Como o título enuncia, é uma obra sobre o tempo e a necessidade de superação pela falta de tempo. Adiciona-se, ainda, uma história forte e emocionante em meio a telas duplas e, por vezes, triplas com agilidade e estética aventureiramente furiosa. Sem contar a presença marcante de James Franco como o intrépido montanhista Aron Ralston. Porém, tem-se a impressão de uma produção feita na sala de montagem, aludindo às propagandas juvenis da MTV sob trilha sonora de uma banda pós-punk - como se fosse um "clipão" de 94 minutos. Algumas alucinações e memórias do protagonista são até desagradáveis. Em resumo, a temática do isolamento versus vida urbana e a cena da vista aérea dos cânions contrastando com a fragilidade do ser humano resumem a fita, planejada para os mochileiros das montanhas.
De elementos futuristas a características retrô, eis uma obra sobre empoderamento e, sobretudo, autoconhecimento feminil. Para abordar a libertação feminista e sexual, Simone de Beauvoir foi invocada: não se nasce mulher, torna-se mulher. Pois o projeto Frankenstein de Dr. God (Deus em inglês) revela uma mulher além do seu tempo, que lê, contesta, é livre e realiza experiências permitidas, até então, ao sexo oposto. Além disso, é um filme com diversas camadas a serem dissecadas, o que sugere espectadores críticos e pensantes, onde o cinema não seja apenas entretenimento mas, ainda, uma ferramenta educativa. Porém, apesar de certas originalidades, cinematograficamente é uma fita convencionalmente hollywoodiana, já que temas complexos são postos e retirados sem muita discussão e nem poder satírico, onde, inclusive, a necessária heroína está bem confortável, pois possui muitos portos seguros. No geral, tem-se algo importante, inteligente e bizarro, ou seja, fascinante.
Muito mais que um simples filme de tribunal, é a cultura da noticiação invasiva da vida particular de alguém conhecido - o marido é achado morto pelo filho cego que chama a mãe por socorro. Assim, tais vidas em família são minuciosamente desvendadas, sob holofotes e desconfortos, por meio de histórias que nada agregam à resolução do caso em questão, numa clara crítica aos mordazes consumidores de cliques e fofocas: o que você quer saber realmente lhe interessa? É um drama familiar sólido, profundo e intenso onde a escritora Sandra Voyter (Sandra Hüller em atuação gigante) se constrói e desconstrói de forma tridimensional, deixando sua ambiguidade moral à escolha do espectador. Da cultura do cancelamento à sutil discussão sobre a xenofobia atual da Europa, a diretora francesa radiografa tantas possibilidades e nuances que o denso roteiro se fixa muito bem apoiado, mesmo com um final vago, difuso e sem ápice.
Trata-se de um assunto importantíssimo: os perigos da caminhada dos refugiados africanos à Europa pelo mar Mediterrâneo. Uma aventura severa e mortífera que precisava de uma abordagem igualmente cruel. Mas aquilo que o 1º ato ajudou a servir de expectação ao registrar os costumes e tradições culturais senegaleses, ao passar da película, perdeu-se no despejamento do profícuo conteúdo, tornando um filme esquemático uma história rica e sincera. As responsabilidades sociais e políticas foram escanteadas em detrimento do sentimentalismo - e olha que os elementos fantasiosos são de brilhar os olhos, logo, cadê a denúncia via arte de uma tenebrosa crise humanitária? Assim, em termos cinematográficos, a obra é confortável e até funciona para quem apenas espera diversão e entretenimento. Porém, o mundo real, especificamente a essas pessoas, não é tão onírico e carece de, pelo menos, críticas e reflexões. Ah, aquelas imagens do deserto do Saara...
Talvez seja o filme de horror menos horripilante de todos os tempos, pois, explicitamente, não há sangue, ossos, tiros, abusos ou mortes. Na verdade, tem tudo isso (e muito mais), porém, do outro lado da parede. Sim, o longa transita sobre a vida de um oficial nazista e sua família que mora, literalmente, ao lado do campo de concentração Auschwitz III-Monowitz. E o que se ouve, ao fundo, são os piores sons do terror do holocausto, enquanto os Höss discutem superempregos e tomam banho de piscina sob sucos, drinques e risadas. Apesar do pequeno palacete idílico, a família alemã nunca é humanizada - um esmero de takes e closes do diretor inglês, e nem cria-se empatia ao espectador. Pelo contrário, o alheio cotidiano do lugar é normalizado pelas fumaças cinzentas dos fornos crematórios no enquadramento secundário. Uma obra incrivelmente desafiadora desde os créditos iniciais, quando já se nota algo perturbadoramente errado.
