Cinebiografias são, em essência, um retrato infiel do retratado. Além de seguirem a narrativa formulaica do gênero. Ainda bem que, aqui, foge um pouco à regra. Até porque, conscientemente, a fita também fala para as novas gerações que não veem Elvis Presley como o rei do rock. No seu uso de ondas de cores e relâmpagos em flashes, a câmara de Luhrmann associada à vívida atuação de Austin Butler traz um astro mundial hiperbólico e potencialmente explosivo, porém, sensitivo e racional. Talvez o filme precisasse de "um pouco menos de conversa e um pouco mais de ação", já que o prazer e a liberdade do cinebiografado estavam no ato de cantar. Enfim, uma criação operística, exagerada e confusa que exemplifica, metaforicamente, o que foi a vida d'O Rei.
O cinema japonês sempre foi originário, sabendo lidar com seus costumes e ritos e transportá-los para a contemporaneidade sem perder a ternura e a acidez crítica. Este interessante filme não foge à forma. Ambientado num Japão do século XIV, devastado por guerras civis, o roteiro se inspira numa parábola budista na qual uma mãe utiliza uma máscara para impedir que sua filha chegue até o templo. Como castigo, a mãe encontra dificuldade em retirar a máscara e, para conseguir tal feito, tem que arrancar sua pele junto. Somam-se à trama a escassez de alimentos, a segregação social, a figura da mulher numa sociedade retrógrada e os sentimentos humanos como mal maior - ciúme, medo, desejo, cobiça e mentiras. Assim surge uma obra sem classificação, pois pode ser considerada horror, drama de época, thriller sobrenatural, enfim, uma ironia deliciosa entre a opressão do isolamento e o medo pela presença do outro, com atmosfera sombria, perversa, claustrofóbica e montagens assustadoras, principalmente na metade final. Um impressionante conto de decadência moral.
Por mais que a realidade virtual não assuste tanto quanto antes, a premissa deste bom filme continua em voga no mundo cyberpunk. Normalmente, neste estilo cinematográfico, a distopia é acompanhada por um personagem principal marginalizado em um cenário efervescente - aqui, uma Los Angeles suja e violenta do final do século passado. Na primeira hora, tem-se uma ambientação bastante digna e cativante do tema proposto, num trabalho muito bem feito pela diretora. Inclusive com a relação memória humana/memória da máquina posta em discussão propositalmente. Pra quê revivermos as emoções passadas de um tempo muito distante? Nossas paredes da memória já não são capazes de sustentar tais sentimentos? Por outro lado, se o que vivenciamos foi tão bom, por que não sentirmos prazer novamente numa mesma situação, mesmo que seja num passado que não existe mais? Desafortunadamente, a fita segue um rumo mais trash que se imaginava, mas a dose metafísica do debate permanece pronta a ser degustada. Compensa provar.
Quando a injustiça colide com a solidariedade nasce uma força muito grande chamada revolução. Filmada com viés filosófico, esta esquecida obra não é apenas um tapa, e, sim, um chute bem dado no estômago de uma desacreditada sociedade sedenta por justiçamentos. Uma mistura de ansiedade pela fuga e resignação pela prisão, onde o importante não é conseguir escapar, mas como viver sem ter tentado. O diretor também não busca evocar interioridade ou subjetividade de seus personagens e subtramas, porque a atenção é dedicada ao comportamento por meio de ação, interação e reação. E que final azedo, tal qual um biribiri recém colhido do pé.
Quando os abusos da colonização é retratada sem retoques, percebe-se claramente a chama do ódio suscitando dos vários lados possíveis, seja o colonizado ou o colonizador. Ainda que ficcional, esta fita (considerado por muitos o melhor filme neozelandês de todos os tempos) tenta representar o levante maori, realmente acontecido, contra os colonizadores britânicos, o que mudou a história da Nova Zelândia. Porém, sempre enfatizando o desejo de "utu" - vingança. Culturalmente significativa, a obra ousa mesclar o modo estadunidense de filmar com a beleza de uma Oceania até então longe dos holofotes cinematográficos. Uma sessão que diverte e que agrega conhecimento.
Existem filmes que são para poucos. Infelizmente, é a realidade. Principalmente se formos pegar a audiência brasileira, que prefere chorar com blockbusters à buscar conhecimento se contextualizando em determinadas épocas e locais. É o caso do excelente O ESPIÃO QUE SABIA DEMAIS (2011), do sueco Tomas Alfredson, que remonta ao Serviço Secreto da Inglaterra em 1973, no auge da Guerra Fria. Sob os tiros cruzados entre a CIA e a KGB, a Inteligência Britânica sofre por causa de um agente duplo. E faz o que sempre fizeram de melhor (James Bond que o diga!): observa e espiona.
Através da fotografia fria e um leve toque de nobreza imodesta, a espionagem clássica é revivida nesta obra pela chefia de George Smiley (atuação magnífica de Gary Oldman), um aposentado ex-integrante do alto escalão inglês que só desejava ficar em casa após uma desastrosa missão na Hungria. Assim, os esquizofrênicos ecos de uma disputa surreal continuam a soar permanentemente na sua cabeça - mentiras, traições, confusões, mistérios, segredos, tudo é um ingrato parceiro das suas imaginações. Tanto que para compor seu novo grupo, foram chamados agentes mais novos, Peter Guillam (Benedict Cumberbatch) e Ricky Tarr (Tom Hardy), que vão apressadamente de bicicleta para o trabalho enquanto os mais velhos caminham vagarosamente (essa dicotomia, presente em quase todo o filme, é uma aula de cidadania cinéfila).
Pra quem aprecia o jogo de xadrez, há claras referências ao enovelado desenvolvimento narrativo de um roteiro robustamente inteligente. Planos distantes, figurinos charmosos, violência travestida e usos de flashbacks dão o tom para as soluções da trama na medida certa, prendendo o espectador e respeitando sua análise particular. Para os descontextualizados, esta fita parecerá confusa e muitos sairão com a sensação de "não entendi nada". Enfim, uma pequena demonstração do que foi uma era onde o pânico do desconhecido era uma paranoia real. Porém, sem propósito.
