovens cineastas a serem cada vez mais inovadores em suas abordagens. Talvez tentando alcançar esta "originalidade" no enredo, Léa Mysius toma decisões bastante questionáveis e cria um filme que parece não saber muito bem o que é. Tem lá seus momentos interessantes sim, mas a obra nunca chega a alçar vôos e termina como uma bela bagunça: sim, é bela, mas não deixa de ser uma bagunça.
Apesar da longa duração enfastiar e o senso de humor peculiar não se traduzir muito bem para o nosso contexto em todos os momentos, "Corações Cicatrizados" não deixa de ser um belo desvio da tendência cinematográfica que tem sido predominante no cinema romeno contemporâneo. A trama e sua execução são indissimulavelmente literárias, com um ritmo muito próprio que exige paciência do espectador à mesma medida que o encanta com sua estranheza e singularidade, e desta forma, Radu Jude segue construindo uma carreira fascinante, após o impressionante western crítico-histórico "Aferim!".
"A Forma da Água" é um filme que encanta e emociona, mas somente aqueles que estiverem dispostos a olharem além de sua superfície e da história de amor nada convencional. Guillermo Del Toro assim como fez em "O Labirinto do Fauno" se utiliza da fábula para tratar de questões duras e próprias da 'vida real'. Não haveria momento mais oportuno para se lançar esta obra, uma verdadeira carta de amor aos oprimidos e marginalizados, aqueles que não se encaixam nos padrões da sociedade, e por isto, são julgados e condenados pela mesma. Veja bem a escolha das personagens humanas centrais: uma muda, uma negra, um homossexual e um comunista. Pessoas de vida nada fácil nos EUA dos anos 60. O vilão, não por coincidência, é um crápula que personifica toda a intolerância e ódio existente no país, o qual nos lembra vagamente algumas figuras públicas bastante populares na atualidade... Além de dar espaço para personagens que costumam ser invisibilizadas, Del Toro também traz a questão do amor entre um ser humano e uma criatura marinha como algo que é fruto da inocência e olhar puro de Elisa. Quando ela o vê, é capaz de se colocar em seu lugar e se padecer de seu sofrimento. Muito além de sua aparência monstruosa, ela se encanta com a humanidade existente nessa criatura, e sua capacidade de realizar gestos de amor e bondade. Da mesma forma, ela trata todas as pessoas à sua volta, deixando clara a "moral" da obra a respeito da importância da alteridade. Destaque também para a belíssima atuação de Sally Hawkins, em um trabalho de imensa contenção e expressividade, e para a trilha sonora de Alexandre Desplat, que com suas flautas e assobios dita o tom fabulesco do romance desde sua abertura.
Sou fã da abordagem crua e sem firulas de Ulrich Seidl, mas este documentário, ao contrário de seus anteriores, se estende mais do que deveria, passando tanto tempo registrando as conversas frívolas dessas personagens, que o efeito devastador do filme acaba por se diluir, restando ao espectador a indiferença diante da desumanidade que retrata o documentarista. As cenas de caça também pouco acrescentam ao filme e me fazem questionar se não se trata mais de um "freakshow" tentando chocar o público, do que um estudo acerca do caráter predatório do homem, como parecia, pelo menos inicialmente, pretender o cineasta.
Pode não ser meu favorito do Schroeter, cineasta do qual sou grande fã, mas não deixa de ser um belo pedaço de cinema onírico-psicanalítico, sobre a fragmentação do eu e a animalização do indivíduo.
O roteiro pode até ser irregular, transitando entre momentos hilários de puro brilhantismo e deus ex machinas absurdas, mas é inegável a capacidade que ele tem em dotar quase todas suas personagens(e são muitas) de uma humanidade de dar inveja ao também recente "Eu, Tonya". O elenco todo está impressionantemente afinado, e dá conta da difícil tarefa de incorporar a complexidade e caráter multifacetado desses indivíduos. A trilha sonora esquemática de Carter Burwell, no entanto, não deixa de causar estranhamento com sua artificialidade dramática que parece não se encaixar com a trama em que está inserida.