Reimaginações são inatas do ser humano e, por natureza, possuem um quê de arte, como se cada idealizador fosse um novo poeta. Porém, trabalhar a memória afetiva do outro torna-se um problema quando o original ainda é latente. É o caso desta obra, pois a de 1985 é perfeitamente decente e acessível à geração atual. Portanto, os embates hão de existir, inevitavelmente. Contudo, este filme tem seus méritos - eletrizante, coreografias afinadas, músicas lindíssimas, figurino impecável, enfim, um drama musical que empolga e tira o peso da tristeza do tema (racismo, machismo e elitismo num EUA do início do século XX), mas que também afunda no tom novelesco da redenção da violência pelo perdão optado pelo diretor ganês. Afinal, Miss Celie (Fantasia Barrino muito bem), assim como inúmeras mulheres negras rejeitadas pela sociedade, não espera a salvação cair do céu, ela busca sempre uma saída. E nada passivamente.
Rememorando um antigo clássico japonês, a rotina realmente tem seus encantos. E é impressionante o que se descobre de beleza e variedade na repetição neste belíssimo longa feito para observar e raciocinar a vida contemporânea monocromática e mimetista. Afinal, por que não pode haver alegria na classe rejeitada socioeconomicamente? E desde quando a estética do belo (principalmente nos reels e fotinhos sociais) define a pessoa como descolada e feliz? Para Hirayama (Koji Yakusho, em estado de graça, encaixou-se como uma luva no filme), o perfeito se faz hoje, negando o ontem e postergando o amanhã, numa clara demonstração de desamarras da modernidade sob fitas cassetes e máquinas fotográficas. Pena que faltou ação até na simplicidade da trama. Outro adendo: é uma declaração de amor a Lou Reed e ao rock setentista. Ou seja, um mix do metafísico minimalismo oriental com a intensidade desordeira do ocidente.
Toda arte é política. Querer celebrar uma cultura sem subversão é descerebrar essa população. E regimes ditatoriais duradouros tendem a podar (usando aqui um eufemismo) quem pensa diferente. É o que retrata este aterrador documentário sobre os 35 anos (desde 1986) de governança Yoweri Museveni em Uganda, quando o artista do gueto Bobi Wine foi o mais próximo a derrotar, nas urnas, o longevo presidente que usa ameaças e violência contra quem ousa cruzar seu caminho - polícia e exército sendo um braço fisiológico do governo, quando deveria ser do estado democrático de direito. Fora tais mazelas, trata-se, ainda, de uma experiência cinematográfica corajosa e emocionante, pois coloca em risco pessoal considerável tanto o protagonista quanto os diretores em tomadas assustadoramente reais. É panfletário e unilateral, o que não necessariamente torna-se um defeito, porém, esperançoso por dias melhores ao povo ugandense.
Há tantos bons sentimentos explícitos neste tenro documentário chileno que se faz melífluo o relato sobre o angustiante mal de Alzheimer no jornalista Augusto Góngora, profissional corajoso e combativo durante a terrível ditadura de Pinochet. Outrossim, a frase cunhada por Góngora em virtude das lembranças civis do Chile reflete a doença neurodegenerativa que o acomete e metaforiza a luta diária dessas pessoas: sem memória não há identidade. Além do mais, tem muita paixão na obra, com o lado matrimonial de companheirismo da atriz Paulina Urrutia, 25 anos juntos, que aquece o coração e acalenta a esperança sobre a qualidade de vida dos enfermos. Nisso, a habilidade da câmera não invasiva da diretora fez toda diferença, deixando leve (até demais pra atingir o alvo) o filme. Vale a pipoca!
Alopraram na ação desenfreada da, agora, cinessérie multiversal. O que não necessariamente é um defeito. Pelo contrário, em tom cartunesco, a utilização da paleta de cores vibrantes e traços sinestésicos dos (inúmeros) personagens engrandeceu a narrativa sobre o tema adolescência, sem apelar à chatice usual na abordagem. A magnânima animação cria estratégias visuais numa saborosa confusão de estilos tornando as supracitadas ações - e reações - cada vez mais impactantes e conectadas. Sem contar que as subtramas dramáticas foram muito bem elaboradas e coerentes. Porém, o filme não carecia de 141 minutos. Já os caçadores de easter eggs terão muito trabalho aqui, principalmente nas referências aos aranhas heróis de outrora.