O que você faria se recebesse uma carta escrita por John Lennon 40 anos após ser enviada? Basicamente esta é a premissa deste bom filme, que tem Al Pacino com uma verdadeira vontade de atuar. E isto é tão cativante que toda a pieguice do roteiro é varrida pra debaixo do tapete após os créditos finais. Baseada levemente na história do cantor folk inglês Steve Tilston, esta obra aborda questões socioexistenciais, principalmente as familiares, e os erros do passado de um cidadão que preferiu viver no excesso da ambição (e mantendo seus shows com antigos sucessos sem compor músicas novas por medo da recepção do público). E com uma clara mensagem: dinheiro não compra perdão. Atitudes e demonstrações de afeto sim.
Como não existem mais filmes de terror terrivelmente assustadores, já que o mundo real está tão horripilante quanto aos criados no cinema, o suspense exposto aqui é paradoxalmente nascido da cumplicidade, entre amizades possíveis e/ou não imagináveis. Baseado num conto de Joe Hill, filho de Stephen King, este filme carrega muito do famoso escritor, como o sumiço de crianças, adultos relapsos e espiritualidade sobrenatural macabra. Bem dirigido e com atuações corretas, o desenvolvimento narrativo absorve o telespectador na medida certa, mesmo com as escorregadas do roteiro que nada abalam o produto final. Enfim, mais que terror propriamente dito, esta obra apresenta um belíssimo suspense psicológico que, se for com o coração vazio, pode atemorizar. Pois a simplicidade e a pureza das crianças passam pelo ludismo de uma chamada de um telefone preto que não funciona. Bom divertimento.
Uma arte que retrata outra arte e que encanta como a arte. Tudo é cultura neste caldeirão de cores entre figurinos e enquadramentos nas mãos de um então iniciante e desconhecido diretor australiano. De narrativa simplista, esta fita é um ode à dança e, principalmente, aos corajosos e inovadores dançarinos. Uma obra que namora o kitsch mas abraça o perfeccionismo da execução, sendo os atores a pilastra principal da trama - a câmera é um mero objeto neste filme caricato e despretensioso. Só que, ainda assim, empolga e diverte de montão até os mais exigentes espectadores. E viva a música latina!
Um drama kosovar que retrata um mundo não tão distante de qualquer país reacionário. O marido de Fahrije (Yilka Gashi) desapareceu durante a Guerra do Kosovo e, desde então, sua família enfrenta dificuldades financeiras. Para sustentá-la, ela começa um pequeno empreendimento agrícola. Mas, na cidade tradicional e patriarcal onde vive, seus esforços para empoderar a si mesma e as outras mulheres da região não são vistos com bons olhos. Ela não luta apenas pela sobrevivência de sua família, mas também contra uma comunidade hostil que torce pelo seu fracasso. Em suma, um filme que dialoga com a cura mesmo com o debate encerrado pelo machismo. Uma obra comovente só que cheia de falhas técnicas, o que não desabona o resultado. Um ode à culinária comunitária.
O cinema, assim como todas as artes, tem várias facetas. Alguns gostam apenas do entretenimento, outros preferem a informação. Uns se deliciam com os teatrais e existem, ainda, os pensadores intelectuais que juntam todos esses numa só fita. Tem, inclusive, faculdade de cinema para dissecar as incontáveis camadas de uma obra cinematográfica. Ademais, há o cinema social. Aquele que insere o espectador no famigerado "lugar de fala" e expressa na telona o meio que nos cerca mas não conseguimos enxergar. É o caso de O SOM DO SILÊNCIO (2019), de Darius Marder, que dá um soco certeiro no capacitismo e na fragilidade neuroexistencial da geração século XXI.
Ruben (Riz Ahmed em estado de graça) é um baterista de heavy metal que perde a audição abruptamente. Ele e a namorada Lou (Olivia Cooke) moram num trailer e ganham a vida fazendo shows e vendendo camisas de rock. Ou seja, Ruben, que utiliza seu corpo para sobreviver, foi traído pelo próprio corpo. A frustração de quem nunca teve nada atinge o ápice, ainda mais quando chega a salgada conta médica. Assim, há a necessidade de ajuda. E quem entra em cena é Joe (Paul Raci em atuação absurda), um veterano que perdeu a audição na guerra, ao demonstrar ser a saúde mental mais importante que a clínica para um rapaz recém acometido pela surdez.
Felizmente, é um agrado e tanto para essa parcela da população, que sofre com preconceitos e estereótipos. Eu, como fonoaudiólogo, sinto-me representado e sigo na luta por mais conquistas dos surdos, que já possuem a Libras como a língua materna oficializada desde 2002 no Brasil. E, voltando ao filme, abre-se mais um espectro de discussão num final não muito otimista mas essencialmente existencialista - qual o mais acolhedor, o som metálico ruidoso ou o ensurdecedor som do silêncio?
Talvez seja o filme mais importante da nouvelle vague do cinema inglês, o New Wave Cinema. Até porque foi essa juventude proletária suburbana inglesa retratada nesta fita que mudou o mundo na década de 60. Ou, ao menos, deu o primeiro passo. Amoralidade, fanfarrice e inconsequência ditam o arco narrativo da trama dos personagens sem rumo e inquietos, que viviam a vida no improviso e com perspectivas cauterizadas ao simples sabor do vento. Filmaço que trouxe Albert Finney, numa atuação memorável, para o estrelato.