Marina deve sim, ser chamada de "uma mulher fantástica"! Toda a força e dignidade que o roteiro e, sobretudo, a entrega actancial de Daniela Vega, empregam à esta personagem são um exemplo de feminilidade em sua forma mais verdadeira. Devo dizer também que, a obra merece palmas não somente pela visibilidade que dá à causa trans, mas pela excelência com que faz isso, nos apresentando uma personagem que é como a música de Carole King, "a natural woman".
O que poderia ser somente mais um filme-denúncia ambientalista convencional, o que por si só já seria muito pertinente, é, na verdade, um monumento visual a respeito da insignificância humana e a eterna indiferença de Deus e da natureza. A construção minuciosa das imagens por Zhao Liang, acompanhadas ocasionalmente por versos de A Divina Comédia, revelam o apelo autoral da obra, um dos mais belos e subestimados manifestos artísticos dos últimos anos.
O Processo
4.0 240Partidarismos à parte, Maria Augusta Ramos é uma documentarista sensacional. As contribuições dela para o cinema documental brasileiro (de "Juízo" a "Futuro Junho") são absurdas e aqui ela faz o que já se era esperado dela: trazer um olhar clínico para as mazelas sociais brasileiras sem se colocar como um personagem da narrativa.
Por mais que a trama mostre seu viés a partir da edição de imagem, sobretudo naquilo que diz respeito às cenas que contemplam Gleisi Hoffmann e Janaína Paschoal, não deixa de ser um documento audiovisual importantíssimo à memória historiográfica brasileira. Seu tom didático, o que denuncia o seu foco em um possível público estrangeiro, pode também ser um fator auxiliador na sua longevidade, algo que, infelizmente, pode ter faltado aos também muito bons "Peões" e "Entreatos".
Em Chamas
3.9 378 Assista AgoraUm filme de fervura lenta que só entra propriamente em chamas quando uma centelha incendeia seu ato final e leva seus personagens a se rebelarem em atos extremos.
A tensão social, a disputa pela atenção de uma garota livre e excêntrica (a novata Jong-seo Jeon em um desempenho apaixonante e irretocável) que transita entre os dois homens que habitam realidades distintas e um segredo entre os três que se torna cada vez mais urgente e grave é o que faz de Burning uma trama misteriosa e que nunca se revela por completo ao espectador, o qual, por sua vez, deve permanecer pensativo por muito tempo depois de terminada a sessão.
A cena de Haemi dançando nua sob o pôr-do-sol é lindíssima. Uma das mais belas já filmadas pelo talentoso Lee Chang-dong.
Compasso de Espera
4.3 16Filme assombrosamente atual no impacto de sua crítica e no sua verve militante. Chega a ser inacreditável que um roteiro tão próximo em suas ponderações das vivências de um negro na sociedade brasileira, possa ter sido escrito por Antunes Filho, que é branco e cresceu em um contexto muito diferente de seu protagonista aqui. Alias, a defesa deste por Zózimo Bulbul é tão passional e palpável que eu podia jurar que o argumento tinha pelo menos o dedo do ator, mas não, é a pura identificação de um homem negro com a realidade dura e sem concessões por aqui apresentada. Absurdamente genial, e mais do que isso, é um filme que precisa ser redescoberto pelas novas gerações.
Onde os Homens São Homens
4.0 42 Assista AgoraDesde que vi esta obra-prima altmaniana, há algumas semanas, estas palavras do saudoso Roger Ebert não me saem da cabeça:
"Pobre McCabe. Ele tinha poesia nele. Pena que entrou em uma cidade onde ninguém sabia o que era poesia, exceto uma pessoa, e esta já a havia perdido."
A Married Couple
4.2 1A intimidade de um casal comum norte-americano é, pela primeira vez, destrinchada em frente às câmeras, em um processo que aos poucos converge para o colapso do próprio casamento.
É claro que muito daquilo que é mostrado deve inevitavelmente ser encenação, e é verdade que o despudoramento excessivo do casal diante das equipes de filmagem em determinados momentos mais atrapalha do que contribui para a ilusão de realidade criada por Allan King e pelo casal Edwards, mas nem por isto A Married Couple deixa de ser um dos mais interessantes pedaços de cinéma vérité já feitos, se tornando talvez um precursor daquilo que viriam a ser os reality shows largamente produzidos pelas emissoras de televisão nos dias de hoje.