Uma comédia dramática que, ao mesmo tempo, satiriza, alfineta e enaltece a experiência das artes negras como representação do seu povo. A intelectualidade criativa não tem lugar, hora, gênero ou raça, assim como a estereotipização cultural só ratifica o empobrecimento cognitivo de alguns e o racismo estrutural presente metafisicamente na arquitetura das grandes editoras/produtoras artísticas. Ainda, sutilmente, dá uma cutucada na complicada e abrasiva dinâmica familiar da classe média alta. Tudo isso de maneira divertida e silenciosamente comovente, apesar da perda de coesão e nitidez narrativa do terço derradeiro da fita - e também da embalagem final dando sensação de um subproduto televisivo descartável. Em resumo, um filme inteligente que serve de carapuça a quem apetecer usá-la, com um Jeffrey Wright absurdo no papel principal e coadjuvantes bem deliciosos em cena.
Uma obra previsível e clichê que sintetiza perfeitamente em como essas qualidades devem ser aproveitadas cinematicamente, sobretudo por se tratar de superação na 3ª idade (tornar-se-á cada vez mais comum no nosso tempo e lugar). As atuações da dupla principal e o ambiente descontraído, conjuntamente, ajudam no tom realístico da fita, literalmente sem maquiagem. Porém, as subtramas, que também compõem a personalidade egocêntrica da nadadora Diana Nyad, foram abordadas com tanta sutileza que se perderam no desenvolvimento narrativo. Mas a mensagem sobre conquistar objetivos e ter persistência está clarividente e altamente palpável no filme, independentemente da discussão sobre a veracidade dos fatos na vida real. Porque isto é ficção.
Um filme de amor à moda antiga, contudo, crítico e politizado sem perder a ternura jamais. Ou como uma simplória história romântica pode abraçar o contexto social atual sem descambar pra identitarismos hiperbólicos. Pois, nesta fita, o diretor finlandês não quer mudar o mundo. Pelo contrário, só se sabe a época da trama por causa de notícias de um rádio de pilha. Aqui, dois adultos solitários e apáticos sem perspectiva de crescimento se apaixonam pela solitude e apatia do outro num bar da gelada Helsinque. Ela com seu cotidiano mecânico sem sal e ele sob o escapismo fugaz do cigarro e álcool, ambos de pouca conversa. Uma desconexão rearranjada na cena final, quando amor e alegria passeiam sobre as folhas mortas de outono no chão da praça. Uma bela sessão.
Glamourizada no imaginário dos alunos, a sala dos professores é um local de convívio natural dos docentes, enquanto descansam, confabulam ou buscam mais conhecimento para o exercício da mais bela das profissões. Só que, neste bom drama alemão, tal local assume uma grandiosa importância psicossocial quando começam a haver roubos na escola em questão. Assim, Carla Nowak (Leonie Benesch em estado de êxtase), a professora íntegra e corajosa, envolve-se diariamente em dilemas morais entre os seus ideais e os do sistema escolar, instando o espectador a julgar todas as ações do filme. Em resumo, um microcosmo ricamente retratado sob tolices, ingenuidades, capacidades, solidariedades, sensacionalismos e, claro, o bullying derivado de boatos. Ou, numa clara analogia proposta pelo diretor, os algoritmos solucionadores para um cubo mágico não são capazes de resolver os malabarismos de um trabalho humanamente exigente: lecionar.
Quando se encontra uma animação recheada de anarquia subversiva, pode preparar a pipoca e o refrigerante porque vale a sessão. E esta fita não só critica o reacionarismo e costumes tradicionais de um povo, diverte e emociona na medida certa, sem apelar à fábrica de clichês do gênero dos últimos anos. A personagem principal ser uma monstra politicamente incorreta já a torna uma filha do caos, onde o visual e o som explicitam um ambiente sujo e soturno dos grandes centros. Assim, a discussão sobre diversidade e aceitação ganha eco na tela e na trama de um relacionamento radical e triste, apesar da narrativa apressada, convencional e com diversos focos de personalidades. É um filme incrível, belo, turbulento e nítido.
Já é sabido o quanto os EUA adoram exibir seu potencial bélico no decorrer das eras, assim, neste imagético e deslumbrante filme, a história paira sobre a invenção da mais devastadora arma que já existiu na humanidade, mais precisamente sobre o pai da bomba atômica J. Robert Oppenheimer (Cillian Murphy se afirmando como ator maior). Cinematicamente, a transformação dum fato horrendo e devastador num fenômeno fascinantemente pop, sem ceder nas dimensões trágicas, é uma conquista magnânima de C. Nolan, tanto pela complexidade da física quântica nuclear quanto pelo gênio magnético do físico cinebiografado. O longa emoldura a admiração do trabalho da criação e da mudança que a bomba operou no mundo, quando cada cena carrega a catarse na dose certa para se perceber a tentativa do acerto de contas da América sedenta de sangue com as civilizações atuais. O vai e vem temporal degrada um pouco a obra, assim como a tecnicidade exagerada. Mas é um primor.