Um épico de valor histórico imensurável, inexplicavelmente desconhecido do grande público. E sem precisar ser panfletário, pois não se trata de defender nenhuma religião, mas a liberdade de acreditar no que quiser. Até mesmo em nada. Com elenco pomposo e diálogos inteligentes, este filme cai no clichê dos dramas históricos ao pesar demais a mão na defesa da causa católica na guerra cristera no México, nos anos 20. Como se o inimigo não fosse apenas o governo repressivo mexicano, mas também o telespectador. Mas é uma obra sincera e de boas intenções, embora um pouco desfocada e sem pavimentação na manutenção da narrativa proposta.
A divina comédia nerd dos anos 90 que retrata o inferno astral da juventude daquela época - sem perspectiva, sem marca e com muita referência pop preenchendo o vazio intelectual. O mundo real pode ser tão bizarro quanto o dia de sábado de dois balconistas desbocados, quando acontecimentos dadaístas dão o tom pra uma rotina monótona e desesperançosa. Filmado em preto e branco, esta fita ganhou status cult com o passar dos anos justamente por tocar na ferida aberta das prisões do cotidiano que acabaram virando padrão de um estilo de vida imposto pela inércia pós guerra fria. Ou como um personagem disse: não é porque servimos você que gostamos de você. Uma boa sessão para divagações.
No mês da família, nada mais conveniente que assistir a filmes que colocam essa instituição num primeiro e irretocável lugar. Mais bonito ainda quando o personagem principal perde a mãe no parto, sendo criado pelo pai e padrinho. Para completar a história açucarada, seu destino é controlar, um dia, os negócios da família. Só que há alguns outros detalhes nessa história toda, principalmente o fato de se tratar da máfia italiana no atraente A HONRA DO PODEROSO PRIZZI (1985), de John Huston. Humor, amor e sangue se embaralham para contar uma triste mas verdadeira história.
Charley Partanna (o monstruoso Jack Nicholson) é o responsável pela "segurança" dos negócios da família Prizzi, cujo patriarca é o verdugo Don Corrado (William Hickey em atuação maravilhosa). Pra continuar nos Prizzi, Charley é reservado para casar com Maerose (Anjelica Huston), neta do chefe. Porém, Partanna se apaixona e casa com Irene Walker (Kathleen Turner), uma assassina de aluguel de origem polaca. Ou seja, desonrando a memória do poderoso Don Corrado Prizzi. Então as confusões se tornam gigantescas e as consequências são frutos de tal escolha. Soma-se a isso o fato de, num passado distante, Charley ter jurado fidelidade absoluta à famiglia.
Há muitas camadas a serem desnudadas nesta fita. Mas é preciso destapar os olhos para algumas idiossincrasias da máfia italiana. Uma delas, e já devidamente citada e creditada, é a instituição família no topo das prioridades. Só que família, neste contexto, quase nunca significa parentesco, mas poder, controle e, logicamente, dinheiro. E tal história se encaminha numa narrativa labiríntica que diverte numa comédia sombria e bizarra, onde o espectador vê traição e cinismo em todas as cenas, inclusive nas repletas de amor. Um singelo soco irônico nos melodramas de crime.
Mas há falhas, obviamente. Alguns diálogos são pobres e algumas situações se desenrolam fácil demais, como o final apressado e descarregado da tensão emotiva que merecia. Uma rigidez de câmera desnecessária. Contudo, é um filme alegre, intricado e que entrega um gosto ruim aos puristas. A estes sugere-se passar longe, caso tome a obra como "lição de vida". Até porque, na vida real, algumas famílias também não se aguentam quando o assunto é dinheiro.
O fato de ser conhecido por dois títulos no Brasil reforça o quanto este bom filme aterrorizou os espectadores em sua época. Baseado na novela 'Viy' (1835), de Nicolai Gogol, este horror gótico tem menos da obra russa e mais dos filmes hollywoodianos do gênero dos anos 30. E isso não é uma crítica, pelo contrário. Ainda mais pelo seu ato inicial tão caprichoso e horripilante onde a violência visceral abre alas pra tensão do pesadelo irreal. Ambientado na Moldávia e com diálogos em inglês, esta obra italiana em preto-e-branco bruxuleante traz os elementos clichês do terror, mas com bastante simbolismo para a bonita representação de sua história, onde nem a pieguice da romantização dispensável interfere na produção final. Uma fita difícil de ser ignorada das trevas dos nossos corações.
Um admirável exercício de metalinguagem do cinema utilizando-se lembranças e memórias de quando a cinematografia era uma disciplina escolar. Ao mudar o foco narrativo, este filme perpassa seu predecessor e se justifica com tal sobre os destroços emocionais deixados para trás. Aqui, a dor é transformada em arte, literalmente, e não se apega ao relacionamento tóxico tão comum que interessava apenas à diretora britânica. De tom mais leve e bem-humorado, o longa espelha a decisão da protagonista de (se) enxergar sob nova perspectiva, com o amadurecimento natural de uma mente talentosa. Suavidade, amplitude e quentura se misturam e proporcionam uma agradável sessão de cinefilia. Vale a pipoca!
Uma obra de clichês excessivos que tem como mote uma história irreal e insípida. Pois nem o mais ambicioso dos meteorologistas deve sonhar com o estrelato midiático apresentado no longa. Portanto, uma narrativa falha que, de tão implausível, infecta as boas atuações do elenco. Até os bonitinhos subtramas soam piegas e batidos, como se passasse na telona um cinema de absurdo com pitada kitsch. Ao menos serve pra atestar que, assim como cá, faz-se filme ruim na Argentina.
Único filme dirigido por Marlon Brando, este é um estranho, túmido e brilhante western que faz a conexão entre o gênero dos anos 40/50 com o que viria posteriormente, principalmente pelos realizados por Sam Peckinpah (dizem, inclusive, que este assinou o roteiro, embora não creditado). É, basicamente, sobre vingança e como o bem e o mal podem estar presentes juntos numa mesma pessoa. E essa dualidade é bastante explorada numa obra que cresce com o passar da fita, apresentando os bons personagens secundários igualmente ambíguos e necessários. Outro detalhe interessante é a fusão da aridez do deserto constantemente presente nos faroestes com o consolo do mar, pois os caubóis, aqui, vão pra praia. Intrigante e gracioso, porém, inchado e desconcertado.