Camille Claudel, 1915
3.7 144O que mais impressiona aqui é o respeito com que Dumont trata da vida da célebre Camille Claudel, para além do aspecto de tragédia que a própria história de vida da artista adquiriu, o cineasta vê na escultora um ser humano, representando-a da forma mais honesta o possível, livre de todos os fetichismos e mistificações com os quais sua personalidade foi atrelada, de mera amante do "grande Auguste Rodin" ao gênio atormentado.
Tal como Dreyer fez com Joana d'Arc em "O Martírio de...", Dumont faz aqui com Claudel, evidentemente, sem a mesma grandiosidade e potência dramática de uma das maiores obras-primas que o cinema já produziu, mas ainda assim com grandeza e um grande coração que nos faz sentir a mesma dor de Camille através dos olhos marcantes e repletos de sofrimento de Binoche.
"Camille Claudel, 1915" é, na verdade, "O Martírio de Camille Claudel".
Hereditário
3.8 3,0K Assista AgoraDesde Sundance o burburinho a respeito de Hereditário tem sido grande, mas nada poderia ter me preparado para uma experiência tão assustadora e sufocante quanto esta que o Ari Aster nos entrega. Para aqueles que estiverem procurando por um filme cheio de jump scares e entretenimento fácil a minha dica é: passem longe deste aqui. A primeira hora do filme é em marcha lenta e tem pouquíssimo de terror, mas o ritmo da narrativa e a maneira como ela é conduzida é hábil em construir gradualmente uma atmosfera opressiva e cheia de tensão que perdura até os últimos minutos, que alias, só não são melhores por conta de um defeito que os roteiristas norte-americanos têm mostrado cada vez mais: uma necessidade absurda em tentar explicar absolutamente tudo da forma mais didática e detalhada o possível, mesmo quando não o é necessário, e principalmente, quando o excesso de informação só serve para prejudicar.
Com exceção do meu problema com as resoluções finais do roteiro, todo o argumento de Aster é excelente, e inclusive, muito mais inteligente do que aparenta ser a uma primeira vista,
as menções diretas do professor de Peter nas aulas de literatura à autores como Shakespeare e Eurípedes não são a toa, a própria trama é uma verdadeira tragédia grega. A família Graham vê-se refém de um destino terrível do qual não se pode fugir, ser a oferenda de um ritual satânico para um demônio mitológico, tal como Ifigênia é incapaz de fugir do próprio destino de ser sacrificada pela própria família a mando de uma divindade na tragédia de Eurípedes. Tudo isto faz parte da lógica fatalista que Aster cria para a própria obra: não há como escapar ao destino, e sendo assim, algumas vezes coisas ruins simplesmente vão acontecer a pessoas que não as merecem, e não há nada que possa ser feito.
Arábia
4.2 167 Assista AgoraPerguntas de um Trabalhador que lê:
Quem construiu a Tebas de sete portas?
Nos livros estão nomes de reis:
Arrastaram eles os blocos de pedra?
E a Babilônia várias vezes destruída
Quem a reconstruiu tantas vezes?
Em que casas da Lima dourada moravam os construtores?
Para onde foram os pedreiros, na noite em que a Muralha da China ficou pronta?
A grande Roma está cheia de arcos do triunfo:
Quem os ergueu?
Sobre quem triunfaram os Césares?
A decantada Bizâncio
Tinha somente palácios para os seus habitantes?
Mesmo na lendária Atlântida
Os que se afogavam
gritaram por seus escravos
Na noite em que o mar a tragou?
O jovem Alexandre conquistou a Índia.
Sozinho?
César bateu os gauleses.
Não levava sequer um cozinheiro?
Filipe da Espanha chorou,
quando sua Armada naufragou.
Ninguém mais chorou?
Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos.
Quem venceu além dele?
Cada página uma vitória.
Quem cozinhava o banquete?
A cada dez anos um grande Homem.
Quem pagava a conta?
Tantas histórias.
Tantas questões.
-Bertolt Brecht
Amateur
3.5 18Nunca me interessei muito pelo cinema do Hal Hartley, mas este aqui é uma verdadeira "hidden gem". É delicioso do começo ao fim ao mesmo tempo que é belíssimo quando deseja "ser sério".
A personagem de Isabelle Huppert, por mais excêntrica e inusitada, é de uma complexidade impressionante, o que Hartley conseguiu aqui, de pegar esta ex-freira ninfomaníaca virgem e transformá-la numa poetisa em busca de um amor tão idealizado, é surpreendente. Eu até diria que o filme decai um pouco toda vez que ela sai de cena, é um dos melhores momentos da atriz.