Um filme importante sobre um personagem importante que foi um dos organizadores de um evento cada dia mais importante. Porém, há algo que não encaixa. Tudo bem que enfatizar qualquer pessoa quando se tem Martin Luther King Jr. em cena não é uma tarefa fácil, mas, ainda assim, a própria relação de amizade entre este e Bayard Rustin não foi bem aproveitada. Tampouco a Marcha Sobre Washington Por Trabalho E Liberdade (1963) reunindo mais de duzentas mil pessoas, apresentada de modo opaco e sem o devido clímax esperado. Até o emblemático discurso 'I Have A Dream' surge timidamente. Por outro lado, Colman Domingo salva a obra e entrega, de corpo e alma, um biografado ativista negro e gay numa atuação exuberante e cativante, com todos os trejeitos e as dores de alguém indispensável ao movimento retratado. Disponível na Netflix, parece mais um produto em série de seu catálogo, quando carecia mais de polidez e personalidade.
De quantas vidas não vividas é feita uma vida? Aqui está uma deleitável obra sobre as passagens e conexões da vida, pois o que somos e o que tornamos são frutos das nossas escolhas e, principalmente, renúncias. Incrivelmente e sem descambar pro uso excessivo de clichês, a melodramatização de uma história de amor abrilhantou de tal forma esta película que diversos questionamentos jorram aos borbotões sem haver, neles, culpabilidade alguma. De forma honesta e direta, o filme proporciona uma doce e interessante reflexão da nossa trajetória como seres humanos amantes. Porém, com a cínica dose de realismo: o tempo nos transforma a todo momento e o destino muda. Ou como diria Belchior, o passado é uma roupa que não nos cabe mais.
A tragédia dos Andes, realmente ocorrida em 1972, foi enredo de diversas criações artísticas e culturais desde então. Porém, cinema também é revisitação, e esta inebriante película espanhola cumpriu positivamente seu papel, tanto pelo realismo quanto pela dramatização. Pois a luta pela sobrevivência em ambientes hostis extrapolam os limites de sociedade cheirosa e limpinha. E, cá, sem a espetacularização do horror, o diretor dá um tapa bem encaixado no dogmatismo religioso e na meritocracia individual, abraçando e celebrando a união de classe para lograr o intento de todos: permanecerem-se vivos. Infelizmente, a estética se sobrepõe à trama quando, por já conhecida, poderia ser melhor lapidada. Mas nada que desabone o produto final, que, além de hipnotizar do início ao fim, é recomendado a estômagos fortes.
Um lindo filme islandês que medita sobre a fé e a fotografia de maneira interessantíssima, já que uma é revelação e a outra é imagem. E essa dicotomia perpassa toda a obra, acompanhando o pastor luterano dinamarquês Lucas (Elliott Crosset Hove) em sua árdua missão de construir uma igreja numa remota ilha da Islândia do século XIX, época em que fotografias eram raras e de manuseios difíceis. Assim como a provação do personagem principal no desenrolar da trama, seja pela viagem penosa, seja pelos pensamentos e atos maus - seria um desconforto existencial? Há ainda alfinetadas no colonialismo religioso, nas colisões culturais e na vaidade humana como pecado mortal. Logo, eis uma dolorosa fotografia fílmica cheia de revelações, tanto pela magia de Deus quanto pela derrota da fé.
No começo dos anos 80, surgia, na França, o movimento cinéma du look, onde jovens cineastas priorizavam mais o estilo que o conteúdo. Obviamente, criou-se um burburinho, pejorativo no início, que se tornou cult e influenciou gerações posteriores. Este longa, o primeiro do diretor, faz parte desse grupo, quando a pop art acompanha quase toda narrativa numa trama altamente aleatória. Porém, um êxtase cheio de desdobramentos frutos de um destino quimérico, místico e sublime. Tem um jeitão de filme B com ares de neo-noir que se transforma numa bagunça elegante - a mistura de fitas, literalmente, é uma sacada de gênio, levando à tela o encantamento da obsessão pela beleza e poder da voz humana. Uma elegante taquigrafia cinematográfica.
127 Horas
3.8 3,1K Assista AgoraComo o título enuncia, é uma obra sobre o tempo e a necessidade de superação pela falta de tempo. Adiciona-se, ainda, uma história forte e emocionante em meio a telas duplas e, por vezes, triplas com agilidade e estética aventureiramente furiosa. Sem contar a presença marcante de James Franco como o intrépido montanhista Aron Ralston. Porém, tem-se a impressão de uma produção feita na sala de montagem, aludindo às propagandas juvenis da MTV sob trilha sonora de uma banda pós-punk - como se fosse um "clipão" de 94 minutos. Algumas alucinações e memórias do protagonista são até desagradáveis. Em resumo, a temática do isolamento versus vida urbana e a cena da vista aérea dos cânions contrastando com a fragilidade do ser humano resumem a fita, planejada para os mochileiros das montanhas.