A cultura é uma das armas mais subversivas da história da humanidade. E seu golpe é tão singelo e melífluo que, em diversas vezes, o atingido é também mais um propagador da chama da resistência. Na Paris sitiada pelos nazistas durante a segunda guerra mundial não foi diferente. Enquanto a ocupação alemã aumentava, mais precisa era a necessidade de capilarizar a cultura francesa entre os povos. Como? Fazendo arte em seu esplendor, para demonstrar aos invasores que havia ali uma barreira intelectual inquebrável, que não se ruía pelo poderio militar. O filme O ÚLTIMO METRÔ (1980), de François Truffaut, retrata muito bem aquela época sob um olhar cultural.
Como Paris estava dominada, havia o toque de recolher num determinado horário, sendo, este, a derradeira viagem do metrô na cidade para retornar com as pessoas para casa. Tudo se resolvia até o último metrô. E, ainda por causa da falta de opções de lazer, muita gente frequentava os teatros em busca de divertimento e fuga momentânea do pesadelo que viviam. As casas lotavam e os agentes culturais começaram a enxergar, nas peças teatrais, formas de resistência. E as mensagens invadiam o local mesmo recheado de personalidades nazistas que, com as cabeças fixas nas bombas, riam e aplaudiam seus próprios deboches.
Truffaut não passou pano e nem era um alienado político por não enfatizar tiros, mortes e passagens fúnebres nesta obra. Pelo contrário, ele fez um ode à arte por ajudar a livrar sua França do domínio maléfico nazista. Sendo mais ainda uma declaração de amor ao teatro, pois utiliza-se da metalinguagem não apenas como forma, mas como verdadeira personagem da fita. Um exercício cultural necessário num tempo difícil de trevas.
A escolha da produção em se passar quase toda a história num teatro pode fazer cansar o espectador, mas é algo logicamente aceitável, além de possuir o simbolismo supracitado. Contudo, a atmosfera é envolvente e cativante, tal qual Catherine Deneuve, Gérard Depardieu e Heinz Bennet quando aparecem na tela com suas ambiguidades e destrezas. Em suma, um filme de 1980 que rememora o horror de 1944 e que traz à tona o desafio de lutar contra o obscurantismo da atualidade, pois nos lança a pulga atrás da orelha. Porque derrotar o fascismo não é fácil. Mas o caminho transita pela arte e pela cultura.
Uma história impressionante sobre o universo jurídico e a dualidade que tal disciplina carrega, precisando, em diversas ocasiões, caminhar lado a lado com amoralismo e, consequentemente, despertar sensações de injustiça. Jeremy Irons (excelência de atuação) no papel do milionário Claus Von Büllow é ao mesmo tempo cínico e sedutor, o que nos deixa eternamente com a dúvida: culpado ou inocente, apesar de já condenado socialmente? E essa espiral de morte social é um outro aspecto interessante da trama que, com tons de tragicomédia, retrata as "boas maneiras" da alta sociedade. Uma saga do nosso tempo, mesmo não sendo da nossa classe econômica.
A criança que habita em nós nunca deixa de existir. Ela apenas se torna cada vez mais cínica e impaciente, preferindo, com o passar do tempo, a reclusão à liberdade. Este terno e belo drama com jeitão documental atesta a sisudez do envelhecimento, dando mais ênfase às memórias das pequenas coisas do que propriamente à psicologia coming of age. E mais: a criançada está, sim, preocupada com o futuro. Num claro recado à labuta de ser mãe, vemos o cuidado diário como algo penoso, desafiador mas satisfatório, pois pais e filhos desenvolvem-se e evoluem-se mutuamente (no caso do longa, tio e sobrinho), cada qual descobrindo um pouco de si no outro. Além do ato de escutar, literalmente. Pois estreitar laços é o modo mais fácil de desatar nós.
P.S.¹ - Como as entrevistas com as crianças foram realizadas realmente, seria interessante lançar um documentário com as respostas dada.
P.S.² - Até que enfim uma criança fazendo o papel de criança com criancice.
P.S.³ - Quem ainda usa post scriptum em pleno século XXI?
Agatha Christie, a Rainha do Crime, é um prato cheio para a cinematografia. Sua obra é um roteiro pronto para qualquer diretor botar as imagens em cena. Porém, como sabido pela imensa massa de seres pensantes, nada supera a imaginação de ler o livro. Não que este longa seja ruim, pelo contrário, elenco afiado, história intrigante, mistério atraente, situações inesperadas e um espirituoso e bem humorado Hercule Poirot, o icônico detetive belga criado pela escritora inglesa. Só que não há aprofundamento e nem algo excepcional, deixando a obra meio monótona para o gênero "quem é o assassino?". E os movimentos românticos da trama não são muito convincentes, como se as atividades das pequenas células cinzentas dos espectadores fossem menosprezadas. Mas é um bom e elegante filme da estirpe britânica.
Elvis
3.8 759Cinebiografias são, em essência, um retrato infiel do retratado. Além de seguirem a narrativa formulaica do gênero. Ainda bem que, aqui, foge um pouco à regra. Até porque, conscientemente, a fita também fala para as novas gerações que não veem Elvis Presley como o rei do rock. No seu uso de ondas de cores e relâmpagos em flashes, a câmara de Luhrmann associada à vívida atuação de Austin Butler traz um astro mundial hiperbólico e potencialmente explosivo, porém, sensitivo e racional. Talvez o filme precisasse de "um pouco menos de conversa e um pouco mais de ação", já que o prazer e a liberdade do cinebiografado estavam no ato de cantar. Enfim, uma criação operística, exagerada e confusa que exemplifica, metaforicamente, o que foi a vida d'O Rei.