É engraçado também notar que este filme foi lançado exatamente no mesmo ano que Pulp Fiction, outro pastiche de filmes de ação/policial com grande verve cômica e uma femme fatale com corte chanel no centro da trama. Este com certeza foi um excelente ano para o cinema...
Flores Partidas
3.6 201 Assista AgoraJim Jarmusch, um dos últimos poetas do cinema estadunidense, faz mágica aqui nesta jornada de autodescoberta de um homem de meia-idade. É impressionante a alta sensibilidade do autor com o microcosmo que ele mesmo cria, uma reprodução do "mundo real" que às vezes parece flertar com o caricatural, mas nunca perde o contato com a humanidade dos personagens que retrata. É fascinante também perceber a reverência que o Jarmusch tem com as suas próprias influências artísticas, sempre inserindo homenagens veladas a estas, como Nabokov e o cinema de Wim Wenders e Yasujiro Ozu.
Antes que eu me esqueça
2.8 5A velhice e o processo de envelhecimento é algo que é visto raramente com olhar complacente pelos cineastas, mas eu não lembro jamais de qualquer outro filme que tenha me apresentado um olhar tão devastador e deprimente desta fase da vida. Até mesmo 'medalhões' do gênero, notórios pela melancolia, como Amour e Era Uma Vez em Tóquio apresentam seus personagens idosos com suas várias limitações e dramas sem nunca fazê-los perder a dignidade, o que não ocorre aqui. Jacques Nolot se desnuda de forma tão completamente na tela que muitas vezes a obra torna-se desconfortável e incômoda. A busca desesperada por um sentido quando se toma consciência do fim de seus melhores e mais saudáveis anos de vida é ilustrada de forma tão crua e sem concessões pelo cineasta que fica impossível para mim não admitir: é um dos mais brilhantes e sinceros filmes já feitos a respeito do universo LGBT.
Os anseios e fraquezas de um homossexual adentrando a terceira idade nunca antes foram expostos de forma tão aberta e direta.
Z
4.4 122É assustador rever este filme no dia de hoje e atestar o quão não só atual ele permanece, mas terrivelmente profético para a realidade brasileira.
Gregoris Lambrakis, Marielle Franco, são apenas dois nomes em uma interminável lista de pessoas envolvidas no âmbito político que ousaram desafiar as "regras do jogo", e por isto, pagaram com suas vidas.
Ava
3.5 16Coming-of-ages, por algum motivo, têm abundado no cinema ultimamente, o que obriga jovens cineastas a serem cada vez mais inovadores em suas abordagens. Talvez tentando alcançar esta "originalidade" no enredo, Léa Mysius toma decisões bastante questionáveis e cria um filme que parece não saber muito bem o que é. Tem lá seus momentos interessantes sim, mas a obra nunca chega a alçar vôos e termina como uma bela bagunça: sim, é bela, mas não deixa de ser uma bagunça.
Corações Cicatrizados
3.3 4Apesar da longa duração enfastiar e o senso de humor peculiar não se traduzir muito bem para o nosso contexto em todos os momentos, "Corações Cicatrizados" não deixa de ser um belo desvio da tendência cinematográfica que tem sido predominante no cinema romeno contemporâneo. A trama e sua execução são indissimulavelmente literárias, com um ritmo muito próprio que exige paciência do espectador à mesma medida que o encanta com sua estranheza e singularidade, e desta forma, Radu Jude segue construindo uma carreira fascinante, após o impressionante western crítico-histórico "Aferim!".
A Forma da Água
3.9 2,7K"A Forma da Água" é um filme que encanta e emociona, mas somente aqueles que estiverem dispostos a olharem além de sua superfície e da história de amor nada convencional.
Guillermo Del Toro assim como fez em "O Labirinto do Fauno" se utiliza da fábula para tratar de questões duras e próprias da 'vida real'. Não haveria momento mais oportuno para se lançar esta obra, uma verdadeira carta de amor aos oprimidos e marginalizados, aqueles que não se encaixam nos padrões da sociedade, e por isto, são julgados e condenados pela mesma. Veja bem a escolha das personagens humanas centrais: uma muda, uma negra, um homossexual e um comunista. Pessoas de vida nada fácil nos EUA dos anos 60. O vilão, não por coincidência, é um crápula que personifica toda a intolerância e ódio existente no país, o qual nos lembra vagamente algumas figuras públicas bastante populares na atualidade...