Paulo, Apóstolo de Cristo
3.8 133De roteiro disperso e edição precária.
Mas como a bíblia pode render histórias interessantíssimas.
Pobres Criaturas
4.2 1,1K Assista AgoraDe elementos futuristas a características retrô, eis uma obra sobre empoderamento e, sobretudo, autoconhecimento feminil. Para abordar a libertação feminista e sexual, Simone de Beauvoir foi invocada: não se nasce mulher, torna-se mulher. Pois o projeto Frankenstein de Dr. God (Deus em inglês) revela uma mulher além do seu tempo, que lê, contesta, é livre e realiza experiências permitidas, até então, ao sexo oposto. Além disso, é um filme com diversas camadas a serem dissecadas, o que sugere espectadores críticos e pensantes, onde o cinema não seja apenas entretenimento mas, ainda, uma ferramenta educativa. Porém, apesar de certas originalidades, cinematograficamente é uma fita convencionalmente hollywoodiana, já que temas complexos são postos e retirados sem muita discussão e nem poder satírico, onde, inclusive, a necessária heroína está bem confortável, pois possui muitos portos seguros. No geral, tem-se algo importante, inteligente e bizarro, ou seja, fascinante.
Anatomia de uma Queda
4.0 769 Assista AgoraMuito mais que um simples filme de tribunal, é a cultura da noticiação invasiva da vida particular de alguém conhecido - o marido é achado morto pelo filho cego que chama a mãe por socorro. Assim, tais vidas em família são minuciosamente desvendadas, sob holofotes e desconfortos, por meio de histórias que nada agregam à resolução do caso em questão, numa clara crítica aos mordazes consumidores de cliques e fofocas: o que você quer saber realmente lhe interessa? É um drama familiar sólido, profundo e intenso onde a escritora Sandra Voyter (Sandra Hüller em atuação gigante) se constrói e desconstrói de forma tridimensional, deixando sua ambiguidade moral à escolha do espectador. Da cultura do cancelamento à sutil discussão sobre a xenofobia atual da Europa, a diretora francesa radiografa tantas possibilidades e nuances que o denso roteiro se fixa muito bem apoiado, mesmo com um final vago, difuso e sem ápice.
Eu, Capitão
4.0 68Trata-se de um assunto importantíssimo: os perigos da caminhada dos refugiados africanos à Europa pelo mar Mediterrâneo. Uma aventura severa e mortífera que precisava de uma abordagem igualmente cruel. Mas aquilo que o 1º ato ajudou a servir de expectação ao registrar os costumes e tradições culturais senegaleses, ao passar da película, perdeu-se no despejamento do profícuo conteúdo, tornando um filme esquemático uma história rica e sincera. As responsabilidades sociais e políticas foram escanteadas em detrimento do sentimentalismo - e olha que os elementos fantasiosos são de brilhar os olhos, logo, cadê a denúncia via arte de uma tenebrosa crise humanitária? Assim, em termos cinematográficos, a obra é confortável e até funciona para quem apenas espera diversão e entretenimento. Porém, o mundo real, especificamente a essas pessoas, não é tão onírico e carece de, pelo menos, críticas e reflexões. Ah, aquelas imagens do deserto do Saara...
Zona de Interesse
3.6 565 Assista AgoraTalvez seja o filme de horror menos horripilante de todos os tempos, pois, explicitamente, não há sangue, ossos, tiros, abusos ou mortes. Na verdade, tem tudo isso (e muito mais), porém, do outro lado da parede. Sim, o longa transita sobre a vida de um oficial nazista e sua família que mora, literalmente, ao lado do campo de concentração Auschwitz III-Monowitz. E o que se ouve, ao fundo, são os piores sons do terror do holocausto, enquanto os Höss discutem superempregos e tomam banho de piscina sob sucos, drinques e risadas. Apesar do pequeno palacete idílico, a família alemã nunca é humanizada - um esmero de takes e closes do diretor inglês, e nem cria-se empatia ao espectador. Pelo contrário, o alheio cotidiano do lugar é normalizado pelas fumaças cinzentas dos fornos crematórios no enquadramento secundário. Uma obra incrivelmente desafiadora desde os créditos iniciais, quando já se nota algo perturbadoramente errado.