Onibaba: A Mulher Demônio
4.1 115O cinema japonês sempre foi originário, sabendo lidar com seus costumes e ritos e transportá-los para a contemporaneidade sem perder a ternura e a acidez crítica. Este interessante filme não foge à forma. Ambientado num Japão do século XIV, devastado por guerras civis, o roteiro se inspira numa parábola budista na qual uma mãe utiliza uma máscara para impedir que sua filha chegue até o templo. Como castigo, a mãe encontra dificuldade em retirar a máscara e, para conseguir tal feito, tem que arrancar sua pele junto. Somam-se à trama a escassez de alimentos, a segregação social, a figura da mulher numa sociedade retrógrada e os sentimentos humanos como mal maior - ciúme, medo, desejo, cobiça e mentiras. Assim surge uma obra sem classificação, pois pode ser considerada horror, drama de época, thriller sobrenatural, enfim, uma ironia deliciosa entre a opressão do isolamento e o medo pela presença do outro, com atmosfera sombria, perversa, claustrofóbica e montagens assustadoras, principalmente na metade final. Um impressionante conto de decadência moral.
Estranhos Prazeres
3.6 134 Assista AgoraPor mais que a realidade virtual não assuste tanto quanto antes, a premissa deste bom filme continua em voga no mundo cyberpunk. Normalmente, neste estilo cinematográfico, a distopia é acompanhada por um personagem principal marginalizado em um cenário efervescente - aqui, uma Los Angeles suja e violenta do final do século passado. Na primeira hora, tem-se uma ambientação bastante digna e cativante do tema proposto, num trabalho muito bem feito pela diretora. Inclusive com a relação memória humana/memória da máquina posta em discussão propositalmente. Pra quê revivermos as emoções passadas de um tempo muito distante? Nossas paredes da memória já não são capazes de sustentar tais sentimentos? Por outro lado, se o que vivenciamos foi tão bom, por que não sentirmos prazer novamente numa mesma situação, mesmo que seja num passado que não existe mais? Desafortunadamente, a fita segue um rumo mais trash que se imaginava, mas a dose metafísica do debate permanece pronta a ser degustada. Compensa provar.
A Um Passo da Liberdade
4.3 40Quando a injustiça colide com a solidariedade nasce uma força muito grande chamada revolução. Filmada com viés filosófico, esta esquecida obra não é apenas um tapa, e, sim, um chute bem dado no estômago de uma desacreditada sociedade sedenta por justiçamentos. Uma mistura de ansiedade pela fuga e resignação pela prisão, onde o importante não é conseguir escapar, mas como viver sem ter tentado. O diretor também não busca evocar interioridade ou subjetividade de seus personagens e subtramas, porque a atenção é dedicada ao comportamento por meio de ação, interação e reação. E que final azedo, tal qual um biribiri recém colhido do pé.
Utu - Espírito de Vingança
3.2 6Quando os abusos da colonização é retratada sem retoques, percebe-se claramente a chama do ódio suscitando dos vários lados possíveis, seja o colonizado ou o colonizador. Ainda que ficcional, esta fita (considerado por muitos o melhor filme neozelandês de todos os tempos) tenta representar o levante maori, realmente acontecido, contra os colonizadores britânicos, o que mudou a história da Nova Zelândia. Porém, sempre enfatizando o desejo de "utu" - vingança. Culturalmente significativa, a obra ousa mesclar o modo estadunidense de filmar com a beleza de uma Oceania até então longe dos holofotes cinematográficos. Uma sessão que diverte e que agrega conhecimento.
O Espião que Sabia Demais
3.4 744 Assista AgoraA ATENÇÃO PLURALIZADA DE UM MUNDO DIVIDIDO
Existem filmes que são para poucos. Infelizmente, é a realidade. Principalmente se formos pegar a audiência brasileira, que prefere chorar com blockbusters à buscar conhecimento se contextualizando em determinadas épocas e locais. É o caso do excelente O ESPIÃO QUE SABIA DEMAIS (2011), do sueco Tomas Alfredson, que remonta ao Serviço Secreto da Inglaterra em 1973, no auge da Guerra Fria. Sob os tiros cruzados entre a CIA e a KGB, a Inteligência Britânica sofre por causa de um agente duplo. E faz o que sempre fizeram de melhor (James Bond que o diga!): observa e espiona.
Através da fotografia fria e um leve toque de nobreza imodesta, a espionagem clássica é revivida nesta obra pela chefia de George Smiley (atuação magnífica de Gary Oldman), um aposentado ex-integrante do alto escalão inglês que só desejava ficar em casa após uma desastrosa missão na Hungria. Assim, os esquizofrênicos ecos de uma disputa surreal continuam a soar permanentemente na sua cabeça - mentiras, traições, confusões, mistérios, segredos, tudo é um ingrato parceiro das suas imaginações. Tanto que para compor seu novo grupo, foram chamados agentes mais novos, Peter Guillam (Benedict Cumberbatch) e Ricky Tarr (Tom Hardy), que vão apressadamente de bicicleta para o trabalho enquanto os mais velhos caminham vagarosamente (essa dicotomia, presente em quase todo o filme, é uma aula de cidadania cinéfila).
Pra quem aprecia o jogo de xadrez, há claras referências ao enovelado desenvolvimento narrativo de um roteiro robustamente inteligente. Planos distantes, figurinos charmosos, violência travestida e usos de flashbacks dão o tom para as soluções da trama na medida certa, prendendo o espectador e respeitando sua análise particular. Para os descontextualizados, esta fita parecerá confusa e muitos sairão com a sensação de "não entendi nada". Enfim, uma pequena demonstração do que foi uma era onde o pânico do desconhecido era uma paranoia real. Porém, sem propósito.