Além de dar espaço para personagens que costumam ser invisibilizadas, Del Toro também traz a questão do amor entre um ser humano e uma criatura marinha como algo que é fruto da inocência e olhar puro de Elisa. Quando ela o vê, é capaz de se colocar em seu lugar e se padecer de seu sofrimento. Muito além de sua aparência monstruosa, ela se encanta com a humanidade existente nessa criatura, e sua capacidade de realizar gestos de amor e bondade. Da mesma forma, ela trata todas as pessoas à sua volta, deixando clara a "moral" da obra a respeito da importância da alteridade.
Destaque também para a belíssima atuação de Sally Hawkins, em um trabalho de imensa contenção e expressividade, e para a trilha sonora de Alexandre Desplat, que com suas flautas e assobios dita o tom fabulesco do romance desde sua abertura.
Sem Deus
3.2 7Já dizia Ivan Karamázov, "se deus não existe, tudo é permitido".
Safari
3.4 13 Assista AgoraSou fã da abordagem crua e sem firulas de Ulrich Seidl, mas este documentário, ao contrário de seus anteriores, se estende mais do que deveria, passando tanto tempo registrando as conversas frívolas dessas personagens, que o efeito devastador do filme acaba por se diluir, restando ao espectador a indiferença diante da desumanidade que retrata o documentarista.
As cenas de caça também pouco acrescentam ao filme e me fazem questionar se não se trata mais de um "freakshow" tentando chocar o público, do que um estudo acerca do caráter predatório do homem, como parecia, pelo menos inicialmente, pretender o cineasta.
Malina
3.7 20Pode não ser meu favorito do Schroeter, cineasta do qual sou grande fã, mas não deixa de ser um belo pedaço de cinema onírico-psicanalítico, sobre a fragmentação do eu e a animalização do indivíduo.
Sem Fôlego
3.0 76 Assista Agora"Estamos todos na sarjeta, mas alguns de nós olham para as estrelas".
Três Anúncios Para um Crime
4.2 2,0K Assista AgoraO roteiro pode até ser irregular, transitando entre momentos hilários de puro brilhantismo e deus ex machinas absurdas, mas é inegável a capacidade que ele tem em dotar quase todas suas personagens(e são muitas) de uma humanidade de dar inveja ao também recente "Eu, Tonya".
O elenco todo está impressionantemente afinado, e dá conta da difícil tarefa de incorporar a complexidade e caráter multifacetado desses indivíduos. A trilha sonora esquemática de Carter Burwell, no entanto, não deixa de causar estranhamento com sua artificialidade dramática que parece não se encaixar com a trama em que está inserida.
Artista do Desastre
3.8 554 Assista AgoraO casting é absolutamente fantástico, talvez o melhor do ano, e James Franco consegue provar que filmes ruins, podem sim, ser muito bons.
Visages, Villages
4.4 161 Assista AgoraA cena em que Varda faz uma visita à Godard é de partir o coração. O "gênio" hoje vive enclausurado no escafandro do próprio ego.
Uma Mulher Fantástica
4.1 422 Assista AgoraMarina deve sim, ser chamada de "uma mulher fantástica"! Toda a força e dignidade que o roteiro e, sobretudo, a entrega actancial de Daniela Vega, empregam à esta personagem são um exemplo de feminilidade em sua forma mais verdadeira.
Devo dizer também que, a obra merece palmas não somente pela visibilidade que dá à causa trans, mas pela excelência com que faz isso, nos apresentando uma personagem que é como a música de Carole King, "a natural woman".
Gigante
4.2 6O que poderia ser somente mais um filme-denúncia ambientalista convencional, o que por si só já seria muito pertinente, é, na verdade, um monumento visual a respeito da insignificância humana e a eterna indiferença de Deus e da natureza.
A construção minuciosa das imagens por Zhao Liang, acompanhadas ocasionalmente por versos de A Divina Comédia, revelam o apelo autoral da obra, um dos mais belos e subestimados manifestos artísticos dos últimos anos.