A Cor Púrpura
3.5 90Reimaginações são inatas do ser humano e, por natureza, possuem um quê de arte, como se cada idealizador fosse um novo poeta. Porém, trabalhar a memória afetiva do outro torna-se um problema quando o original ainda é latente. É o caso desta obra, pois a de 1985 é perfeitamente decente e acessível à geração atual. Portanto, os embates hão de existir, inevitavelmente. Contudo, este filme tem seus méritos - eletrizante, coreografias afinadas, músicas lindíssimas, figurino impecável, enfim, um drama musical que empolga e tira o peso da tristeza do tema (racismo, machismo e elitismo num EUA do início do século XX), mas que também afunda no tom novelesco da redenção da violência pelo perdão optado pelo diretor ganês. Afinal, Miss Celie (Fantasia Barrino muito bem), assim como inúmeras mulheres negras rejeitadas pela sociedade, não espera a salvação cair do céu, ela busca sempre uma saída. E nada passivamente.
Dias Perfeitos
4.2 231 Assista AgoraRememorando um antigo clássico japonês, a rotina realmente tem seus encantos. E é impressionante o que se descobre de beleza e variedade na repetição neste belíssimo longa feito para observar e raciocinar a vida contemporânea monocromática e mimetista. Afinal, por que não pode haver alegria na classe rejeitada socioeconomicamente? E desde quando a estética do belo (principalmente nos reels e fotinhos sociais) define a pessoa como descolada e feliz? Para Hirayama (Koji Yakusho, em estado de graça, encaixou-se como uma luva no filme), o perfeito se faz hoje, negando o ontem e postergando o amanhã, numa clara demonstração de desamarras da modernidade sob fitas cassetes e máquinas fotográficas. Pena que faltou ação até na simplicidade da trama. Outro adendo: é uma declaração de amor a Lou Reed e ao rock setentista. Ou seja, um mix do metafísico minimalismo oriental com a intensidade desordeira do ocidente.
Bobi Wine: O Presidente Do Povo
3.6 26Toda arte é política. Querer celebrar uma cultura sem subversão é descerebrar essa população. E regimes ditatoriais duradouros tendem a podar (usando aqui um eufemismo) quem pensa diferente. É o que retrata este aterrador documentário sobre os 35 anos (desde 1986) de governança Yoweri Museveni em Uganda, quando o artista do gueto Bobi Wine foi o mais próximo a derrotar, nas urnas, o longevo presidente que usa ameaças e violência contra quem ousa cruzar seu caminho - polícia e exército sendo um braço fisiológico do governo, quando deveria ser do estado democrático de direito. Fora tais mazelas, trata-se, ainda, de uma experiência cinematográfica corajosa e emocionante, pois coloca em risco pessoal considerável tanto o protagonista quanto os diretores em tomadas assustadoramente reais. É panfletário e unilateral, o que não necessariamente torna-se um defeito, porém, esperançoso por dias melhores ao povo ugandense.
A Memória Infinita
4.0 42Há tantos bons sentimentos explícitos neste tenro documentário chileno que se faz melífluo o relato sobre o angustiante mal de Alzheimer no jornalista Augusto Góngora, profissional corajoso e combativo durante a terrível ditadura de Pinochet. Outrossim, a frase cunhada por Góngora em virtude das lembranças civis do Chile reflete a doença neurodegenerativa que o acomete e metaforiza a luta diária dessas pessoas: sem memória não há identidade. Além do mais, tem muita paixão na obra, com o lado matrimonial de companheirismo da atriz Paulina Urrutia, 25 anos juntos, que aquece o coração e acalenta a esperança sobre a qualidade de vida dos enfermos. Nisso, a habilidade da câmera não invasiva da diretora fez toda diferença, deixando leve (até demais pra atingir o alvo) o filme. Vale a pipoca!
Homem-Aranha: Através do Aranhaverso
4.3 518 Assista AgoraAlopraram na ação desenfreada da, agora, cinessérie multiversal. O que não necessariamente é um defeito. Pelo contrário, em tom cartunesco, a utilização da paleta de cores vibrantes e traços sinestésicos dos (inúmeros) personagens engrandeceu a narrativa sobre o tema adolescência, sem apelar à chatice usual na abordagem. A magnânima animação cria estratégias visuais numa saborosa confusão de estilos tornando as supracitadas ações - e reações - cada vez mais impactantes e conectadas. Sem contar que as subtramas dramáticas foram muito bem elaboradas e coerentes. Porém, o filme não carecia de 141 minutos. Já os caçadores de easter eggs terão muito trabalho aqui, principalmente nas referências aos aranhas heróis de outrora.
Ficção Americana
3.8 360 Assista AgoraUma comédia dramática que, ao mesmo tempo, satiriza, alfineta e enaltece a experiência das artes negras como representação do seu povo. A intelectualidade criativa não tem lugar, hora, gênero ou raça, assim como a estereotipização cultural só ratifica o empobrecimento cognitivo de alguns e o racismo estrutural presente metafisicamente na arquitetura das grandes editoras/produtoras artísticas. Ainda, sutilmente, dá uma cutucada na complicada e abrasiva dinâmica familiar da classe média alta. Tudo isso de maneira divertida e silenciosamente comovente, apesar da perda de coesão e nitidez narrativa do terço derradeiro da fita - e também da embalagem final dando sensação de um subproduto televisivo descartável. Em resumo, um filme inteligente que serve de carapuça a quem apetecer usá-la, com um Jeffrey Wright absurdo no papel principal e coadjuvantes bem deliciosos em cena.