Não Olhe Para Trás
3.7 207 Assista AgoraO que você faria se recebesse uma carta escrita por John Lennon 40 anos após ser enviada? Basicamente esta é a premissa deste bom filme, que tem Al Pacino com uma verdadeira vontade de atuar. E isto é tão cativante que toda a pieguice do roteiro é varrida pra debaixo do tapete após os créditos finais. Baseada levemente na história do cantor folk inglês Steve Tilston, esta obra aborda questões socioexistenciais, principalmente as familiares, e os erros do passado de um cidadão que preferiu viver no excesso da ambição (e mantendo seus shows com antigos sucessos sem compor músicas novas por medo da recepção do público). E com uma clara mensagem: dinheiro não compra perdão. Atitudes e demonstrações de afeto sim.
O Telefone Preto
3.5 1,0K Assista AgoraComo não existem mais filmes de terror terrivelmente assustadores, já que o mundo real está tão horripilante quanto aos criados no cinema, o suspense exposto aqui é paradoxalmente nascido da cumplicidade, entre amizades possíveis e/ou não imagináveis. Baseado num conto de Joe Hill, filho de Stephen King, este filme carrega muito do famoso escritor, como o sumiço de crianças, adultos relapsos e espiritualidade sobrenatural macabra. Bem dirigido e com atuações corretas, o desenvolvimento narrativo absorve o telespectador na medida certa, mesmo com as escorregadas do roteiro que nada abalam o produto final. Enfim, mais que terror propriamente dito, esta obra apresenta um belíssimo suspense psicológico que, se for com o coração vazio, pode atemorizar. Pois a simplicidade e a pureza das crianças passam pelo ludismo de uma chamada de um telefone preto que não funciona. Bom divertimento.
Vem Dançar Comigo
3.6 108 Assista AgoraUma arte que retrata outra arte e que encanta como a arte. Tudo é cultura neste caldeirão de cores entre figurinos e enquadramentos nas mãos de um então iniciante e desconhecido diretor australiano. De narrativa simplista, esta fita é um ode à dança e, principalmente, aos corajosos e inovadores dançarinos. Uma obra que namora o kitsch mas abraça o perfeccionismo da execução, sendo os atores a pilastra principal da trama - a câmera é um mero objeto neste filme caricato e despretensioso. Só que, ainda assim, empolga e diverte de montão até os mais exigentes espectadores. E viva a música latina!
Colméia
3.7 20 Assista AgoraUm drama kosovar que retrata um mundo não tão distante de qualquer país reacionário. O marido de Fahrije (Yilka Gashi) desapareceu durante a Guerra do Kosovo e, desde então, sua família enfrenta dificuldades financeiras. Para sustentá-la, ela começa um pequeno empreendimento agrícola. Mas, na cidade tradicional e patriarcal onde vive, seus esforços para empoderar a si mesma e as outras mulheres da região não são vistos com bons olhos. Ela não luta apenas pela sobrevivência de sua família, mas também contra uma comunidade hostil que torce pelo seu fracasso. Em suma, um filme que dialoga com a cura mesmo com o debate encerrado pelo machismo. Uma obra comovente só que cheia de falhas técnicas, o que não desabona o resultado. Um ode à culinária comunitária.
O Som do Silêncio
4.1 985 Assista AgoraO SOM QUE ECOA NO SILÊNCIO
O cinema, assim como todas as artes, tem várias facetas. Alguns gostam apenas do entretenimento, outros preferem a informação. Uns se deliciam com os teatrais e existem, ainda, os pensadores intelectuais que juntam todos esses numa só fita. Tem, inclusive, faculdade de cinema para dissecar as incontáveis camadas de uma obra cinematográfica. Ademais, há o cinema social. Aquele que insere o espectador no famigerado "lugar de fala" e expressa na telona o meio que nos cerca mas não conseguimos enxergar. É o caso de O SOM DO SILÊNCIO (2019), de Darius Marder, que dá um soco certeiro no capacitismo e na fragilidade neuroexistencial da geração século XXI.
Ruben (Riz Ahmed em estado de graça) é um baterista de heavy metal que perde a audição abruptamente. Ele e a namorada Lou (Olivia Cooke) moram num trailer e ganham a vida fazendo shows e vendendo camisas de rock. Ou seja, Ruben, que utiliza seu corpo para sobreviver, foi traído pelo próprio corpo. A frustração de quem nunca teve nada atinge o ápice, ainda mais quando chega a salgada conta médica. Assim, há a necessidade de ajuda. E quem entra em cena é Joe (Paul Raci em atuação absurda), um veterano que perdeu a audição na guerra, ao demonstrar ser a saúde mental mais importante que a clínica para um rapaz recém acometido pela surdez.
Felizmente, é um agrado e tanto para essa parcela da população, que sofre com preconceitos e estereótipos. Eu, como fonoaudiólogo, sinto-me representado e sigo na luta por mais conquistas dos surdos, que já possuem a Libras como a língua materna oficializada desde 2002 no Brasil. E, voltando ao filme, abre-se mais um espectro de discussão num final não muito otimista mas essencialmente existencialista - qual o mais acolhedor, o som metálico ruidoso ou o ensurdecedor som do silêncio?
Tudo Começou no Sábado
3.8 25Talvez seja o filme mais importante da nouvelle vague do cinema inglês, o New Wave Cinema. Até porque foi essa juventude proletária suburbana inglesa retratada nesta fita que mudou o mundo na década de 60. Ou, ao menos, deu o primeiro passo. Amoralidade, fanfarrice e inconsequência ditam o arco narrativo da trama dos personagens sem rumo e inquietos, que viviam a vida no improviso e com perspectivas cauterizadas ao simples sabor do vento. Filmaço que trouxe Albert Finney, numa atuação memorável, para o estrelato.