NYAD
3.7 152Uma obra previsível e clichê que sintetiza perfeitamente em como essas qualidades devem ser aproveitadas cinematicamente, sobretudo por se tratar de superação na 3ª idade (tornar-se-á cada vez mais comum no nosso tempo e lugar). As atuações da dupla principal e o ambiente descontraído, conjuntamente, ajudam no tom realístico da fita, literalmente sem maquiagem. Porém, as subtramas, que também compõem a personalidade egocêntrica da nadadora Diana Nyad, foram abordadas com tanta sutileza que se perderam no desenvolvimento narrativo. Mas a mensagem sobre conquistar objetivos e ter persistência está clarividente e altamente palpável no filme, independentemente da discussão sobre a veracidade dos fatos na vida real. Porque isto é ficção.
Beekeeper: Rede de Vingança
3.2 118 Assista AgoraPorradas, tiros, bombas e abelhas. Combinação honesta para um invencível anti-herói.
Folhas de Outono
3.8 96Um filme de amor à moda antiga, contudo, crítico e politizado sem perder a ternura jamais. Ou como uma simplória história romântica pode abraçar o contexto social atual sem descambar pra identitarismos hiperbólicos. Pois, nesta fita, o diretor finlandês não quer mudar o mundo. Pelo contrário, só se sabe a época da trama por causa de notícias de um rádio de pilha. Aqui, dois adultos solitários e apáticos sem perspectiva de crescimento se apaixonam pela solitude e apatia do outro num bar da gelada Helsinque. Ela com seu cotidiano mecânico sem sal e ele sob o escapismo fugaz do cigarro e álcool, ambos de pouca conversa. Uma desconexão rearranjada na cena final, quando amor e alegria passeiam sobre as folhas mortas de outono no chão da praça. Uma bela sessão.
A Sala dos Professores
3.9 135 Assista AgoraGlamourizada no imaginário dos alunos, a sala dos professores é um local de convívio natural dos docentes, enquanto descansam, confabulam ou buscam mais conhecimento para o exercício da mais bela das profissões. Só que, neste bom drama alemão, tal local assume uma grandiosa importância psicossocial quando começam a haver roubos na escola em questão. Assim, Carla Nowak (Leonie Benesch em estado de êxtase), a professora íntegra e corajosa, envolve-se diariamente em dilemas morais entre os seus ideais e os do sistema escolar, instando o espectador a julgar todas as ações do filme. Em resumo, um microcosmo ricamente retratado sob tolices, ingenuidades, capacidades, solidariedades, sensacionalismos e, claro, o bullying derivado de boatos. Ou, numa clara analogia proposta pelo diretor, os algoritmos solucionadores para um cubo mágico não são capazes de resolver os malabarismos de um trabalho humanamente exigente: lecionar.
Nimona
4.1 233 Assista AgoraQuando se encontra uma animação recheada de anarquia subversiva, pode preparar a pipoca e o refrigerante porque vale a sessão. E esta fita não só critica o reacionarismo e costumes tradicionais de um povo, diverte e emociona na medida certa, sem apelar à fábrica de clichês do gênero dos últimos anos. A personagem principal ser uma monstra politicamente incorreta já a torna uma filha do caos, onde o visual e o som explicitam um ambiente sujo e soturno dos grandes centros. Assim, a discussão sobre diversidade e aceitação ganha eco na tela e na trama de um relacionamento radical e triste, apesar da narrativa apressada, convencional e com diversos focos de personalidades. É um filme incrível, belo, turbulento e nítido.
Oppenheimer
4.0 1,0KJá é sabido o quanto os EUA adoram exibir seu potencial bélico no decorrer das eras, assim, neste imagético e deslumbrante filme, a história paira sobre a invenção da mais devastadora arma que já existiu na humanidade, mais precisamente sobre o pai da bomba atômica J. Robert Oppenheimer (Cillian Murphy se afirmando como ator maior). Cinematicamente, a transformação dum fato horrendo e devastador num fenômeno fascinantemente pop, sem ceder nas dimensões trágicas, é uma conquista magnânima de C. Nolan, tanto pela complexidade da física quântica nuclear quanto pelo gênio magnético do físico cinebiografado. O longa emoldura a admiração do trabalho da criação e da mudança que a bomba operou no mundo, quando cada cena carrega a catarse na dose certa para se perceber a tentativa do acerto de contas da América sedenta de sangue com as civilizações atuais. O vai e vem temporal degrada um pouco a obra, assim como a tecnicidade exagerada. Mas é um primor.
Rustin
3.3 80 Assista AgoraUm filme importante sobre um personagem importante que foi um dos organizadores de um evento cada dia mais importante. Porém, há algo que não encaixa. Tudo bem que enfatizar qualquer pessoa quando se tem Martin Luther King Jr. em cena não é uma tarefa fácil, mas, ainda assim, a própria relação de amizade entre este e Bayard Rustin não foi bem aproveitada. Tampouco a Marcha Sobre Washington Por Trabalho E Liberdade (1963) reunindo mais de duzentas mil pessoas, apresentada de modo opaco e sem o devido clímax esperado. Até o emblemático discurso 'I Have A Dream' surge timidamente. Por outro lado, Colman Domingo salva a obra e entrega, de corpo e alma, um biografado ativista negro e gay numa atuação exuberante e cativante, com todos os trejeitos e as dores de alguém indispensável ao movimento retratado. Disponível na Netflix, parece mais um produto em série de seu catálogo, quando carecia mais de polidez e personalidade.
Vidas Passadas
4.2 717 Assista AgoraDe quantas vidas não vividas é feita uma vida? Aqui está uma deleitável obra sobre as passagens e conexões da vida, pois o que somos e o que tornamos são frutos das nossas escolhas e, principalmente, renúncias. Incrivelmente e sem descambar pro uso excessivo de clichês, a melodramatização de uma história de amor abrilhantou de tal forma esta película que diversos questionamentos jorram aos borbotões sem haver, neles, culpabilidade alguma. De forma honesta e direta, o filme proporciona uma doce e interessante reflexão da nossa trajetória como seres humanos amantes. Porém, com a cínica dose de realismo: o tempo nos transforma a todo momento e o destino muda. Ou como diria Belchior, o passado é uma roupa que não nos cabe mais.
Lift: Roubo nas Alturas
2.8 86 Assista AgoraBom passa-tempo.
E preenche positivamente como entretenimento.
A Sociedade da Neve
4.2 707 Assista AgoraA tragédia dos Andes, realmente ocorrida em 1972, foi enredo de diversas criações artísticas e culturais desde então. Porém, cinema também é revisitação, e esta inebriante película espanhola cumpriu positivamente seu papel, tanto pelo realismo quanto pela dramatização. Pois a luta pela sobrevivência em ambientes hostis extrapolam os limites de sociedade cheirosa e limpinha. E, cá, sem a espetacularização do horror, o diretor dá um tapa bem encaixado no dogmatismo religioso e na meritocracia individual, abraçando e celebrando a união de classe para lograr o intento de todos: permanecerem-se vivos. Infelizmente, a estética se sobrepõe à trama quando, por já conhecida, poderia ser melhor lapidada. Mas nada que desabone o produto final, que, além de hipnotizar do início ao fim, é recomendado a estômagos fortes.
Terra de Deus
3.6 12 Assista AgoraUm lindo filme islandês que medita sobre a fé e a fotografia de maneira interessantíssima, já que uma é revelação e a outra é imagem. E essa dicotomia perpassa toda a obra, acompanhando o pastor luterano dinamarquês Lucas (Elliott Crosset Hove) em sua árdua missão de construir uma igreja numa remota ilha da Islândia do século XIX, época em que fotografias eram raras e de manuseios difíceis. Assim como a provação do personagem principal no desenrolar da trama, seja pela viagem penosa, seja pelos pensamentos e atos maus - seria um desconforto existencial? Há ainda alfinetadas no colonialismo religioso, nas colisões culturais e na vaidade humana como pecado mortal. Logo, eis uma dolorosa fotografia fílmica cheia de revelações, tanto pela magia de Deus quanto pela derrota da fé.
Diva - Paixão Perigosa
3.3 8 Assista AgoraNo começo dos anos 80, surgia, na França, o movimento cinéma du look, onde jovens cineastas priorizavam mais o estilo que o conteúdo. Obviamente, criou-se um burburinho, pejorativo no início, que se tornou cult e influenciou gerações posteriores. Este longa, o primeiro do diretor, faz parte desse grupo, quando a pop art acompanha quase toda narrativa numa trama altamente aleatória. Porém, um êxtase cheio de desdobramentos frutos de um destino quimérico, místico e sublime. Tem um jeitão de filme B com ares de neo-noir que se transforma numa bagunça elegante - a mistura de fitas, literalmente, é uma sacada de gênio, levando à tela o encantamento da obsessão pela beleza e poder da voz humana. Uma elegante taquigrafia cinematográfica.