Cristiada
4.3 19Um épico de valor histórico imensurável, inexplicavelmente desconhecido do grande público. E sem precisar ser panfletário, pois não se trata de defender nenhuma religião, mas a liberdade de acreditar no que quiser. Até mesmo em nada. Com elenco pomposo e diálogos inteligentes, este filme cai no clichê dos dramas históricos ao pesar demais a mão na defesa da causa católica na guerra cristera no México, nos anos 20. Como se o inimigo não fosse apenas o governo repressivo mexicano, mas também o telespectador. Mas é uma obra sincera e de boas intenções, embora um pouco desfocada e sem pavimentação na manutenção da narrativa proposta.
O Balconista
3.9 221 Assista AgoraA divina comédia nerd dos anos 90 que retrata o inferno astral da juventude daquela época - sem perspectiva, sem marca e com muita referência pop preenchendo o vazio intelectual. O mundo real pode ser tão bizarro quanto o dia de sábado de dois balconistas desbocados, quando acontecimentos dadaístas dão o tom pra uma rotina monótona e desesperançosa. Filmado em preto e branco, esta fita ganhou status cult com o passar dos anos justamente por tocar na ferida aberta das prisões do cotidiano que acabaram virando padrão de um estilo de vida imposto pela inércia pós guerra fria. Ou como um personagem disse: não é porque servimos você que gostamos de você. Uma boa sessão para divagações.
A Honra do Poderoso Prizzi
3.4 46 Assista AgoraA FORTALEZA QUE SE CHAMA FAMÍLIA
No mês da família, nada mais conveniente que assistir a filmes que colocam essa instituição num primeiro e irretocável lugar. Mais bonito ainda quando o personagem principal perde a mãe no parto, sendo criado pelo pai e padrinho. Para completar a história açucarada, seu destino é controlar, um dia, os negócios da família. Só que há alguns outros detalhes nessa história toda, principalmente o fato de se tratar da máfia italiana no atraente A HONRA DO PODEROSO PRIZZI (1985), de John Huston. Humor, amor e sangue se embaralham para contar uma triste mas verdadeira história.
Charley Partanna (o monstruoso Jack Nicholson) é o responsável pela "segurança" dos negócios da família Prizzi, cujo patriarca é o verdugo Don Corrado (William Hickey em atuação maravilhosa). Pra continuar nos Prizzi, Charley é reservado para casar com Maerose (Anjelica Huston), neta do chefe. Porém, Partanna se apaixona e casa com Irene Walker (Kathleen Turner), uma assassina de aluguel de origem polaca. Ou seja, desonrando a memória do poderoso Don Corrado Prizzi. Então as confusões se tornam gigantescas e as consequências são frutos de tal escolha. Soma-se a isso o fato de, num passado distante, Charley ter jurado fidelidade absoluta à famiglia.
Há muitas camadas a serem desnudadas nesta fita. Mas é preciso destapar os olhos para algumas idiossincrasias da máfia italiana. Uma delas, e já devidamente citada e creditada, é a instituição família no topo das prioridades. Só que família, neste contexto, quase nunca significa parentesco, mas poder, controle e, logicamente, dinheiro. E tal história se encaminha numa narrativa labiríntica que diverte numa comédia sombria e bizarra, onde o espectador vê traição e cinismo em todas as cenas, inclusive nas repletas de amor. Um singelo soco irônico nos melodramas de crime.
Mas há falhas, obviamente. Alguns diálogos são pobres e algumas situações se desenrolam fácil demais, como o final apressado e descarregado da tensão emotiva que merecia. Uma rigidez de câmera desnecessária. Contudo, é um filme alegre, intricado e que entrega um gosto ruim aos puristas. A estes sugere-se passar longe, caso tome a obra como "lição de vida". Até porque, na vida real, algumas famílias também não se aguentam quando o assunto é dinheiro.
A Máscara de Satã
3.9 90O fato de ser conhecido por dois títulos no Brasil reforça o quanto este bom filme aterrorizou os espectadores em sua época. Baseado na novela 'Viy' (1835), de Nicolai Gogol, este horror gótico tem menos da obra russa e mais dos filmes hollywoodianos do gênero dos anos 30. E isso não é uma crítica, pelo contrário. Ainda mais pelo seu ato inicial tão caprichoso e horripilante onde a violência visceral abre alas pra tensão do pesadelo irreal. Ambientado na Moldávia e com diálogos em inglês, esta obra italiana em preto-e-branco bruxuleante traz os elementos clichês do terror, mas com bastante simbolismo para a bonita representação de sua história, onde nem a pieguice da romantização dispensável interfere na produção final. Uma fita difícil de ser ignorada das trevas dos nossos corações.
The Souvenir: Part 2
3.6 10Um admirável exercício de metalinguagem do cinema utilizando-se lembranças e memórias de quando a cinematografia era uma disciplina escolar. Ao mudar o foco narrativo, este filme perpassa seu predecessor e se justifica com tal sobre os destroços emocionais deixados para trás. Aqui, a dor é transformada em arte, literalmente, e não se apega ao relacionamento tóxico tão comum que interessava apenas à diretora britânica. De tom mais leve e bem-humorado, o longa espelha a decisão da protagonista de (se) enxergar sob nova perspectiva, com o amadurecimento natural de uma mente talentosa. Suavidade, amplitude e quentura se misturam e proporcionam uma agradável sessão de cinefilia. Vale a pipoca!
Granizo
3.0 58Uma obra de clichês excessivos que tem como mote uma história irreal e insípida. Pois nem o mais ambicioso dos meteorologistas deve sonhar com o estrelato midiático apresentado no longa. Portanto, uma narrativa falha que, de tão implausível, infecta as boas atuações do elenco. Até os bonitinhos subtramas soam piegas e batidos, como se passasse na telona um cinema de absurdo com pitada kitsch. Ao menos serve pra atestar que, assim como cá, faz-se filme ruim na Argentina.
A Face Oculta
3.6 54 Assista AgoraÚnico filme dirigido por Marlon Brando, este é um estranho, túmido e brilhante western que faz a conexão entre o gênero dos anos 40/50 com o que viria posteriormente, principalmente pelos realizados por Sam Peckinpah (dizem, inclusive, que este assinou o roteiro, embora não creditado). É, basicamente, sobre vingança e como o bem e o mal podem estar presentes juntos numa mesma pessoa. E essa dualidade é bastante explorada numa obra que cresce com o passar da fita, apresentando os bons personagens secundários igualmente ambíguos e necessários. Outro detalhe interessante é a fusão da aridez do deserto constantemente presente nos faroestes com o consolo do mar, pois os caubóis, aqui, vão pra praia. Intrigante e gracioso, porém, inchado e desconcertado.
O Último Metrô
3.8 68 Assista AgoraA RESISTÊNCIA NA ARTE
A cultura é uma das armas mais subversivas da história da humanidade. E seu golpe é tão singelo e melífluo que, em diversas vezes, o atingido é também mais um propagador da chama da resistência. Na Paris sitiada pelos nazistas durante a segunda guerra mundial não foi diferente. Enquanto a ocupação alemã aumentava, mais precisa era a necessidade de capilarizar a cultura francesa entre os povos. Como? Fazendo arte em seu esplendor, para demonstrar aos invasores que havia ali uma barreira intelectual inquebrável, que não se ruía pelo poderio militar. O filme O ÚLTIMO METRÔ (1980), de François Truffaut, retrata muito bem aquela época sob um olhar cultural.
Como Paris estava dominada, havia o toque de recolher num determinado horário, sendo, este, a derradeira viagem do metrô na cidade para retornar com as pessoas para casa. Tudo se resolvia até o último metrô. E, ainda por causa da falta de opções de lazer, muita gente frequentava os teatros em busca de divertimento e fuga momentânea do pesadelo que viviam. As casas lotavam e os agentes culturais começaram a enxergar, nas peças teatrais, formas de resistência. E as mensagens invadiam o local mesmo recheado de personalidades nazistas que, com as cabeças fixas nas bombas, riam e aplaudiam seus próprios deboches.
Truffaut não passou pano e nem era um alienado político por não enfatizar tiros, mortes e passagens fúnebres nesta obra. Pelo contrário, ele fez um ode à arte por ajudar a livrar sua França do domínio maléfico nazista. Sendo mais ainda uma declaração de amor ao teatro, pois utiliza-se da metalinguagem não apenas como forma, mas como verdadeira personagem da fita. Um exercício cultural necessário num tempo difícil de trevas.
A escolha da produção em se passar quase toda a história num teatro pode fazer cansar o espectador, mas é algo logicamente aceitável, além de possuir o simbolismo supracitado. Contudo, a atmosfera é envolvente e cativante, tal qual Catherine Deneuve, Gérard Depardieu e Heinz Bennet quando aparecem na tela com suas ambiguidades e destrezas. Em suma, um filme de 1980 que rememora o horror de 1944 e que traz à tona o desafio de lutar contra o obscurantismo da atualidade, pois nos lança a pulga atrás da orelha. Porque derrotar o fascismo não é fácil. Mas o caminho transita pela arte e pela cultura.
O Reverso da Fortuna
3.5 53 Assista AgoraUma história impressionante sobre o universo jurídico e a dualidade que tal disciplina carrega, precisando, em diversas ocasiões, caminhar lado a lado com amoralismo e, consequentemente, despertar sensações de injustiça. Jeremy Irons (excelência de atuação) no papel do milionário Claus Von Büllow é ao mesmo tempo cínico e sedutor, o que nos deixa eternamente com a dúvida: culpado ou inocente, apesar de já condenado socialmente? E essa espiral de morte social é um outro aspecto interessante da trama que, com tons de tragicomédia, retrata as "boas maneiras" da alta sociedade. Uma saga do nosso tempo, mesmo não sendo da nossa classe econômica.
Sempre em Frente
3.9 160A criança que habita em nós nunca deixa de existir. Ela apenas se torna cada vez mais cínica e impaciente, preferindo, com o passar do tempo, a reclusão à liberdade. Este terno e belo drama com jeitão documental atesta a sisudez do envelhecimento, dando mais ênfase às memórias das pequenas coisas do que propriamente à psicologia coming of age. E mais: a criançada está, sim, preocupada com o futuro. Num claro recado à labuta de ser mãe, vemos o cuidado diário como algo penoso, desafiador mas satisfatório, pois pais e filhos desenvolvem-se e evoluem-se mutuamente (no caso do longa, tio e sobrinho), cada qual descobrindo um pouco de si no outro. Além do ato de escutar, literalmente. Pois estreitar laços é o modo mais fácil de desatar nós.
P.S.¹ - Como as entrevistas com as crianças foram realizadas realmente, seria interessante lançar um documentário com as respostas dada.
P.S.² - Até que enfim uma criança fazendo o papel de criança com criancice.
P.S.³ - Quem ainda usa post scriptum em pleno século XXI?
Morte no Nilo
3.1 351 Assista AgoraAgatha Christie, a Rainha do Crime, é um prato cheio para a cinematografia. Sua obra é um roteiro pronto para qualquer diretor botar as imagens em cena. Porém, como sabido pela imensa massa de seres pensantes, nada supera a imaginação de ler o livro. Não que este longa seja ruim, pelo contrário, elenco afiado, história intrigante, mistério atraente, situações inesperadas e um espirituoso e bem humorado Hercule Poirot, o icônico detetive belga criado pela escritora inglesa. Só que não há aprofundamento e nem algo excepcional, deixando a obra meio monótona para o gênero "quem é o assassino?". E os movimentos românticos da trama não são muito convincentes, como se as atividades das pequenas células cinzentas dos espectadores fossem menosprezadas. Mas é um bom e elegante filme da estirpe britânica.
Secretária
3.5 296Uma excêntrica crítica ao amor limpinho, fofinho e cheiroso.